31.12.07

caruma-incerteza

Dando expressão ao tempo vou, lentamente, migrar para http://caruma-incerteza.blogspot.com/

O tempo é mais de incerteza que de verdade e, por isso, caruma irá estar mais atenta a tudo o que, apesar de incerto, lhe mereça algum crédito.

Nesse sentido, e para quem me pediu opinião sobre possíveis leituras, aqui deixo uma:

Vale a pena ler Noites de Anto (1988), Alegoria em Sete Quadros, de Mário Cláudio. No entanto, a inteligibilidade do texto depende do nosso conhecimento da vida e da obra de António Nobre.

Há, no entanto, que alertar os mais puritanos para o feminismo e mesmo para a pederestia de Anto, de algum modo legitimada pela Epístola de São Paulo aos Romanos: "Por esse motivo, Deus os entregou a paixões degradantes...»

Um exemplo de incerteza, a pederastia que tanto seduziu os artistas ao longo dos séculos...

Para passagem de ano, esta abordagem não deixa de ser estranha...,mas o tempo é de incerteza perante actos que, na maior parte das situações, põem em causa o "outro". 

30.12.07

Sobre o pessimismo...

Em Noites de Anto, Mário Cláudio cita um guia turístico para assegurar que a praia da Figueira da Foz poderia ser considerada, na perspectiva de António Nobre, a "Rainha das Praias de Portugal". Ora, se eu quiser dar corpo ao sol de Inverno que, nos últimos dias, tem caído sobre a praia de Armação de Pera, atrevo-me a regatear esse prémio pela sua extensão, pelas algas que se atrevem a estender-se ao sol, sem esquecer as falésias em forma de gruta que parecem sair dos campos em volta... como se os brancos prédios disformes não fossem mais do que castelos na areia... sem esquecer a faina do mar de que avisto raias de três quilos e tentaculares polvos que deixam os pescadores cor de alcatrão.

Aqui, o pessimismo perde-se no azul do céu e do mar e deixa-se subornar pela quietude dos velhos alemães, belgas, holandeses que parecem plantados de estaca neste Sul do carpe diem...

27.12.07

O Cardeal e o Ateísmo


"Todas as expressões de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade, que tiram todo o sentido ao Natal, que é a exultação e o grito de alegria e de esperança que brotou do reencontro do homem com Deus", destacou José Policarpo, na missa do dia de Natal, na Sé de Lisboa."

Esquecimento ou negação de Deus. Estes comportamentos pressupõem que um dia "encontrámos" Deus. Mas quando e onde? E se, de verdade, isso nunca aconteceu? Mais do que esquecer ou negar, o ateu é aquele que vive "fora" de Deus. E são muitos os que assim vivem. Será que por esse motivo são causa dos dramas vividos pela humanidade?  Ou simplesmente são seres fúteis que desvalorizam o absoluto, dando corpo à frivolidade e ao esplendor do momento?

José Policarpo sabe, como ninguém, que em nome de Deus (qualquer deus) foram (e são) cometidas as maiores barbaridades contra o homem e contra o planeta. Não necessita que lhe contem a história das cruzadas, da inquisição ou da colonização / missionação. Sabe certamente o significado da expressão "guerra santa" e, por isso, sabe que cruzados, inquiridores, colonizadores e missionários todos lutavam por/ e / com Deus e que as suas vítimas nem sempre eram ateus a necessitar de "encontrar" Deus. Muitas das vítimas também tinham os seus deuses, mas isso não os impediu de lhes destruir os "idolos".

O Natal não assinala o reencontro do homem com Deus, mas, sim, a perpetuação do homem. A alegria e a esperança são legítimas porque saúdam o futuro da humanidade. O "menino" é mensageiro da vida, mesmo que fútil, e jamais apela à morte...

Tudo o resto é uma efabulação que serve o poder e a vaidade de homens fúteis e frívolos.

24.12.07

BOAS FESTAS

Apesar de tudo o que aqui foi referido, a vida impõe-nos alguma atenção a esta vontade de celebrar ou, melhor, a esta vontade de esquecer. Bem sei que, deste modo, me rendo ao colaboracionismo de todos aqueles cuja primeira vontade é apagar a História. Se calhar o que tenho vindo a rejeitar não é mais do que o esquecimento como sinal de envelhecimento.

Permito-me, no entanto, celebrar, com todos aqueles que me visitaram, estes dias de euforia, sabendo de antemão que tempos difíceis nos esperam.

Por isso, para todos, um BOM NATAL e, em particular, para as "agulhas" que quiseram fazer parte deste manto de "caruma" que, aos poucos, vai cobrindo o meu quintal.

PS: No meu caso, não acredito  que valha a pena mudar os ministros, os secretários de estado..., pois só os escravos podem impor limites ao poder dos senhores... e por enquanto os senhores ainda não conseguiram regulamentar toda a nossa actividade. Quando isso acontecer, será a HORA!

 

23.12.07

O enigma da esfinge

Hoje, percebi que o melhor é estar calado. Qualquer palavra pode despoletar uma guerra. Por mais que procure estratégias de confluência, uma simples palavra pode transportar em si um fúria ancestral de devastação a que não sei mais como responder - apenas a mudez, mas, por dentro, uma dor dilacerante...

Ah, como começo a perceber o enigma da Esfinge! Durante todos estes séculos temos atormentado a Esfinge ao dar-lhe voz.

(Um homem cansado do teatro da vida tornara-se esfinge na esperança que o deixassem só... Mas em vão...)

21.12.07

Apenas os olhos...

No Teatro Camões, em dia de temporal (19.12.2007), assisti à apresentação, pela Companhia Nacional de Bailado, do Lago dos Cisnes, ballet dramático em 4 actos, com música de Tchaikosvsky e coreografia de Mehemet Balkan. Inspirado numa antiga lenda alemã, narra a história de Odete, uma princesa transformada em cisne por um feiticeiro. Esta obra teve a sua estreia fracassada em 20 de fevereiro de 1877. Gostei particularmente dos cenários e dos figurinos assinados por António Lagarto. Foram, sobretudo, os meus olhos que estiveram naquela magnífica sala porque o cérebro, esse, não suporta o calor dos corpos e deixa-se cair facilmente na prostração das melodias repetitivas e arrastadas. A imobilidade arrastou-o para um delírio onde se cruzaram cenas do quotidiano que naquele momento bem gostaria de ter dispensado.

Hoje (21.12.2007) voltei a experimentar a mesma sensação de adormecimento perante o filme Bucareste, do romeno Corneliu Porumboiu (2006). Mas neste caso, os meus olhos apenas puderam comprovar o lado negro de um país que perdeu a memória da sua revolução ou que procura saber onde estava cada um no dia 22 de Dezembro de 1989, oito minutos depois do meio-dia, naquela cidade a Este de Bucareste.

A reconstituição feita pelos protagonistas naquele absurdo canal de televisão não passa do desejo de estar do lado certo da história, quando, de facto, as vidas mostram a pequenez daquele par de cidadãos.

Espero que ninguém se lembre de me perguntar onde estava na madrugada de 25.4.1974. Embora, eu saiba que estava a dormir. E quando acordei, fui ver a revolução  que estranhei pela forma como os militares se dispunham no terreno, esperando que o regime se rendesse. Quanto aos cidadãos, ainda não sabiam que o eram e, incautos, assumiam poses de vencedores, dificultando as manobras e pondo as vidas em risco.

De qualquer modo, o regime agonizava, nada mais tendo a oferecer. Tal como hoje, apenas a glória da corrupção, da manobra, da vaidade saloia...

14.12.07

A biblioteca

Não é certamente um espaço assombrado. No entanto, os livros estão fechados à chave. Pertencem a um tempo envergonhado ou, talvez, sejamos nós que temos vergonha desse tempo. Não se sabe bem que livros por ali estão naqueles "altas estantes" - ninguém parece querer saber. No orçamento, não há verbas para recuperação / encadernação ou para catologação. Ao certo, também não sabemos se há verbas ou não.

Ali, ninguém lê os livros da biblioteca. No melhor dos casos, alguns alunos e professores lêem os seus próprios manuais e todos sabemos, creio, que os manuais são parecidos com livros, mas apenas isso.

Profanada a biblioteca, fazemos dela espaço de reuniões, de palestras, de lazer. Os assuntos abordados podem ser  pertinentes e interessantes, mas raramente arrastam um público significativo, a não ser que o condicionemos ou o "arrebanhemos", sujeitando-nos a uma escuta perturbada por conversas paralelas, por entradas e saídas "fora de tempo".

Sempre ouvi dizer que o programa deve ser cumprido, mas nunca compreendi se ele é, de facto, lido. Literalmente, nenhum programa apresenta o jornalista e o cartunista como conteúdo, mas nada, nele, os inviabiliza como recurso - vivo, autêntico - capazes de despertar vocações, de expor a trasnsversalidade dos conteúdos, de nos obrigar a questionar o passado e, em caso de desespero, a rir de nós próprios.

E a culpa não é certamente da biblioteca!? Provavelmente, é apenas, uma questão de canal,o tal, como sentenciou o cartunista Bandeira.

O novo canal ou a antiga correia de transmissão

13.12.07

O reencontro...

Fundo sem registo, apenas memória indecifrável . No centro, o prof. Monge da Silva, entusiasmado, traça a história do andebol no Liceu Camões. Dirige-se aos pioneiros, protagonistas de um desafio impossível, apesar de, numerosas vezes, a modéstia e o triunfo os ter guindado à vitória. Pelo meio, a eterna falta de recursos e a astúcia do regime.

A saga de ontem parece a saga de hoje. Como é difícil imprimir, a cores ou a preto e branco, uma simples página de jornal? Parece que temos tudo, mas não. Se olharmos bem: estão lá os campos e também lá está o Auditório, sem esquecer os computadores, as redes, as impressores,  mas falta-lhes sempre alguma coisa...

A propaganda assegura-nos que nada disto é verdade: temos mais equipamentos, os recursos humanos são mais eficazes, a organização em curso porá fim ao tradicional miserabilismo... Entretanto, vou escutando as várias intervenções solidárias e, por vezes, um pouco àsperas: há a saudade dos que partiram e a fraternidade dos presentes; há a presença inesperada daquele antigo professor, austero e dicisplinador que interpelo, na fútil esperança de que uma centelha nos ilumine. Mas como?

É mais fácil lembrar os espaços, falar de outras presenças. Podemos atravessar o ginásio encerado, rever os aparelhos, sentir o peso insuportável dos corpos, esbarrar nos obstáculos, elogiar a disciplina e a integridade de outros tempos, tolerar a arbitrariedade e a frieza das vozes, pois, a esta distância, tudo ganha sentido - afinal, por detrás daquelas muralhas fernandinas habitavam a austeridade, a frieza e a visão jesuítica. Só que naquele tempo não o sabíamos... E, hoje, ouvi erguer-se o remorso, o medo do castigo eterno... no fundo do ginásio ecoam sons de uma ordem defunta...

Felizmente, esta experiência é só minha..., hoje, tudo  se passou na Biblioteca  e não no Ginásio! E eu próprio me senti um pioneiro porque, afinal, também eu fui iniciado no andebol, desporto que eu imaginava muito mais antigo que, de facto, era. No entanto, a mim faltam-me os companheiros...

9.12.07

Aromas

A flor do eucalipto abre-se sobre a cabeça de S.Torpes, libertando um aroma salutar. No solo, os cogumelos disfarçam a sua presença, eclodindo em pétalas de malmequer prontas a envenenar enormes baratas incautas que lentamente procuram fontes e cloacas.
 As abelhas e as moscas, sobreviventes de Dezembro, não desdenham a esponja do peixe-espada.
Indiferente à mentira, à vaidade e à ostentação instaladas no chiquíssimo Parque das Nações, eu fixo o olhar no que me cerca e tudo são sequelas líticas do passado e também do futuro: da areia, despontam rochas oceânicas que me desassossegam, incapaz de com elas dialogar, de lhes narrar o tempo da sobreposição violenta - vulcânica.
Apesar disso, compreendo que houve um tempo em que os maciços de Sintra, de Sines e de Monchique se perfilavam, alinhados e altaneiros, sobre o Oceano, mas continuo sem saber se, nesses tempos, a flor do eucalipto e a pétala do cogumelo já cumpriam o seu desígnio... e subitamente, sinto que, talvez, o tempo não existisse, porque ele não será mais do que a medida da mentira, da vaidade e da ostentação humanas.
Antes que o corpo se separe da cabeça, vou fugir de S. Torpes e evitar Saint Tropez. No entanto, antes que parta devo aqui registar o gato preto que, furtivo, se atravessou três vezes no meu caminho, neste fim de semana.
E ainda me falta responder a uma intrigante pergunta sobre o que tenho lido nos últimos tempos. É que há quem se queixe que, apesar de me conhecer há algum tempo, sabe muito pouco sobre caruma, como se esta tivesse tempo para ler.




















29.11.07

Amanhã...

 

Há greve da função pública...

Mais uma vez, estarei do lado dos conformistas ou, se epicurista, do lado dos indiferentes... Se não é verdade, parece.

No entanto, esta semana, organizei uma visita de estudo ao Palácio Nacional de Mafra, em que a maioria dos alunos participou de forma empenhada, apesar de alguns terem primado pelo desrespeito quer dos colegas quer dos guias da visita - ostentam um ar trocista de aborrecimento e, ao mesmo tempo, de superioridade; não sentem qualquer pejo em cortar a palavra ou em chegar atrasados...

Amanhã, esses alunos esperam que os professores façam greve...

Um autocarro ficou sem embraiagem. Sem ruído, encostou à berma da autoestrada e a autoridade verificou zelozamente os documentos da viatura, que 30 minutos mais tarde é substituída e tudo volta ao normal. Entretanto, compreendi que o veículo já partira da sede da empresa "com problemas"...

Amanhã, os mesmos veículos continuarão a circular...

Afónico, desde 2ª feira, insisti em cumprir todas as minhas actividades lectivas e não lectivas... o que não impediu que certos alunos se estivessem nas tintas para a dificuldade em que o professor se encontrava.

E amanhã, esses mesmos alunos perguntarão se o professor faz greve...

Um pouco por toda a parte, encontramos quem não queira colaborar, quem não queira partilhar informação, quem esconda o jogo. E é pena, porque ao lado, há quem esteja disponível para colaborar na construção de uma sociedade mais esclarecida...

Amanhã, essa disponibilidade mantém-se, apesar dos olhares reprovadores, das palavras travessas...

Amanhã, serei menos (ou serei mais?) funcionário público...

21.11.07

A manha alastra...

Se ainda ouvissemos os poderosos, compreenderíamos que eles nos enganam de forma despudorada: Asnar, Blair, Bush, Barroso foram enganados por serviços de informação que eles próprios tutelavam. A seu tempo, cada um procura branquear o passado, fazendo-nos acreditar que o destino os escolhera para uma missão civilizadora, à data, incompreensível para o comum dos mortais. Vêem-se, a si próprios, como eleitos, como redentores da humanidade.

Se descessemos um ou dois degraus do Olimpo, veríamos como os Putins, os Fidéis e os Chavez troçam de ricos e pobres, em nome de plebes amorfas, prontas a adular "cabos de guerra" que prometem esplendorosos paraísos artificiais. Apostam no veneno, no chiste e na chantagem para se eternizarem no poder. E nós achamo-los encantadores, paramos para os ouvir como se as suas palavras nos redimissem das nossas humilhações quotidianas.

Ao abandonarmos o Olimpo, mergulhamos na terra dos Sarkosy e dos Sócrates que, dia-a-dia, nos prometem um futuro radioso, se os deixarmos emagrecer o Estado, se os deixarmos programar-nos numa língua de interesses privados transnacionais, que, em nome do pragmatismo, amontoam cadáveres um pouco por toda a parte. E nós aplaudimos-lhes a altivez, a convicção e o espírito de missão encenado nos bastidores dos média...

Se descessemos ao relvado, veríamos um povo prisioneiro dos gestos manipuladores de um seleccionador, das fintas gratuitas de malabaristas da bola, dos sorrisos dúbios e manhosos dos fiteiros do costume, prontos a enganar o árbitro, com o aplauso histérico de turbas para quem a verdade desportiva, ou outra, nada interessa. Quando o jogo se aproxima do fim, a farsa alastra às bancadas, senta-se nas poltronas... e deixa-nos com a sensação de dever cumprido e, nesse momento, a manha dos Bush, dos Chavez, dos Sócrates e dos Scolaris sai vitoriosa...

Todos eles fizeram o melhor que sabem, em nome de um interesse superior, aliás, como nós que os acompanhamos...

Lembrei-me,agora, dos "compagnons de route", sem ofensa para a inocência...

18.11.07

Confluências

O lugar onde o Tejo e o Zêzere tinham o hábito de confluir. Agora, estão dependentes das comportas... apesar das divergências, em Constância, fluem Camões, Vasco Lima Couto, Alexandre O'Neil, Baptista Bastos... e quantos mais?










16.11.07

Às horas cor de silêncios e angústias…

 

Para Fernando Pessoa, o tempo tinha cor, mas a paleta era apertada, feita de verde, cinzento, por vezes, azul e quase sempre preto. Por detrás dos óculos, erguia-se um fundo branco envolto em preto, e nas lentes, lentas partiam as naus nocturnas. Não se sabia se regressavam ao cais, mas se o faziam, as naus apodreciam para lá do silêncio do horizonte, num poente de cinzas. Ele queria que acreditássemos que naquelas cinzas ainda soprava a chama. No entanto, sabia bem que o fogo (a alma) quando se extingue se esconde debaixo da pedra, à espera que o vento se levante e se incendeie em notas quebradas…, novas vozes feitas naus que partiram um dia do Cais Absoluto – ideia feita da angústia de quem não aceita que a vida passe e não passe…

Para Fernando Pessoa, as palavras tinham a cor da música que ele não sabia bem se ouvira e no não saber estava toda a angústia que separava a partida da chegada, e na noite do Cais divino soprava uma vaga e doce aragem.

(Em homenagem a todos aqueles alunos que nesta noite, entre sonhos de sargaços, procuram compreender como é que se podia cantar naquele navio encalhado num cais de perdição...)           

11.11.07

A Casa-Museu

A Casa-museu existe um pouco por toda a parte. Escondida, envergonhada, de tempos a tempos, lá recebe um visitante, também, ele tímido e um pouco assustado.

A Casa-museu oferece a privacidade do seu antigo proprietário, quase sempre, ridícula e acanhada. Espera-se que o homem ou a mulher se tenham conseguido erguer daquelas quatro paredes e tenham deixado obra, lá longe, na capital, no estrangeiro, no mundo.

Por exemplo, o Alexandre Herculano de Vale de Lobos (Santarém), surge de pés-de-fora, tal é a pequenez da cama. Visto daquele lugar não ombreia, de modo nenhum, com o Herculano que jaz nos Jerónimos. Mas, mesmo lá, a centralidade, é fugaz ao olhar, quase sempre atraído para um qualquer evento musical. Pelo menos, sempre vai ouvindo música. Na casa-museu, talvez oiça os pássaros!

Ora, Salazar, tendo em conta a dimensão do homem, também merece a sua casa-museu, em Santa Comba Dão. Não irá incomodar ninguém e sempre deixará feliz algum turista ou algum nostálgico que por ali passe. A memória do homem deve ser preservada, até para que não se repita.

Desta vez, tenho de concordar com o Vasco Pulido Valente, apesar de eu saber que ele detesta o cheiro a caruma. Detesta tudo o que cheire a campo. O que faria ele, se o desterrassem para a província? É por isso que ele concorda que Salazar seja banido para Santa Comba.

7.11.07

A iliteracia

Estou a chegar lá! Uma vida de formulários, convocatórias, regimentos, regulamentos, actas, tabelas... - tudo ferramentas funcionais, ou melhor do funcionário!

A própria exclamação perdeu emoção. Está saturada de convenção. Neste momento, fujo da acta, da convocatória, do regulamento, do plano, mas penso se não seria melhor voltar lá, se este intervalo não me vai ser cobrado...

De facto, ao funcionário compete estar permanentemente de plantão. Zelar desinteressadamente pela saúde do patrão.

E nessas horas - todas as horas - deixamos de ler, de escrever, de descobrir; deixamos de ser vistos como uma ameaça, um risco...

( De qualquer modo, já não necessito de censor - eu próprio exerço esse mester: vou regressar à convocatória, sabendo, de antemão, que depois desta, outra me espera e que, se não cumpro a primeira, dificilmente realizarei a segunda.)

É a engrenagem! O cárcere dos dias e das noites!

3.11.07

De graça...

"Dei-lhes de graça meu coração/E o que ele tem." Fernando Pessoa, 10/10/1933
É isso mesmo! Trabalhar de graça, sob a ameaça rasteira do processo disciplinar, da mobilidade, do despedimento.
Funcionário, empregado a tempo inteiro. De dia e de noite. Sem efectiva contagem das horas. Na expectativa de que morra cedo para sossego da segurança social.
Nem o vento sopra lá fora.
Só a febre da alma se agita, insegura, arranhando-me por fora, sem que o coração chegue a saber que está definitivamente morto.
Lá longe, o barril de petróleo continua a matar a esperança... e a chuva fustiga impiedosamente os deserdados...

28.10.07

Bucólica


- Ó meu senhor, será que viu por aqui umas vacas? Incrédulo, depois de olhar à direita e à esquerda, repliquei: - Não é frequente ver vacas num parque campismo! No entanto, ainda não refeito, perguntei-lhe: Mas o senhor perdeu as suas vacas?
- Não, as vacas não me interessam; procuro o maioral… E o pobre homem lá deu meia volta, sem, no entanto, poder evitar que eu lhe explicasse que seria pouco provável que as vacas andassem por perto, pois, naquela manhã, os caçadores fizeram uma batida monte abaixo até à rede do parque. Eu bem os vira do lado de lá da rede, armas apontadas e canídeos a farejar…
Mas o homem desinteressara-se completamente da minha explicação e seguiu o seu caminho.
O problema dos caçadores à porta do parque de campismo era meu e não dele: eu acordara bem cedo a pensar que, com tamanho tiroteio, era bem provável que não pudesse mostrar a nascente do Alviela aos meus convidados…
O que me faz pensar que há longos anos tento explicar o que, de facto, ninguém me solicitou. O que me pedem é muito simples: - Será que viu, por aqui ou por ali, umas vacas? E eu conto-lhes a história da domesticação das vacas, do trigo, da colonização, das fartas e das estéreis caçadas… E o meu interlocutor deixa de me ouvir porque, afinal, as vacas não passavam dum pretexto. O que ele procurava era o maioral, a ver se ele lhe pagava um copo…
Se ao menos tivesse adivinhado! Ter-lhe-ia pago uma cerveja e, em troca, ele teria dito: - muito obrigado, meu senhor.
Esta bucólica não respeita nenhum cânone, nem mesmo o da simplicidade. É apenas uma forma de esconder uma enorme vontade de zurzir nuns figurões, uns maiores e outros mais pequenos, que ultimamente têm abusado da paciência da arraia-miúda. Será que os maiorais já não querem saber das vacas?!
Zus! O lugar onde a língua acaba.
/MCG

22.10.07

De que me servem estes papéis?

São tantos os papéis,

todos empilhados

numa serra fútil

(a aliança salta do dedo

num esgar último)

estes papéis são resposta

a uma única pergunta

cansada de fugas inúteis

De que me servem estes papéis?

Já me vejo arder,

o vento ainda sopra a meu favor,

o cântaro avança sôfrego,

mas eu atravesso os meus papéis

já cinza

De que me servem estes papéis?

 

21.10.07

Adeus, Até amanhã

Este documentário de António Escudeiro deixou-me uma estranha emoção. Ao ver aquelas imagens do passado e do presente do Sul de Angola, senti que também eu regressava a lugares familiares. Lugares povoados por brancos que construíram cidades, o pioneiro caminho-de-ferro de Benguela, portos à escala internacional, pesqueiros… Mas o meu regresso é bem diferente do de António Escudeiro: ele nasceu lá, filho de engenheiro que chegou a director do caminho-de-ferro; estudou lá, em escolas, onde predominavam os brancos e os mestiços. Nessa Angola austral, os brancos eram felizes. Hoje, os brancos são raros, o caminho-de-ferro recupera lentamente, as cidades continuam destruídas; apenas as autoridades provinciais recuperaram para si alguns palacetes; os negros, esses, em magotes percorrem todos os caminhos, tentando vender a pouca produção que vão conseguindo.

António escudeiro vê o cinema do Huambo arrombado, as máquinas de projectar espreitando, por detrás de uma parede imorredoura, um horizonte imprevisível, mas ameaçador. E eu, também, percorro aqueles morros, estupefacto com a cegueira branca, que descobri na denúncia feita por Pepetela e, sobretudo, por Ruy Mário de Carvalho. Também eles, brancos-mestiços de Angola. Todos eles brancos de segunda!

E eu que nunca fui a Angola, tenho cada vez mais a sensação que lá vivi sempre. Mesmo, agora, começo a pensar naquele professor de História, de Arlindo Barbeitos, que levou o aluno preferido a visitar o cemitério para lhe ensinar a ler a história do colonialismo. Ao ver entrar António Escudeiro no cemitério, pensei, aqui está um espaço onde a diferença de cor ou de pele não fará sentido. Mas não. Esquecera que só o branco tinha direito àquele intra-muros.

Apesar de tudo, o documentário "Adeus, Até amanhã" merece ser estudado com atenção pelo que deixa ver do que aconteceu nos últimos 30 anos na martirizada Angola e, sobretudo, pela cor dos panos e pelo olhar abismal daqueles milhares de crianças que espreitavam as câmaras e que respondiam em coro, nas despojadas salas de aulas.

Por mais que queiramos esquecer, a Europa é responsável pelo atraso da África…

17.10.07

Aos 53 anos, fragmentos…

São muitos os anos, quando relembro que outrora um médico me assegurou que não chegaria aos 39. Não lhe recordo o rosto nem a voz, esfumou-se numa enfermaria branca como ele.

O dia foi de sinais contraditórios: os amigos não esqueceram a palavra ou o gesto solícito; mas outros (e não sei como classificá-los!) passaram o dia a delimitar o território como se pudessem correr algum perigo. Mas como se o poder nunca me interessou?

Foi, no entanto, um dia de surpresas: o conselho pedagógico mostrou-se participativo e reivindicativo, numa girândola de olhares cruzados e, por vezes, desorientados (pela primeira vez, a mesa teve dois pólos!) Hoje, os meus neurónios desdobraram-se num movimento circular inesperado.

Surpreendentemente, alguém que, por vezes, consegue fazer-me desesperar, na placidez dos dias, ofereceu-me "A Vida Fragmentada – Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna", de Zygmunt Bauman.

14.10.07

Sem vergonha…

" Um ministério é um grupo casual de indivíduos, que intrigaram para estar ali." (…) O país "paga e reza."Eça de Queiroz, Maio de 1871

Em Torres Vedras, um grupo mais ou menos casual intriga para conquistar o poder. Em Fátima, a desavergonhada Igreja esbanja o suor do povo e ainda o acusa de grosseria. No Terreiro do Paço, um ministro das finanças corta nas pensões de reforma acima dos 600 euros, como se 700 ou 800 euros fossem suficientes para pagar a alimentação, os cuidados de saúde, os lares…

Quem anda por aí, vê, um pouco por toda parte, sinais de riqueza…. Riqueza cuja origem é desconhecida e, portanto, não tributada.

Será assim tão difícil enviar meia dúzia de polícias a cada marina, a cada imobiliária, a cada banco, a cada discoteca, a cada catedral? Se o fizessem, os agentes perderiam a vontade de passar pelas delegações sindicais ou deixariam de ficar parados em frente dos bancos, das ourivesarias…

(…)

Neste fim-de-semana, dormi mal. Despertei, várias vezes, a pensar no motivo que nos leva, ao olharmos para um monumento, a admirá-lo sem nos preocuparmos com a biografia do arquitecto, se andava triste ou alegre, se bebia ou era abstémio e, ao mesmo tempo, quando lemos um poema ou um romance, a só querer saber se o poeta ou o romancista foram infelizes na infância, pederastas, pobres, provincianos ou cosmopolitas. Que diferença há entre um poema e uma catedral? Entre um Poeta e um Arquitecto? Será uma questão de escala?

Parece-me que este desassossego não abona muito a meu favor. Sobretudo do meu fim-de-semana.

E ainda mais grave: gastei, também, uma boa parte da noite de sábado para domingo, a pensar no papel do conselho pedagógico na escola actual. E fiquei descoroçoado, sem saber qual é o campo de acção deste órgão. Acordei com a ideia que me compete pensar a organização escolar e a actividade docente tendo como único objecto o crescimento harmonioso de todo e qualquer ser que entre na escola, independentemente da fase de aprendizagem em que se encontre. A escola deve preparar o ser para que, no futuro, possa ser um arquitecto, um pedreiro, um poeta, um linguista, um físico, um cozinheiro, um matemático, um pintor… e não, um bêbado, um delinquente, um pederasta, um branco, um negro, um indiano, um fundamentalista…

À escola não interessam os intriguistas que procuram chegar aos ministérios!

11.10.07

Aporias

Tenho evitado comentar os casos do dia: o regresso à escola dos funcionários europeus; o topete dum empregado da RTP, em tempos de "precisa-se colaborador"; a iniciativa auto-formadora de dois agentes da ordem que confundiram uma delegação sindical com uma escola; o desaparecimento da ministra da educação; uma basílica que apenas custou aos crentes 70 milhões de euros; o secretismo das organizações e o cinismo dos dirigentes; a dor de cotovelo de quase todos; e, sobretudo, a indiferença e a descrença da maioria…

Inimigos, marchamos, lado a lado, sobre um campo de minas, sem querer perceber que ainda nos falta aprender a ler. Que ler pode ser uma actividade permanente, a única capaz de nos oferecer uma alternativa à "apagada e vil tristeza" do orgulho, da presunção e da prosápia.

Ler abre-nos a porta da alteridade… e toda a escrita é uma forma de leitura, de epifania…

(Apesar do ruído e do grito, da histeria das confrarias…)

5.10.07

Afonso Vaz Botelho - Que devo eu fazer agora?!

A 1 de Dezembro, a 5 de Outubro e a 25 de Abril, os que ainda têm trabalho param para celebrar a refundação da Nação. Primeiramente, libertámo-nos do estrangeiro, em segundo lugar, pusemos termo ao que restava do Antigo Regime e, finalmente, deixámos ruir o Império, liquidando, no acto, o Estado Novo.

Qualquer destas datas assinala o fim de um ciclo, dando início a outro. E por isso em vez de celebrarmos a libertação – esperança fugaz -, deveríamos reflectir sobre o modo como os portugueses se empenham na revitalização da colectividade. O que é que, de facto, nos interessa?

A resposta? - Podemos encontrá-la no Retrato de Uma Família Portuguesa, de Miguel Rovisco. Perante o perigo, perante o invasor, a família desmorona-se e uma parte foge: para o Brasil ou para a Europa, tanto serve!

Nascido em 1959, Miguel Rovisco suicidou-se em 1987, um ano depois de Portugal ter "entrado" na União Europeia. Aos 27 anos, já escrevera mais de 20 peças… No plano existencial, o seu suicídio não se explica – poderia ser um acto gratuito e repentista de algum existencialista à deriva num universo órfão de Deus! Mas não.

O desespero e a rebeldia de Miguel Rovisco nada tinham a ver com a divindade. A causa primeira encontrou-a na indiferença e no alheamento das elites nacionais, incapazes de compreender a força civilizadora do teatro.

As elites não lêem ou, pior, se o fazem, não resistem à tentação de censurar a obra alheia, desvirtuando-a de tal modo que o autor se verá obrigado a renegá-la. Mas Miguel Rovisco, em vez de desistir ou de renegar a obra, preferiu que um comboio lhe desfizesse o corpo para que a voz se pudesse ouvir bem alto no palco das consciências que nos governam…

Hoje, 5 de Outubro de 2007, que novas razões podem impedir os Roviscos desta Nação de se suicidar?

(Lá bem no alto, sobre os cedros, já avisto 250 altos funcionários da Comissão Europeia que, sem qualquer razão para se imolarem, se preparam para "regressar à escola", prometendo um futuro radioso… Mas, ao contrário do que acontece na maioria dos palcos, apenas teremos direito a um solilóquio…)

 

 

 

 

2.10.07

Outubro chegou…

E com ele o Outono… estação ou crepúsculo? Há dias em que o crepúsculo avança sobre o corpo, deixando-o exaurido. Contra a maré, lutamos porque ainda não é o tempo da noite…

Se passarmos à Sociedade, fica-nos a dúvida se também podemos falar de Outono… No entanto, os sinais são muitos: Mendes perde para Menezes; os pais perdem para os filhos; os funcionários perdem para a arbitrariedade do Governo que, entretanto, vai nomeando uma nova classe de carrascos que se encarregará de o substituir na zelosa missão de redução de custos…; isto sem falar das equipas de futebol que perdem sistematicamente perante as estrangeiras, salvo raríssimas excepções…

Para nos alegrar, sempre vão despontando alguns vencedores: a equipa de rugby que terá ganho o campeonato do mundo, à portuguesa, claro está; Mourinho que lá encontrou maneira de roubar o Abromovich (?) – mas quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão; Luís Filipe Menezes que, depois de endividar a Câmara de Gaia, se propõe vender o país por um cêntimo… E Sócrates que nos quer convencer que com ele ganhamos todos: as grávidas; os velhinhos e as velhinhas; os desempregados; os jovens; os delinquentes; os empresários; os comentadores políticos e, sobretudo, os funcionários públicos…

E nem vale a pena falar de Marcelo Rebelo de Sousa, o Sumo-sacerdote da Nação Portuguesa, cujo brilho só poderia ser ofuscado pelo laureado José Saramago, caso ele não tivesse escolhido o exílio filipino…

Se alguém se der ao trabalho de ler esta página outonal, peço-lhe que não se esqueça do CONTEXTO, (CUM+ TEXTUM), o que o obrigará a ler todos os textos mais ou menos coevos. Caso não o queira fazer, faça como a maioria: torne-se crente de uma qualquer confraria ou de uma qualquer autoridade.

O Outono chegou.

27.9.07

Quem quer…

Quem quer vai, quem não quer manda.

Tento ignorar a moralidade do adágio, mas, qual refrão, não me sai da cabeça.

Incapaz de esperar, sinto que avanço desnecessariamente… mas continuo o caminho como se uma voz me ordenasse o rumo.

Há quem pense que cultivo a opacidade quando, de facto, procuro, em mim mesmo, um sentido… talvez mesmo uma missão. Esta ideia, que me foi inculcada na juventude, acaba por me infernizar os dias.

Corre-me no sangue um padrão que me segura ao chão.

O padrão, cultural ou apenas de pedra, traça-me uma rota em que me perco a cada instante, e continuo a ver-me lá longe, na foz do Zaire, sem entender o motivo.

Antevejo um imenso caudal, a coberto de uma sufocante e esplendorosa vegetação, e apesar do tinir das azagaias sombrias, subo o rio, à procura da nascente da minha infância.

Ao contrário dos rios de Saramago – O Almonda e o Tejo – que, de tempos a tempos, o cercavam na Azinhaga, o meu rio, o Zaire, deixava que eu o abraçasse, ficasse a vê-lo… a ir, a fluir…

E na minha cabeça, corre o Zaire que me sussurra: Quem quer vai, quem não quer manda.

20.9.07

Quem me dera…

O trovão expande-se, de forma arrastada; o relâmpado ziguezagueia faiscante. Do 12º andar, procuro o Tejo, mas, na noite, ele esconde-se no negrume, insensível à revolta dos elementos. Fartos dos excessos dos heróis e dos vilões, dos mourinhos e dos scolaris, de códigos penais à la carte, do capotamento diário dos camiões, os céus entraram em fúria e travam lá nos cimos um combate sonoro e luminescente que ameaça a mesquinhez das nossas rotinas, das nossas vaidades.

E de repente, o contínuo ribombar do trovão arrasta-me para o final do canto I de Os Lusíadas, e fico a pensar no Poeta, fascinado e humilde, mas revoltado contra os homens que não contra a Natura:

 

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

 

Entretanto, o céu parece começar a serenar, deixando que um rasto de luz se precipite sobre aquele Tejo sonolento que eu não vejo, mas que suspeito que continua a correr para o grande Oceano. Quem me dera partir com ele!

16.9.07

De regresso…

Parece-me que, nesta última semana, o lagarto atravessou o Atlântico para se rir de mim. Não sei se tem duas caudas ou apenas uma, mas sei que eu pareço ter duas caras. De facto, deixei que me elegessem novamente para um cargo a que prometera não voltar. No entanto, senti que não podia dizer que não. Não podia esconder-me por trás da memória traiçoeira nem refugiar-me na debilidade que me esgarça os ossos. Esse tipo de argumentação enoja-me profundamente e, por isso, enquanto puder, resistirei.

De mim, ninguém poderá esperar abordagens que não sejam pedagógicas, o que significa colocar-me na perspectiva de quem defende um ensino mais eficaz, que nunca perca de vista a valorização humana de cada aluno, mesmo que isso signifique rumar contra o pragmatismo político, o carreirismo docente e o oportunismo de alguns encarregados de educação.

A tutela eliminou a pedagogia das escolas: o currículo e a disciplina substituíram a educação; no lugar do pedagogo instalou-se o jurista e avança-se com o delegado de segurança. A palavra de ordem é disciplinar. E para isso a peça essencial é o "regulamento interno", em permanente actualização…

E o lagarto, trocista, não deixa de sorrir, mas por enquanto vai ter dificuldade em assustar-me…

10.9.07

O Sorriso do Lagarto, 1989

De João Ubaldo Ribeiro, nascido em 1941, na ilha de Itaparica (Bahia, Brasil), o romance " O Sorriso do Lagarto" descreve-nos um universo brasileiro desconcertante. Neste romance, a transgressão é a regra: a linguagem de homens e mulheres é libertina; a sexualidade é ambivalente; a amizade é traiçoeira; a política é corrupta; a justiça é cega; a religião é dogmática; a feitiçaria é oportunista; a ciência é irresponsável.

As personagens brasileiras dão corpo à transgressão, anunciando um presente e um futuro que pouco tem a ver com a ética ocidental. O homem, apesar de civilizado, despe-se das luzes, e volta a dar corpo aos instintos mais baixos, mas não regressa à barbárie. Tudo parece normalizado. Tudo fica impune. O herói, ainda, é aquele que se distingue pelas suas acções, só que estas situam-se no vasto território da delinquência.

Quanto à linguagem de João Ubaldo Ribeiro, pode-se dizer que é esplêndida, impudica, cirúrgica e narcísica: nela reflecte-se a exuberância do Brasil, feito de perversão, de hibridismo, de ritmo e morte.

 

«Era um grande lagarto esverdeado e iridescente, que pôs a cabeça para fora de uma touceira de margaridas e o encarou, mostrando e recolhendo a língua repetidamente. O lagarto de João Pedroso, o lagarto que sorria, o lagarto que ainda ia sorrir mais? Não era possível que um lagarto sorrisse, mas a verdade é que, depois de se aproximar mais um pouco, sentiu que realmente havia algo de um sorriso em torno do bicho e não sorria para ele, mas como que sorria dele.»

op. cit, pág. 362, editora Nova Fronteira

3.9.07

Setembro, ao postigo…

O ano lectivo começa mal: no regresso, os professores fazem fila para preencher manualmente impressos que irão ocupar, durante horas, um ou dois funcionários que zelosamente introduzirão os dados em programas informáticos estanques. Lembra aqueles cronistas que sempre que lhes cabia narrar a história dos seus "senhores" recuavam a Adão e Eva… Afinal, para que servem os milhares de computadores espalhados por todo o país? Por outro lado, o próprio preenchimento dos formulários parece exigir um manual de instruções… Será, assim, tão difícil a um licenciado preencher o NIF, o NIB, o nº da ADSE, confirmar a morada, declarar se de um ano para o outro há alterações?

E quanto ao resto, o indizível…

Numas escolas, a actividade lectiva começa a 10 noutras a 17, dando expressão à autonomia organizativa de que usufruem. Os professores e os candidatos a professores manifestam-se um pouco por todo o país contra a ausência de emprego. Os responsáveis governativos descartam responsabilidades: a culpa é da reduzida taxa de natalidade, do abandono escolar precoce.

No entanto, parece estranho que um país que gasta milhões de euros com o envio de militares para os Balcãs, para o Líbano, para o Afeganistão, para Timor, não consiga traçar uma política de cooperação, por exemplo, com Angola ou com Moçambique que dê escoamento aos milhares de jovens (e não só) que, terminado o curso superior se encontram à deriva e à mercê de um patronato sem escrúpulos, sobrecarregando as famílias, já de si cada vez mais pobres. É estranho que este país não aposte na formação linguística dos milhões de emigrantes que se encontram espalhados um pouco por todo o mundo, como se a promoção escolar pudesse ser um obstáculo ao bom desempenho laboral do típico emigrante português: pau-para-toda-a-obra.

Qualquer sociedade que seja incapaz de gerar trabalho abre as portas à delinquência, à violência e, consequentemente, entra num processo de aniquilamento.

Ainda nem todas as portas estão fechadas, no entanto é preciso pensar a política de outro modo. A acção política deve dirigir-se à totalidade, alicerçar-se nas portas que o passado abriu e perspectivar-se em termos de futuro e não apenas de presente.

 

 

2.9.07

Em Setembro…

Sétimo mês do calendário romano. Para mim, há muito que Setembro é o primeiro…

Mais uma vez, volto à escola na expectativa de encontrar jovens sedentos de saber ou que, pelo menos, eu seja capaz de os motivar. Sei que alguns têm objectivos definidos e que procuram alcançá-los a qualquer preço. Sei, também, que muitos outros vêem na escola um tempo imposto e inútil e, por isso, cedo mostram o seu desinteresse, de forma passiva ou activa: os mais activos são os mais inconformados e rapidamente se tornam indisciplinados. (Diria que a indisciplina, ao contrário do que muitos pensam, é gerada pela própria escola, pelo próprio sistema educativo. No limite, todos os sistemas procuram disciplinar, normalizar, fazer obedecer, e, para o efeito, geram normas que convidam ao desvio, à delinquência.) Sei, ainda, que são raros os que se apresentam disponíveis para aprender sem exigir contrapartidas.

Neste contexto, confesso que me sinto cansado, pois, pela 33ª vez, o sistema me convida a fazer de conta que é possível modificar a heterogeneidade de atitudes sem alterar minimamente os objectivos, os programas, as técnicas de avaliação; convida-me a fingir que se eu for um "bom" professor, qualquer insucesso volverá sucesso; convida-me a aceitar que o fracasso dos meus alunos é o meu fracasso. Todavia, ao normalizar-me, o sistema convida-me à indisciplina (ou à desistência?) …

E quando chega Setembro, sinto que os muros se elevam e começo a ouvir, cada vez mais perto, o poema de Fernando Pessoa:

 

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

 

Um mar onde bóiam lentos

Fragmentos de um mar de além…

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

13.09.1933

 

31.8.07

A propósito do Dr. Vasco de Campos

Rita Campos

   

Muito obrigado pelo esclarecimento. A sua explicação sobre a génese e os objectivos da SPDA é oportuna e valiosa, pois muitos dos actos do ser humano devem ser vistos numa perspectiva altruísta e não apenas ideológica, no sentido restrito do termo.

Sou lisboeta de passagem: raros são os pinheiros que sobrevivem na capital e da "caruma" quase que já não há rasto.

   

29.8.07

As contas de Alberto de Lacerda (1928-2007)

A REDE

O que eu sustento, o que eu não invento, o que eu prometo,

o que as palavras e as praias perpetuam

na alegria verde do amor,

devolve-me as estradas e o princípio,

o alegre princípio!

 

A fauna dilacerada refugiada no verso,

o silêncio de pedra das horas perdidas,

deixam outra vez aquela distância

onde encontro o palácio dos meus sete anos

e as portas monumentais ultrapassadas

só pela infância mortal duma beleza mortal

como Londres à tarde nos finais de Novembro.

 

O que sustento, o que eu descubro e não invento,

o que eu repito exaltadíssimo,

lembra às vezes a rede potente

que se desfaz, só na aparência,

para os que esperam duma forma errada,

para os que nunca se sentaram no meio da estrada,

para os que nunca sorriem por acaso,

e não se destroem num ritual preciso

igual às vozes puras da meia noite do mar.

 

O que eu sustento, o que eu não invento, o que eu prometo

é a alegria límpida das lisas

planícies de certas visões insuportáveis de luz.

O que eu prometo é o que eu vi, testemunha e nada mais.

Eu canto o que existiu e existirá, glória suprema

Dos deuses e não minha.

                Londres, 11-1-54

 

(O poema é de Alberto Lacerda; os sublinhados são meus)

 

Nem Ideia, nem Luz nem Ideal

nem Compromisso nem Infância

a Pátria é uma quimera

a Vida uma ilusão.

O que eu prometo é o que eu vi, testemunha e nada mais.

    

 

26.8.07

As estantes brancas e vazias

Ocupavam quase todas as divisões do duplex da Ferreira Lapa.

Uma mesa branca recusava abandonar o centro de um gabinete de leitura. Não se sabe como entrou, se foi construída ali. Era impossível fazê-la passar pela porta. Mesmo desmontá-la revelou-se uma tarefa insuportável.

Nas estantes jaziam ainda alguns pacotes de livros enviados pelas editoras, sobretudo, francesas.

Aquele espaço, um pouco kafkiano, exigia ao ocupante algumas capacidades circenses.

EPC, vítima de doença extremamente debilitante, mudara-se. Mas "o personagem" ficara. Sei que ainda voltou para recuperar o correio. Subiu lenta e teimosamente até ao 3º andar. E quando lhe abriram a porta, só pediu uma cadeira para descansar daquela ousadia. E lá esteve a explicar, entusiasmado, a sua vida, os seus livros, como se aquela fosse a última vez…

E era. As estantes, essas, vão ficar brancas e vazias…

 

 

24.8.07

A lei...

A lei de Deus (do soberano, do príncipe) é despótica, mas há quem diga que é amor!

A norma é dor! não quer saber do amor.

Ultimamente, perdemos a noção da diferença: a norma vestiu a pele da lei. Novas leis convidam-nos diariamente a engrossar o campo da delinquência. A lei gera o espectro da ilegalidade, aumenta a desigualdade.

E sob o rosto do legislador, espreita o amor do soberano que nos esconde que «é mais prudente reconhecer que a lei é feita para alguns e se aplica a outros (…); que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.» Michel Foucault, Vigiar e Punir, 1977

E por outro lado, tal como Foucault receava, os juízes demitem-se cada vez mais de julgar, e a comunicação social (?) não hesita em apropriar-se do espectáculo da investigação, vulgarizando-a até que a prova se dilua no cepticismo dos espectadores…

22.8.07

Vasco de Campos

A D. Isabel, minha hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro:
«Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra».
Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa, e espreito por uma fresta da janela.
Amanhecia.
E dum céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos.
Abro a porta da rua.
Um recoveiro com um macho albardado seguro pela arreata, elucida-me:
— «É para ir tirar uma criança à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra...».
Há quanto tempo está em trabalho de parto? Inquiri.
«Trabalho... Trabalho... Há quinze dias que não faz nada. Desde que lhe deram as dores».
Assim se inicia o livro "SERRA! Caminhos de um médico" de Vasco de Campos, ed. Moura Pinto
Sobre este médico (e escritor) nada sabia até chegar à Ponte das Três Entradas. (Como não gosto de pontas soltas, aqui deixo algum trabalho de férias.)Ao olhar para uma placa, na entrada do camping, percebi que o homem se revia no pequeno Alva, que por ali fluía. Entretanto, ao deslocar-me a Avô, verifiquei que o Centro Cultural, também, tinha como patrono Vasco de Campos. Por outro lado descobri que o município de Oliveira do Hospital não só lhe atribuiu e requalificou uma praça na sede do concelho, como lá lhe colocou, em 2006, o busto.
(… Entretanto, vou pensando no exemplo da Escola Secundária de Oliveira do Hospital a cuja BIBLIOTECA ESCOLAR foi dado o nome de Dr. VASCO De CAMPOS… e naquelas escolas por onde passaram e se formaram tantos ilustres escritores, embora alguns tenham dificuldade em aceitá-lo... E não entendo a amplitude do anonimato…)
E não me sai da cabeça aquele taxista que me explicou que, noutros tempos, quando o médico Vasco de Campos residia em Avô ou, mais tarde, na Ponte das Três Entradas, ele era uma figura insubstituível naqueles vales e montes, sobretudo nos invernos rigorosos, cavalgando o macho para acudir a um parto, a uma pneumonia, a uma tuberculose, indiferente à riqueza ou à pobreza do paciente. E que muitas vezes para além de nada cobrar ainda mandava pagar a conta na farmácia. No entanto, o tom utilizado pelo taxista ao referir “noutros tempos” lançou-me numa obscura reflexão sobre a relação do médico com a comunidade local… Apesar de se adivinhar na voz do taxista a gratidão de quem também beneficiara do zelo do médico, via-se que algo o preocupava, como se o imobilismo local também fosse da responsabilidade do ilustre médico, poeta e pioneiro agrónomo e turístico.
(Num outro registo, ia ouvindo, na rádio que, em Agosto, em Pedrógão Grande, só havia um médico de serviço.)
PS: A minha obscura reflexão desanuviou-se um pouco quando li o seguinte: A Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô (SDPA) está a comemorar as bodas de ouro. Fundada oficialmente no primeiro dia de Maio de 1957 pelo médico e escritor Vasco de Campos. Parece, no entanto, que a Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô evoluiu pois “neste meio século de existência a SDPA tem-se vindo a revelar como a principal alavanca do desenvolvimento da vila de Avô, sobretudo nos domínios da cultura e da acção social. Impulsionadora do Centro Cultural Vasco de Campos, em 19 de Junho de 1993, a SDPA – uma instituição de utilidade pública - tem-se concentrado ultimamente na área da acção social. Em 2004 inaugurou um lar de idosos na antiga e histórica vila, hoje frequentado por cerca de 40 utentes. Presidida pelo presidente da Junta de Freguesia local, Aristides Gonçalves, a SDPA possui ainda um ATL, frequentado por 26 crianças, e é a entidade gestora da ilha fluvial do Picoto – um dos mais belos espaços de veraneio do concelho de Oliveira do Hospital. A instituição, que é hoje o maior empregador local, prepara-se agora para construir o primeiro Lar de Acamados do concelho. Trata-se de um investimento de cerca de um milhão de euros – com capacidade para 22 utentes – que a SDPA espera inaugurar num espaço de dois anos. O novo edifício, com uma área de cerca de 800 metros quadrados, será um prolongamento do actual lar, passando a serem comuns os serviços aos utentes. Presente na cerimónia dos 50 anos da instituição avoense, o presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, Mário Alves, comprometeu-se a apoiar o novo desígnio da SDPA, pois conforme considerou a SDPA "tem estado na primeira linha da cultura e acção social no concelho".
A descoberta desta SDP lança-me outro desafio: quantas SDP terão sido criadas durante o Estado Novo? E Onde? E o que é feito dessas “sociedades”?

19.8.07

Museu de Esposende 2007 e Ventura Terra


Ventura Terra
Parece-me que a Escola Secundária de Lisboa Luís de Camões, que, em breve, celebra os 100 anos da inauguração do edifício, bem poderia estabelecer um protocolo com o Museu de Esposende para que a actual exposição pudesse ser apresentada em Lisboa.

Férias



6 de Agosto
Rio Alto (Póvoa de Varzim).
Praia a 100 metros, extensa e convidativa. O vento forte e o frio arruínam completamente a expectativa do veraneante. O Camping da Orbitur, bem organizado, nada pode contra as leis da natureza, apesar da piscina.

7 de Agosto
O dia acorda menos ventoso. Cedo, os campistas ocorrem à praia. O vento intensifica-se ao longo do dia, tornando-se dominante. Fico 35 minutos no areal à espera que o sol cumpra o seu papel. Nem o sol consegue vencer este inóspito vento.
Em alternativa, regresso a As Pequenas Memórias de José Saramago (16.11.1922 -). Concluo a leitura.
Fica-me uma certa simpatia pelas memórias do autor. Talvez pela proximidade ribatejana: o tempo da adolescência, vivido na Azinhaga ou no Carvalhal do Pombo, não é assim tão diferente. A pobreza, o isolamento e a ignorância predominam. Na primeira república, apesar de tudo, os jovens parecem gozar de maior liberdade do que no estado novo. Saramago retrata-nos um jovem sensível, atento às leis da natureza e da sociedade. Ora, durante o estado novo, a atenção estava voltada para o cumprimento das regras, em detrimento da autenticidade. Mas não só o autoritarismo do regime atrofiava a disponibilidade, mas também o relevo irregular e, sobretudo, o clima seco e quente.
O retrato de família, em particular, dos avós aproxima-nos: aquele avô enigmático e antipático parece ser uma figura comum.
A descrição da vida na cidade de Lisboa, nos anos 20 e 30, ajuda-nos a compreender as dificuldades sentidas pelos pequeno-burgueses, semi-analfabetos, obrigados a viver em quartos, num universo de cúmplice e, por vezes, promíscuo. Apesar disso, para Saramago, esse tempo foi de aprendizagem e, mesmo, de algum triunfo. Um tempo em que toma consciência, em particular, durante a guerra civil espanhola, da natureza do regime salazarista. O melhor testemunho é quando procura fugir ao alistamento na mocidade portuguesa ou, pelo menos, procura evitar a distribuição da farda verde e castanha no Liceu Camões.
Sente-se em As Pequenas Memórias, um certo ajuste de contas. Como se o autor quisesse dizer que o sucesso pouco tem a ver com a origem social e cultural. De certo modo, Saramago esforçou-se por aplicar a máxima do avô: «Trabalho que se começa, acaba-se, a chuva molha, mas ossos não parte.»

8 de Agosto
Deslocação para Fão, Esposende. Camping lotado, residencial. Enfim, lá se arranjou um simulacro de alvéolo. A praia a 800 metros. Extensa, com menos vento e menos frio. Ao sol durante 1 bloco de 90 minutos. Apesar de tudo, sinto-me melhor numa sala de aula. Sacrilégio, eu sei. Mas, está-me nos ossos! Estes ossos que se querem separar de mim. Talvez, para os ter um pouco mais comigo, suporte este ritual de exposição ao sol. No entanto, sinto que tanto o calor como o frio me debilitam e me deixam mal-humorado.
Para enganar estes rituais de Verão, dedico-me a ler Vigiar e Punir, de Michel Foucault, em traumatizante tradução brasileira. Personagem principal: o corpo supliciado, espectáculo oferecido pelo soberano ao povo, mas que a partir de 1840 cedeu o lugar à alma.

9 de Agosto
Museu de Arte de Fão (inaugurado em 2004). Apresenta a colecção de Eduardo Nery, O Eterno Feminino, Emoção e Razão, A Mulher na Arte Africana. Predominam máscaras e esculturas femininas de países como o Congo, o Níger ou o Mali. Em todas elas a feminilidade se expõe de forma crua, deixando-me a perguntar se este tipo de escultura resulta de uma divinização da mater biológica e social ou de uma idealização da beleza feminina. A responsável pela exposição, por seu lado, coloca-nos uma outra questão, também ela, interessante: Existe fronteira entre objectos de arte e "artefactos"?
Passeio pedestre a Ofir e às margens do rio Cávado. Uma longa avenida, rodeada de casas apalaçadas que espreitam por entre o pinhal. Algumas em ruínas ou transformadas em discotecas decadentes. Ao fundo, a praia concessionada, lotada de barracas e fregueses. O rio, lá longe, separado por estevas (?)
2 horas ao sol na praia de Fão. Um sol agradável, sem muito vento, com água fresquinha…
À noite, observação dos astros, em Ofir. Vê-se bem o planeta Júpiter e 4 das suas 21 luas. A sessão poderia ter sido mais didáctica e o local deveria estar menos iluminado. O Ciência Viva por vezes desperdiça as oportunidades!

10 de Agosto
De Fão para Esposende, há paragens de autocarro, mas ninguém se preocupa em afixar qualquer horário. Com muita paciência, lá se chega ao destino. Esposende é uma cidade (?), onde as manchas urbanas se cruzam com zonas campesinas e ribeirinhas. Tipo três em um. Aposta-se mais na frente ribeirinha, mas as obras não têm fim. Tudo atabalhoado. A destoar, as igrejas de lustrosa talha barroca e o museu, onde tive o prazer de ver uma exposição da obra do arquitecto Ventura Terra.


11 de Agosto
Ida a pé à Apúlia. 40 minutos para cada lado. Sensação de desleixe. A Câmara de Esposende não parece primar pelo planeamento. Cada um utiliza os recursos naturais como lhe apraz. E a Câmara, apesar de tudo, deve viver desafogada. Os moinhos da Apúlia estão transformados, à excepção de 3 ou 4, em casas de veraneio.
À noite, breve incursão pelo festival de marisco e pela feira de artesanato de Fão. É extraordinário como os portugueses apreciam a manjedoura! Se o mundo estivesse a acabar, estes gastrónomos não desviariam o olhar da travessa de marisco. E este ritual repete-se um pouco por todo o país: de Olhão a Fão.

12 de Agosto
Do litoral ao interior. De Fão para a Ponte das Três Entradas, junto ao rio Alva.
Ao longo das estradas, vende-se um pouco de tudo, em feiras improvisadas. Sobretudo, entre Fão e a Póvoa do Varzim. Fico com a ideia que a ASAE ainda não percorreu estes estendais de produtos mal acondicionados e empoeirados. Por outro lado, vou percebendo por que é que se diz que o Norte está cada vez mais pobre. Não sei se está mais pobre, mas percebi que desconhecem a DGCI.

13 de Agosto
Viagem num autocarro extraordinário ao Santuário de Nossa Senhora das Preces. Bilhetes a 1 euro e 79 cêntimos.
Não esquecer Vasco de Campos.

14 de Agosto
Ida a Oliveira do Hospital. Perícia do condutor e mau planeamento das localidades, designadamente de Avô.

15 de Agosto
Chuva na Ponte das Três Entradas. Almoço no restaurante da Ponte. Falhou a organização: os vizinhos de mesa, cansados de esperar, abandonaram a refeição; o cozido à portuguesa abusou da farinheira doce (?). Carote para o serviço prestado. Na Província, há, por vezes, a preocupação em aproveitar a ocasião.

16 de Agosto
 De regresso ao litoral. S. Pedro de Moel. Praia poluída. Maré cheia, sem areia, com zonas interditas. Dentro de poucos anos, a praia terá desaparecido. A construção civil sobre as arribas mantém-se e o oceano torna-se numa enorme cloaca.

17 de Agosto
Verifico que, numa localidade procurada por milhares de veraneantes, não há uma única caixa multibanco. Estão anunciadas duas! Ninguém parece reparar nisso. Os CTT abrem, apenas, às 14 horas. Um dos postos clínicos está encerrado para férias!
No parque de campismo da Orbitur é o salve-se quem puder. O restaurante só serva almoços até às 14 horas. Começo a dar razão àqueles caravanistas franceses que, em Fão, me diziam que em Espanha e Portugal é tudo igual. É impossível encontrar um lugar acolhedor e bem organizado.
Continuo a ler Vigiar e Punir, de Michel Foucault. À medida que avanço na leitura, compreendo melhor aquela estafada ideia de que os brasileiros subvertem os textos que traduzem.

18 de Agosto
Como se o destino existisse, reencontro, em S. Pedro de Moel, dois amigos que não via há 20 anos. Mas para que isso acontecesse, foi necessário que, simultaneamente, alguém nascesse e morresse. E para o feito também contribuiu o ruidoso rio Alva que incomoda o sono leve, que não o meu.

19 de Agosto
Interrupção da viagem. O Sol, ao contrário do prometido, continua a brilhar sobre a praia poluída de São Pedro… poluída pela Ribeira dos Milagres. Quem diria?


3.8.07

Torre Bela

   

Para quem nasceu depois do 25 de Abril de 1974 e sente alguma curiosidade pela euforia revolucionária, recomendo-lhe que vá ver o filme TORRE BELA, de Thomas Harlan. 

Encontramos lá, bem explícitas, as causas da frustração da classe trabalhadora, mas, sobretudo, podemos ver por que motivo continuamos a perder terreno em tudo o que respeita à transformação humanizada da sociedade.

Um filme que mostra como os portugueses estão habituados a tomar o destino nas mãos sem para isso se preparar minimamente. Desde a "arraia-miúda", que içou o mestre de Avis ao poder, que acreditamos no voluntarismo colectivo ou, em alternativa, rendemo-nos a todas as formas de messianismo que nos possam libertar deste desterro acanhado a que orgulhosamente nos agarramos desde o século XII.

Infinitamente pequenos, sonhamos o infinitamente grande.

O filme TORRE BELA, apesar de brilhante, por momentos, adormeceu-me o cérebro: sempre que as vozes se sobrepõem, sempre que o ruído aumenta, a minha atenção recolhe para uma forma de vigília que me deixa entorpecido. Parece-me uma defesa um pouco primária, mas que, de facto, me atormenta desde a infância.

Não querendo evocar esse tempo, fico, contudo, com a sensação de que certas vivências  desse tempo remoto são responsáveis pela minha descrença nos movimentos de massas.

   

31.7.07

Quando o vigário pode mais …

Nas sociedades democráticas, o exercício do poder está a ganhar músculo… Basta pensarmos na quantidade de homens e mulheres que cultivam a nobre actividade da musculação…

Ao mesmo tempo que a legitimidade do poder executivo se esgota em meses, a 'sociedade democrática' vai definhando. Cientes dessa fatalidade, os executivos rodeiam-se de uma nova inteligência, defensora de medidas draconianas, apresentadas majestosamente como redentoras…

Em nome da eficácia, as antigas corporações são varridas e substituídas por novos "corpos" (de titulares e outros!) … O puzzle é sedutor, mas esconde as regras ou deixa-as pingar uma a uma, gerando ansiedade, instalando o desassossego… (Há quem já não saiba se pode ir de férias!)

Atribui-se ao corpo uma cabeça e deixa-se que o estômago se alargue. Quanto ao coração, este volta a ser a sede das atribulações! Tudo bem proporcionado. Mas quando chega a hora da verdade, escondem-se os resultados, não vá alguém considerar-se mais habilitado ou mais competente. E porquê?

Porque a inteligência que nos governa é constituída por vigários que, nas suas dioceses, cultivam o registo autoritário, deixando aos prelados a palavra redentora. E quando um desses vigários se excede, o prelado, em vez de o expulsar do rebanho, protege-o religiosamente da canzoada.

Esta espécie de vigários (de vígaros?) é colocada estrategicamente em todas as repartições porque é ela – a espécie – que zelosamente aperta as rédeas à 'irrequieta sociedade' democrática.

PS: Esta diatribe surge no dia em que aceitei ser provido como titular. Resta-me saber do quê. E continuo sem saber qual é a diferença entre ser titular e "efectivo do quadro de nomeação definitiva". Eu não sei a diferença, mas uns tantos colegas ficaram a saber porque ao não serem providos perderam o rasto ao tempo em que integravam o "QND". Nesta vigariaria nada é definitivo! E estou a referir-me a pessoas com mais de trinta anos de exercício da profissão docente. Alguns começaram a exercê-la antes do 25 de Abril, no crepúsculo do Estado Novo. Tiveram que lidar com a euforia de Abril, vendo-se agora escorraçados… Será castigo? De facto, as medidas que vêm sendo incrementadas mais não são que um castigo por um crime que outros cometeram. O crime dos vígaros deste país.

29.7.07

A canícula

A canícula desfaz-nos

a vertigem e oferece-nos a aprendizagem da lentidão.

Afogueado, estirei o pescoço e vi, lá longe, em lenta cavaqueira, o João Barrento com o Eduardo Prado Coelho.

Compreenderam, ambos, por viagens distintas, que mais vale fugir da vertigem do Sol.

E eu que, desde criança, aborreço o Estio, instalo-me na miudeza das letras, à espera que a canícula cesse… e começo a apreciar a vagueza dos enigmas.

Ultimamente, os enigmas ou, melhor, os dilemas vêm-me sufocando e, eu, irresponsável, não percebia que eles me convidavam a reaprender a lentidão, tal como a canícula que se abate sobre a cidade.

 

24.7.07

Dorme ali, num banco de Jardim… na Praça José Fontana

Há dias, sob um lençol de luz, morto ou vivo, Z dorme indiferente ao ruído da cidade.
- As portadas do Liceu abrem para os pátios interiores, e simétricos na cegueira, esquecemos…
Interrogo-me, entretanto, se não será José Fontana quem, descrente da fraternidade, ali repousa…

Quem quer saber quem foi José Fontana?
Quem quer saber o nome de quem por ali dorme?

Procurar saber foi em tempos um dos objectivos da escola pública!
E, hoje, que valores é que nos orientam, ali, na Praça José Fontana?

20.7.07

Os exames…

Lembram-me os exames de consciência em que o sujeito oculta deliberadamente a sua preguiça, a sua má-fé… Os exames escritos deixaram de testar os conteúdos mais complexos, limitam-se a aspectos marginais e, por isso, os alunos que passaram o ano a estudar são os mais prejudicados, assim como os professores que procuraram cumprir os programas.

Como resolver esta perversão? Criando equipas para a elaboração das provas, independentes da tutela ministerial. Em matéria de avaliação, não há nada mais nefasto que o comissário político.

Essas equipas teriam a função de elaborar as provas de exame, submetendo-se rigorosamente aos objectivos e aos conteúdos dos programas. As equipas de autores e de auditores devem ser constituídas por professores do ciclo de ensino a que as provas dizem respeito. A intervenção de professores do ensino superior – desarticulado dos outros graus – deve ser evitada.

Infelizmente, o caminho tem sido outro: a irresponsabilidade cresce de ano para ano; os dirigentes entendem que "é humano errar" e que as culpas são sempre dos outros… e lá continuam como se ninguém saísse prejudicado…

Há, em Portugal, uma crença muito conveniente: somos todos igualmente capazes, sobretudo se não for preciso fazer um esforço… Procuramos a facilidade e odiamos aqueles que persistem em vencer os obstáculos.

PS: O comissário político está alastrar como alastraram, no passado, os frades e depois os barões. Viva o cacique! Vivam os almirantes!

15.7.07

A propósito de um pedido de desculpa…

Num país com tão pouca vontade de trabalhar, como é possível obter boas classificações em disciplinas que exigem método, disciplina e sacrifício?

Num país em que os poucos que se esforçam se vêem condenados ao desemprego ou, na melhor das hipóteses, a empregos precários e mal remunerados, o que é que podemos dizer aos jovens que se prepararam para os exames, estudando os conteúdos mais árduos, e que acabaram por ver defraudadas as suas expectativas?

A fraude começa no 1º exame e repete-se até ao final da licenciatura. Uma licenciatura que, entretanto, deixa de o ser… é apenas o 1º ciclo de um processo inventado para alimentar clientelas. E essas clientelas são cada vez mais constituídas por políticos analfabetos! Clientelas que distribuem as prebendas e as comendas entre si.

Há anos que os exames não separam o trigo do joio!

E agora ainda inventaram o critério de avaliação que permite aferir da qualidade do trabalho do professor pela comparação entre as classificações atribuídas por si e as dos colegas da mesma escola e, sobretudo, pela comparação com os resultados dos exames finais. Como é possível comparar o trabalhador honesto e responsável com o que vive da fraude?

(Imaginemos que, numa 6ª feira, às 19 horas, necessito de atravessar a Ponte 25 de Abril (?). Parto da Praça de Espanha, três faixas de rodagem – só a central dá acesso à Ponte. Cumpro aplicadamente o código. Só por volta das 20:15, ultrapasso a portagem. Entretanto, à direita e à esquerda, automóveis, autocarros furam, velozes, e gastam menos 30 minutos do que eu a atingir o mesmo destino.) Terá valido a pena ter estudado e aplicado o código da estrada? Em Portugal, não. Para os Ministérios da Educação e do Ensino Superior, também não!

Todos sabemos que a fraude existe em todos os sectores da vida nacional e, na área da educação, ela assume proporções incontornáveis. O polvo deixou de estar escondido e os seus tentáculos, oportunistas e ignorantes, movem-se continuamente asfixiando a presa.

 

9.7.07

Em dívida…

Estou naquela fase em que oiço vozes ininteligíveis capazes de destruir qualquer templo… com ou sem comunhão, esse ritual de disfarçada antropofagia prenunciadora de morte sem ressurreição. Sei, agora, que há anos que não oiço a voz inconformada do Silva Carvalho – uma voz, por vezes, claustrofóbica, mas que procurava o silêncio das paredes para sair daquele corpo pesado e libertar-se em extensas pautas brancas; uma voz capaz de combater o estereótipo com outro estereótipo. Não lhe ouço a voz nem lhe percorro as pautas silenciosas que em vão se me oferecem, como se o compositor não passasse dum excêntrico capaz de percorrer continentes à procura de uma razão outrora perdida…

E fora dessa razão, as pautas libertaram-se das amarras e impõem-me que as percorra, tão sozinho como o Poeta desavindo com a convenção e a tradição do Ocidente:

Que resta do pensamento? Penso que sinto

o poema como se fosse a realidade de onde brotou,

penso que me sinto como se a realidade que sou

não fosse oriunda de nenhuma realidade,

penso que pensar é um mundo à parte do mundo

onde se vive como parte ou partícula

dita tantas vezes insignificante. Que resta

pois de mim quando nenhum rosto sai ou entra

na imagem que de mim se desfaz enquanto perfaço

palavra a palavra, sentido a sentido, o poema?

Ser é não estar, é passar como o tempo passa

sem que a passagem seja presenciada pelo tempo.

É repetir mil vezes a pergunta fatídica

para que a resposta não possa ser figurada.

Silva Carvalho, (29/6/1992) extracto de Os Factos do Pensamento ou a Terrível Figura do Impensável, Crítica das Representações, Brasília Editora, Porto

PS: Talvez pudesse ter optado por escrever um lacónico e-mail! E o Silva Carvalho (não confundir com o Armando), lê-lo-ia pensando: «este gajo não leu nada do que lhe ofereci!» E teria razão, e é pena, porque esta voz acabará por se levantar dum chão que nunca calcou, por escorrer das paredes nocturnas em pleno meio-dia…

 

5.7.07

A dor do olhar…

(O fotógrafo suicida pede desculpa à vida e retira-se para não perder mais paisagens.)

Há quem diga que viajamos para tirar fotografias. De facto, a viagem e a fotografia confundem-se, para mais tarde nos iludirmos.

Da viagem fotografada fica a sensação de perda irremediável, de desencontro fatal, como se a imobilidade pudesse adiar a morte. Ai, o fascínio pela imagem – cristal!

Ora a fotografia imobiliza, toma formas letais sob películas de vitalidade esplendorosa - dos olhos agigantam-se corpos de areia! E das areias elevam-se cinzas vulcânicas.

Lá ao fundo, à volta do coreto, um pouco mais adiante, na tímida alameda, o fotógrafo ignora as paredes de cartão porque quem fixa de frente a morte acaba por cometer suicídio.

 

4.7.07

Oficial medíocre


«Pelo contrário, os oficiais medíocres preocupam-se mais em saber se o equipamento está em bom estado de funcionamento do que o seu pessoal.» Daniel Goleman, Trabalhar com Inteligência Emocional, Temas e Debates

Hoje, de acordo com Daniel Goleman, considero-me um "oficial medíocre", pois passei uma boa parte do dia a fazer um inventário de espaços e equipamentos degradados e avariados. Devo dizer que o pessoal, na sua maioria, andou por longe, talvez experimentando os ventos que nos fustigam… Mas é quase sempre assim nesta época do ano!

Apesar de "oficial medíocre", devo referir que a qualidade do espaço condiciona a aprendizagem e que por isso o "pessoal" se sente desmotivado para ensinar e aprender em salas, onde há muito não entram nem pedreiros, nem carpinteiros, nem pintores, nem…

Quanto ao equipamento avariado, o que se verifica é que a falta de um habilitado responsável pela sua manutenção inviabiliza qualquer tentativa de mudança de processos de ensino. É inútil dar formação ao pessoal se o espaço e os equipamentos se degradam diariamente sem qualquer esforço de reabilitação.

A liderança passa por uma atenção muito particular às circunstâncias em que o homem aprende e trabalha, devendo estar especialmente atenta à qualidade das ferramentas e à sua distribuição equitativa. Se isso não acontecer, a curto prazo, a liderança torna-se autoritária e, finalmente, irresponsável, pois acabará por destruir a instituição, arrastando para o desespero todos aqueles que, em algum momento, nela acreditaram.

PS: A IGREJA das "almas" há muito que se preocupa em receber bem os "corpos"! Atente-se no ar puro e limpo da Igreja matriz de Avis! E, pelo contrário, observe-se o lado terroso da memória Joanina!

1.7.07

No Maranhão, terra de maranhas...


Por (de)formação profissional poder-se ia pensar no lugar onde o Padre António Vieira proferiu o famoso "Sermão de Santo António aos Peixes" e também donde enviou as famosas "Cartas do Maranhão" a El-Rei D. João IV, a partir de 1654. Não. Estou a referir-me à Barragem do Maranhão, situada no concelho de Avis, a 165 Km de Lisboa.
Lá decorreu, neste fim-de-semana, uma interessante competição de remo, "patrocinada" pelo Mestre de Avis. Havia dezenas de remadores, de ambos os sexos, um pouco de toda a parte: Barreiro, Setúbal, Figueira da Foz, Gondomar, Póvoa do Varzim... O associativismo continua vivo! A organização local esforçou-se por ultrapassar a falta de meios e de apoio federativo... Mas, se não fosse assim, não estaríamos em Portugal!
O Parque de Campismo Municipal, em remodelação, oferece sossego e boas instalações aos campistas, apesar de, por exemplo, para ter pão a um Domingo, ser necessário requerê-lo à 6ª feira. Mas onde estaríamos nós se não fosse asssim?
Lá, no quase deserto Maranhão, ainda é possível observar as aves de rapina, protegidas pela serra alentejana, e alimentadas por reses desafortunadas e pelas águas cada vez mais abundantes.
Triste está o casco histórico de Avis, sobretudo no que respeita ao património medieval. E é pena! A Rua da Mouraria, onde ficaria a casa do Mestre de Avis, merece ser conservada de outro modo. A não ser que a ligação do Mestre a Avis não passe de uma patranha ou de uma maranha. Afinal "maranha"pode significar "intriga", "enredo" e maranhão "grande mentira". O topónimo consagraria, deste modo, um lugar em que os seus habitantes seriam dados à arte de enredar no sentido denotativo e conotativo. E talvez algum dos habitantes de Avis, aventureiro ou forçado, tenha um dia aportado às terras de Vera Cruz e dando expressão à maledicência lusa tenha entendido por lá replicar as maranhas, permitindo que o Padre António Vieira escrevesse ao Rei D. João IV: «Tudo neste Estado - o Maranhão - tem destruído a demasiada cobiça dos que governam, e ainda depois de tão acabado não acabam de continuar os meios de mais o consumir - Palvras visionárias que, afinal, não anunciavam o V Império, mas o saque contínuo dessa emaranhada raça que persiste por esse mundo fora.

28.6.07

Da antecipação...

No início dos anos 80, Alberto S. defendia que o problema português tinha uma causa bem definida: demasiados portugueses viviam do estado providência - os parasitas e os preguiçosos; os militares e os polícias; os sindicalistas e os políticos; e, sobretudo, os velhos e os doentes...Ouvi-lo, afligia, dava vontade de o esganar.
Ao mesmo tempo, Alberto S. defendia que os professores perdiam o seu tempo a «lançar pérolas a porcos». - Como é que um jovem de 15 anos poderia comprender Camões épico? - E o lírico? - E Antero? De que servia explicar-lhes a tese e a antítese? - Ainda se aprendessem o ofício de carpinteiro? - Ou de electricista?...
Alberto S. era desconcertante, vestia de cinzento, cultivava a altivez e regava religiosamente uma nogueira que se recusava a crescer, o que o deixava à beira do suicídio. Tinha especial prazer em dizer e fazer mal à "ursa" que lhe aturava as caturrices. E para cúmulo defendia que a obra literária do comunista Manuel da Fonseca era a mais reaccionária da literatura portuguesa pós-segunda guerra mundial.
Várias imagens vívidas de dor e de velhice lembraram-me, hoje, que o pedagogo Alberto S., "ventoinha" encartado, talvez tivesse sido professor de alguns dos actuais ministros, a começar pelo ministro da saúde e a acabar na ministra da educação..., especialmente do primeiro que teve uma ideia um pouco menos radical do que a do mestre, pois este defendia a eliminação pura e simples dos doentes e dos velhos - o ministro acrescentou-lhe uma pérola: por que não oferecer aos doentes pobres (e mais ou menos velhos) os medicamentos que se encontrem fora de prazo?
PS: Sobre a voluntariosa ministra da educação, prefiro não falar a não ser para dizer que lhe falta, pelo menos, uma qualidade (competência?) essencial: «Aqueles que possuem iniciativa agem antes de serem forçados a tal por forças externas. Isto implica muitas vezes agir por antecipação, para evitar problemas antes de estes surgirem ou tirar vantagem de oportunidades, antes de estas serem visíveis para as restantes pessoas. E quanto mais alto estiver situado na escala executiva, tanto maior é a janela de antecipação...» Daniel Goleman, Trabalhar com Inteligência Emocional

25.6.07

Delito ou delação?

Farto de rituais, percorro o corredor à espera do déjà vu: uma acta que faça justiça aos estados de alma de uma minoria insatisfeita e que se está borrifando para o princípio da equidade - os mesmos critérios para todos os examinandos; uma acta que interpele o sistema, mas que não fira a sensibilidade próxima.
Interpelado, quando observava a Machado de Castro e pensava na irresponsabilidade com que se encerram, deixam ao abandono e à voracidade dos predadores um sem número de edifícios escolares, regresso à sala para ordeiramente, qual ovelha mansa, assinar a referida acta e, finalmente, poder "levantar" as provas de exame.
Uma sensação física de náusea instala-se na pele e esfarela-se nos ossos e, sobretudo, esfarra-me o intelecto.
Dias mais tarde, para me aturdir um pouco mais, soube que a interpelação de que fora objecto resultara de uma queixa de uma colega ofendida pelo meu desinteresse e alheamento por aquela cerimónia tão enriquecedora e prestigiante.
Eu sei que o meu desinteresse pelos rituais vem, pelo menos, da adolescência. Nesse tempo, passava horas intermináveis a olhar para os querubins dos tectos, a observar capelas laterais, sempre com a mesma sensação de vazio, pois os morcegos raramente abandonavam a noite esfumada da arte sacra. Na repetição dos olhares, esvaziava-se a visão e prolongavam-se os odores miríficos das açucenas esmagadas por piruetas de incenso...
Desse tempo monástico, restam algumas imagens desfocadas, o luxo do silêncio dos lírios e sobra, também, a ideia de que o meu alheamento não incomodava ninguém. Durante esses longos cinco anos, nenhum colega - chegaram a ser 300 (?) - apresentou queixa contra mim... e os extensos corredores convidavam à meditação, sobretudo aqueles azulejos feridos pelas baionetas napoleónicas...
Acabei, todavia, por ser polidamente convidado a abandonar o falanstério e a reflectir sobre a minha (in)capacidade de aculturação, tarefa que ainda não completei... como se vê...
Felizmente, para mim, naquele tempo ainda não existia a lista dos excedentários, mas, hoje, do fundo da adolescência começa a erguer-se um cajado que se quer abater sobre a ovelha delatora...