27.6.06

Uma oportunidade perdida

«Nos mitos (Ícaro) e nos sonhos, o voo exprime um desejo de sublimação, de procura de harmonia interior, de superação dos conflitos; (...) as grandes nações voam por cima da terra, traindo a psicologia colectiva, pois a vontade de afirmar o poder no céu não é mais do que uma forma de compensar a impotência na terra.»
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, O Dicionário dos Símbolos, Voo
Num tempo em que a inteligência era perseguida, a Bartolomeu Lourenço (alter ego de Saramago) só restava o sonho de voar para tentar saber como é o sol por dentro, para poder mostrar como é a terra de Mafra (o estaleiro do sonho real!) por dentro... Só voando por cima - e não para longe! - lhe era possível ter uma perspectiva global da paranóia dos poderosos... No interior da caverna jamais se acede ao círculo exterior!
O voo temerário liberta, rasga o horizonte, desloca-nos (pequenos ícaros!) para círculos exteriores cada vez mais amplos que nos mostram o pavor interior da terra, mas, ao aproximarmo-nos do sol, talvez possamos ver a fonte da vida... se observarmos a lição de Dédalo.

24.6.06

Nestes dias de silêncio...

Nestes dias de silêncio, fazem-se ouvir os pássaros que chilreiam ininterruptamente. De repente, um aluno pergunta as horas. Substituíra o relógio pelo silenciado telemóvel!
Talvez, seja útil quantificar o rombo financeiro provocado pelos exames nacionais: 50% dos alunos faltam à 1ª fase, o que significa que metade das provas tornam-se desperdício; o mesmo se repete na 2ª fase, pois os alunos inscrevem-se novamente para exame - a floresta sofre!; os telemóveis silenciados durante horas-e-horas deixam de engordar as empresas de telecomunicações e o fisco...
Não vejo ninguém que beneficie com os exames, a não ser, talvez, os médicos: sempre passam mais uns atestados e receitam mais umas pílulas para fortalecer os cérebros dos incompreendidos adolescentes.
(...)
Uma vigilante arruma meticulosamente a secretária: ao centro, as folhas de prova; do lado direito, as folhas de rascunho; do lado esquerdo, a pasta azul que guarda a tesoura, o saco dos enunciados sobrantes e a pauta, onde 15 minutos depois do toque, ficaram assinalados todos os que faltaram na expectativa de que a 2ª fase seja mais simples.
O outro vigilante franze o sobrolho. A prova de Filosofia não difere das anteriores, pelo menos, desde 1998 : a mesma estrutura, os mesmos autores, as mesmas obras, as mesmas perguntas - gostei, particularmente, do argumento socrático de que «a missão do político é fazer de nós os melhores cidadãos possíveis.»
(...)
Creio, no entanto, que, apesar dos alunos poderem memorizar previamente 50% das respostas, os autores da prova se esforçaram por testar uma boa parte do programa de Filosofia. O mesmo não poderei dizer dos autores da prova de Português: qualquer 'corrector' sabe que a maioria dos alunos pode obter 60 pontos (em 200) sem escrever uma palavra; e também sabe que, ao contrário do que acontece na disciplina de Filosofia, o aluno não necessitou de ter lido qualquer obra...
Os exames actuais mais não são que um desaproveitamento de recursos... Que impacto podem ter, por exemplo, os exames de Português e de Filosofia na avaliação final do 12º ano dos alunos internos? Haverá alguém que consiga reprovar? Será que estes exames «fazem de nós melhores cidadãos»?
(Tristes vão os dias / de Lisboa a Timor / à mercê de homens sem valor... // Alegres vão os dias / de Lisboa a Berlim / num vai-e-vem sem fim/

22.6.06

Em que século estamos nós?

Proposta de jogo: Explicite duas das funções das falas contidas neste excerto.
« D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito a sua grande luneta de oiro, e disse:
- Ó Meneses, aquilo que é?
- São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.
- Em que século estamos nós nesta montanha? - tornou a dama do paço.
- Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
- Ah! Sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze...»
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição
_________________________________________
Colocam-se 50 correctores (?) numa sala. Ordena-se-lhes que leiam, comentem e resolvam uma prova, por exemplo, de Português. Prisioneiros da Acta, estão obrigados a registar os seus estados de alma. Concluída a praxe, poderão rumar à sala-ao-lado, onde receberão as provas a classificar. Há anos que esta cerimónia se repete!
Ninguém preside ao acto. Agrupamento? GAVE? Recolhidos ..., admitem contacto telefónico, mais tarde. Na sala, durante 15 minutos, uns lêem, outros relêem e alguns aproveitam para pôr a conversa em dia com o parceiro de ocasião - há um ano que não se viam! Tudo em lume brando. Entretanto, o tom ciciante torna-se conspirativo - há quem comece a dizer em alta voz o que pensa da prova 639...
Uma jovem correctora, assustada com aquele misto de pasmaceira e de conspiração, procura puxar as rédeas para que o bota-abaixo não tome conta da assembleia: há quem não entenda a formulação das perguntas; não se percebe se a prova foi auditada... e se o foi, quem terá sido o auditor? Há quem tenha deixado de entender o significado da palavra «percepção». Não há tempo para distinguir a percepção sensorial da percepção intelectual. Terá o autor da prova pensado nos modos como se percepciona? O que é que aconteceu à clareza que deve caracterizar a pergunta ou qualquer outra «instrução»?
Apressando a conclusão da acta, e como a maioria das «instruções» era ambígua, os correctores reivindicaram, ali, o direito de «aceitar» todas as respostas, fazendo tábua rasa do princípio da uniformidade de critérios. O país começava e acabava para os lados do Jardim da Estrela!
Já em 1975, no anfiteatro do Liceu Passos Manuel, uma outra assembleia de correctores reivindicara a «aceitação» de todas as respostas, numa rejeição democrática de qualquer pretensão de resposta única. O ensino centrava-se definitivamente no aluno; os professores passavam a ser uma fonte - secundária - do conhecimento; os alunos rivalizavam com os professores, pois todos partilhavam as mesmas fontes.
Hoje, esses alunos de 1975 tornaram-se numa fonte única, elaborando provas que nada testam... visando apenas satisfazer a vaidade dos oportunistas e dos preguiçosos...
Creio, no entanto, que esta geração de 75 tem os dias contados. Há cada vez mais jovens que procuram o conhecimento e que se sentem traídos, quando colegas, que ao longo de um ciclo de três anos nada fizeram, acabam por ter classificações idênticas ou mesmo superiores.
Esse sentimento de traição começa a separar as águas. É ver como «respondem» ao trabalho que lhes é proposto. Como o fazem com gosto! Como envolvem os amigos e os familiares na pesquisa a que se aventuram! Como se preocupam com a apresentação do trabalho e, sobretudo, com a qualidade!
Entretanto, há quem diga que a geração de 75, num último estertor, decidiu proibir os trabalhos de casa. Afinal, os "tpc" só servem para acentuar as desigualdades!
Será verdade?

20.6.06

O sorriso escarninho virou esgar...

( Ao contrário de Alberto Caeiro, quero homenagear todos aqueles que, ainda, não desistiram de procurar o sentido íntimo das coisas...)
Neste tempo de imobilidade, enquanto que eles, padronizados, estão aplicados na resolução da prova de sociologia, desloco-me mentalmente na tentativa de compreender o sorriso escarninho que acompanha habitualmente a referência a qualquer ex-seminarista ou ex-padre, como se um ferrete os marcasse definitivamente, tornando-os objecto de uma curiosidade mórbida.
Apesar de se tratar de uma espécie em extinção, o estigma denuncia-os indelevelmente: no modo de falar, no tom, no olhar de soslaio, no andar, no vestir, no excesso do gesto... na forma de estar retraída ou afectada. Provavelmente, a dissolução provoca sempre um labéu e o sorriso escarninho irrompe sempre que a mancha infamante pede a nossa cumplicidade, nos arrasta para a esquerda de Deus... (asserção que não é possível comprovar na sura!)
(...)
Esse sorriso escarninho, que me persegue desde manhã cedo, virou esgar naquele acampamento de vozes desgrenhadas que clamamavam vingança... mas, à medida que a sombra avança, a caruma recolhe as beatíficas agulhas e regressa à imobilidade inicial...e não raras as vezes ao abjecto torpor do sono efémero...

19.6.06

A destruição do sentido... do trabalho...

Bastava ter lido o texto crítico «Memorial do Convento», em Os Sinais e os Sentidos, para não se cair no erro de banalizar o pensamento de Óscar Lopes. Como se a primeira metade do século XVIII fosse, de facto, extraordinária aos olhos de José Saramago ou de Óscar Lopes! O retrato do século XVIII traçado por Saramago é que poderá ser insólito, entre outros motivos, pela «emergência de caracteres populares individualizados no seio de uma grande movimentação multitudinária como que em busca de sentido próprio
A megalomania, a opulência, a hipocondria, a beatice, a libidinagem, o esclavagismo, a xenofobia surgem, no romance, como formas ordinárias, previsíveis do absolutismo grotesco que se abateu sobre o séc. XVIII português. Da procissão à tourada, passando pelos autos-de-fé e pelos lupanares conventuais.
Mesmo se não houvesse outro motivo, bastava a pergunta nº4 do I Grupo da Prova de Exame de Português (639) para concluir que o Ministério da Educação prestou um mau serviço aos alunos, a Saramago, a Óscar Lopes,... ao País.
Infelizmente, esta Prova de exame também presta um mau serviço à Língua Portuguesa porque a redacção dos enunciados é medíocre: I 1.; 2.1 - «Identifique duas das vozes aí presentes, exemplificando cada uma das vozes por si indicadas com duas transcrições do texto.»; 2.2.; 3.; III «apresente uma reflexão sobre a perspectiva referente à exploração do espaço, expressa no extracto do verbete..
E, sobretudo, esta Prova de exame não chega a testar 5% do Programa do 12º Ano. Que competências é que são efectivamente postas à prova?
Afinal, quem é que está interessado em valorizar o trabalho daqueles alunos que leram Pessoa, Camões, Saramago, Sttau Monteiro? E também dos que arduamente escreveram e reformularam múltiplos textos, obedecendo a técnicos e a métodos diferenciados? E de todos os que se empenharam em compreender e aplicar as regras do «funcionamento da língua»
Afinal, para que é que serviu a última revisão curricular?
E quanto à dedicação de muitos professores de Português, mais vale nada dizer!
É, contudo, pena que haja professores que se prestem a servir tão mal a Pátria que os viu nascer!

17.6.06

Poderia dizer-te...

Poderia dizer-te, qual Marco Polo dos tempos modernos, que a chuva ameaçou cair sobre a cidade, mas isso tu sabes: não passou de uma ameaça...
Poderia dizer-te como é ficar em vez de partir, mas isso tu sabes: são mais as vezes que ficas do que partes...
Poderia dizer-te que o cansaço tomou conta dos corpos, mas tu sabes que isso não é totalmente verdade: há sempre uma buzina, uma bandeira que esvoaça nas avenidas da cidade...; há sempre «uma bola branca em cima da cabeça /Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...»
Poderia dizer-te que a Gabriela Llansol publicou novo romance destinado aos 'legentes', que não aos leitores - "Amigo e Amiga. Curso de Silêncio 2004" -, que Mário Ventura Henriques nos deixou, desgostoso da implosão da sua amada Tróia, que David Ferreira não compreende por que motivo o seu saudoso pai - David Mourão Ferreira - foi sendo esquecido ao longo dos últimos dez anos, que Mário Cláudio está convencido que, com o seu 'Camilo Broca', está a prestar um grande serviço à Literatura, transformando o Camilo Castelo Branco numa «caixa de ressonância», talvez num tam-tam... Mas isso tu não queres saber! De que serve sabê-lo? Nem sequer será assunto do exame de Português do próximo dia dezanove! A única coisa que talvez te pudesse interessar seriam as respostas, desde que não fosses obrigado a elaborar as perguntas...
Poderia dizer-te que voltei a ver 'Notorious" (1946) de Alfred Hitchcock, mas isso só serve para me mostrar que a minha memória só se concentra em pormenores, como os da 'chave', da 'adega' e da 'garrafa'. Que mistério é que estes signos poderão esconder-me? Não sei, nem tu podes saber.
Hoje, quero, no entanto, dizer-te que ainda não esqueci o A. Cosme da primeira metade dos anos 80. Hoje, quero, dizer-te que não posso esquecer o grito de dor que me deixou na caixa do correio, em Agosto de 1985:
Não sei ao que me disponho
Nesta angústia que me enlaça;
O tempo é só o que a alma passa
E eu só quero viver outro sonho.
Já não sei mais amar esta vida
Nem defender o que ela me oferece;
Minh'alma mora num corpo que arrefece
Favorecendo esta mágoa tão sentida.
Sou uma substância inerte em peso
Cujas qualidades se perderam na viela
Onde supus uma luz, a mais bela,
Mas que escureceu meu coração indefeso.
Já nem sei bem o que é sofrer;
Acabo por não ter o que me enlaça
E, cadáver rejeitado só de massa,
Esqueço a fonte que me fez viver.
Poderia dizer-te que só, hoje, tive coragem para abrir a caixa do correio, mas isso tu preferes que não seja totalmente verdade...

15.6.06

O Corpo de Deus e a inteligência lógica

«... por agora vai a procissão em meio, sente-se o calor da manhã adiantada, oito de Junho de mil setecentos e dezanove, que é que vem agora aí, vêm as comunidades, mas as pessoas estão desatentas, passam frades e não se dá por eles, nem as irmandades foram todas assinaladas...» José Saramago, Memorial do Convento
Hoje, 15 de Junho de 2006, também na minha memória difusa passa a procissão do Corpo de Deus; outros, talvez mais atentos à intempérie, nela tenham participado, integrados nas poucas irmandades que sobraram da laicização racionalista. Nos passeios, movem-se outros postulantes impacientes, capazes de insultar a custódia patriarcal, enquanto as floristas se esforçarão por vender aquela flor que um dia um menino de coro ofertou a um cano de espingarda.
Hoje, 15 de Junho de 2006, esse menino de coro, já crescidote, indisponível para acolitar qualquer D. Policarpo, rumou a Sul, na esperança de que o Deus Sol o torne num dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis: «Mas quando a guerra os jogos interrompa, / Esteja o rei sem xeque, / E o de marfim peão mais avançado / Pronto a comprar a torre
O que eu não entendo é que nesta república, em nome da liberdade de culto, se tenha banido o D. Policarpo do protocolo do Estado - ideia que, creio, jamais terá passado pelo cabeça do magnânimo Rei-Papa D. João V - e continuemos a aproveitar matreiramente os santos dias do calendiário eclesiástico católico!
Ainda consultei a crónica do Pacheco Pereira, na esperança de que ele questionasse o engenheiro Sócrates sobre a celebração do Corpus Christi num país que, na prática, rejeita as suas raízes, mas ele - P.P., hoje e nos próximos dias, teoriza sobre 'Blogues: a apoteose do presente"... o que me atira, prosternado, para o último parágrafo do Manifesto Técnico da Literatura Futurista (11 de Maio de 1912) de F.T. Marinetti: «Depois do reino animal, eis o início do reino mecânico. Com o conhecimento e a amizade da matéria, da qual os cientistas não poderão conhecer senão as reacções físico-químicas, nós preparemos a criação do homem mecânico de partes mutáveis. Nós o livramos da ideia da morte e, por conseguinte, da própria morte, suprema definição da inteligência lógica

13.6.06

Há dias, há noites...

«Há dias, há noites em que as águas se movem lentas na minha memória. Movem-se?» Eugénio de Andrade, Limiar dos Pássaros
I - Hoje, dia de Santo António, não pensei em nenhum arraial, não segui nenhuma liturgia.
Os ritos dizem-me cada vez menos, num mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo - da pátria, do futebol, dos santos populares. Junho inicia um ciclo de convite ao lazer, com uma acelerada degradação da produtividade. Sempre que o Estio se aproxima, a economia estiola, apesar da propaganda que defende o turismo como um esteio da nossa economia.
II - Hoje, dia de Eugénio de Andrade e de Álvaro Cunhal, ouvi dizer que deixaram de ser lidos, que os seus biógrafos são mais escutados. Preferimos, de longe, a iconofilia à poética, à ideologia! Não admira: estamos no mês em que o indivíduo cede o lugar à tribo.
III - Hoje, quando passei, os nimbos ameaçavam despenhar-se sobre aquele silêncio de lápides. A tribo, taciturna, ignorava as serpentinas que caíam dos tectos, e seguia vagamente o voo mortífero das moscas...
IV - Amanhã, também é dia: a tribo vai desfilar, mortiça... atenta à iconografia...

11.6.06

A força do acontecimento...

Na minha infância não havia "Plano (projecto) nacional de leitura". A força do acontecimento foi de tal ordem que subitamente o jornal "O Século" entrou lá em casa no dia 4 de Junho de 1963(?) - morrera, no dia 3 de Junho, o santo papa: o papa João XXIII. Emprestado pelo logista da aldeia. Creio que, na primeira página, havia uma fotografia..., mas o que me ficou foi o formato daquele jornal. Mais tarde, já no Liceu de Tomar, à época secção do Liceu de Santarém, passei a comprar o jornal ( O Diário de Lisboa, o Diário Popular, A República, A Capital...), mas curiosamente nunca me senti atraído pelo formato de 'O Século'. Na escola primária, que me lembre, não entravam jornais. No Seminário de Santarém, lembro-me que os padres liam 'A Capital', cuja perigosidade política era reduzida, apesar dos 'fait-divers" poderem perturbar a alma. Havia, isso sim, muitos jornais de teor religioso que não me interessavam mínimamente. Nesse período de reclusão, a força do acontecimento não conseguia perfurar as muralhas que cercavam o antigo Colégio dos Jesuítas. Estavamos protegidos da torpe e imunda maré do mundo exterior!
Na minha infância também não havia Plano (projecto) nacional de escuta radiofónica. Havia a outra, entregue ao cabo da aldeia e, provavelmente, a um dos meus tios que era um polícia muito viajado... Só, em 1966, a rádio irrompeu pelos meus ouvidos... na taberna vizinha da mercearia, onde me deslocara para comprar um kilo de arroz. Subitamente, foi o delírio: a algazarra dos homens despertou-me para as ondas da rádio: José Torres acabara de marcar um golo, no Portugal - Rússia, aquele jovem que, ainda há pouco tempo, descalço,vendia peixe pelas ruas da aldeia. Era como se todos nós tivessemos vencido a Rússia, aquela por quem Nossa Senhora tinha vindo pedir a Fátima - «rezem pela salvação da Rússia», a vermelha, porque a branca fora esmagada pelos bolchevista, ou, então, emigrara, na terceira classe dos navios que José Rodrigues Miguéis tão bem havia de descrever...
Ali, naquela aldeia, os órgãos de comunicação eram postos ao serviço da comunidade como chamariz... Para que o aldeão pudesse comprar um transístor, era necessário que partisse, primeiro, para a França ou para a Alemanha... e, aí novamente sim, num sinal de riqueza, em casa, as ondas da rádio misteriosamente ocupavam todo o silêncio...
Hoje, parece que está em marcha um Plano (projecto) nacional de leitura, de escuta, de escrita... Creio, por isso, que, doravante, nenhuma outra criança poderá voltar a queixar-se de falta de informação, de discriminação...
Sobra-me, todavia, uma dúvida: Terá esse Plano (esse acontecimento) a mesma força que a morte do Santo Papa ou que o golo do José Torres?
Bem sei que não devo ter dúvidas, pois não passo de um «experto» em campo de «cientes»!

10.6.06

Neste campo de Marte...

(Dirigindo-se a D. Sebastião) «Todos favorecei em seu ofícios, Segundo têm das vidas o talento» Camões, Os Lusíadas, X, 150
Tudo leva a crer que D. Sebastião não era mais judicioso que os actuais governantes. Por mais que Pessoa lhe elogie a «loucura», o aventureirismo da sua decisão arrastou-nos para uma crise que jamais superámos. A decisão política ignora o talento e, sobretudo, mata os novos talentos, sujeitando-os a uma uniformização castradora.
Quais soldados num campo de batalha, os professores podem ser substituídos sem que haja qualquer prejuízo para os alunos, como se a aprendizagem não fosse mais do que a assimilação /repetição de uma instrução. Neste campo de Marte, aluno e professor perderam a identidade... são peças obsoletas de uma engrenagem puramente mecânica... sem alma. E onde não há alma, não há talento...
Hoje, dia de Camões, é de uma grande insensatez evocar não só a arte, mas, sobretudo, o engenho do Poeta. Continuamos a fingir que lhe seguimos o ensinamento, enquanto espezinhamos o talento num campo de Marte voltado para a foz do Douro...
(Kafka dirigindo-se a si próprio)
«Estou mais indeciso do que jamais estive, só sinto a violência da vida. E estou estupidamente vazio.» Diários, 19 de Novembro de 1913
A violência da vida, a indecisão, o vazio... o vazio, a indecisão, a violência da vida...
Definitivamente, a vida está a mais! Mas há quanto tempo?
Mas será justo pensar deste modo quando tantos jovens precisam de ajuda para desenvolverem os seus talentos?
Se nos concentrarmos nessa tarefa, não teremos tempo para nos ocuparmos da "loucura" de D. Sebastião, o príncipe que o Poeta pretendia desesperadamente educar: «Tomai conselho só d'experimentados,/Que viram largos anos, largos meses,/Que, posto que em cientes muito cabe,/ Mais em particular o experto sabe.» X, 152.

8.6.06

Ondaka

«Ouvir, ouvimo-la mas agarrá-la é impossível - Ondaka, a palavra ou a voz Provérbio umbundu
Ultimamente, o ruído tem vindo a aumentar. Deixámos de procurar 'Ondaka'. Não parece sequer que a consigamos ouvir, quanto mais prendê-la.
Querem, agora, que a aprendamos maoisticamente, no pré-escolar e no primeiro ciclo, em sessões de 60 minutos de revolução cultural. Um robot lerá por nós estórias de encantar e nós, religiosamente, escutaremos a maviosa voz que se anichará definitivamente no nosso pequeno cérebro.
Naturalmente, desenvolveremos a competência de escuta difusa - aquela em que a voz robótica se deixa interseccionar pelos olhos azuis-verdes que nos fitam do fundo de um galheteiro esquecido no canto da aranha...
(...)
Mais tarde, aconselhar-nos-ão a procurar um psicólogo que nos explique por que motivo nos recusamos a ler e, sobretudo, que nos ajude a vencer aquela dispersão que nos impede de distinguir as vozes.
(...)
Enquanto o ruído continua a aumentar, uma distante e irremediável voz ecoa em nós...

4.6.06

Educação à la carte...

«Eu não sei se há país da Europa, em que a criatura, que sobre o seu destino e o dos outros ousa meditar, sofra tão miseravelmente a angústia de pregar no deserto (quando prega) ou a de sentir que os outros falam outra língua (quando se cala e os ouve).» Jorge de Sena, Meditações Sobre a Lei Seca.
Pensar a educação em termos nacionais não é prioridade do Ministério da Educação. A senhora ministra, talvez por influência do ministro da saúde, prefere gerir o ministério como um hospital repleto de doentes e em que a maioria dos médicos também se encontra doente. Por isso, para cada situação clínica, avança com um diagnóstico, que pode ir do encerramento da unidade de saúde a uma sanção pecuniária - em casos extremos, algum médico amigo mais saudável poderá receber um bónus a definir... Mas o que lhe interessa, é assinar muitos contratos e protocolos com as forças vivas locais e regionais, esperando que essas forças sejam suficientemente sensatas, honestas e desinteressadas, que ponham o interesse nacional acima do interesse particular...
(Como é sabido, há muito que essas forças minam o subsolo nacional, deixando qualquer estrangeiro estupefacto face à impunidade reinante. Em Portugal, a impunidade tornou-se um dado cultural. E não se diga que vivemos no reino da estupidez ou num jardim inefável! Pobre Jorge de Sena!)
Desde 1974 que na escola portuguesa não há liderança porque o Estado não tem uma política educativa clara. Prefere que cada escola faça a sua escolha, deixando que o critério político, oportunista ou de simples caciquismo local ou regional se sobreponha à execução de um projecto educativo nacional. E fá-lo hipocritamente, porque esse laxismo lhe permite não pagar devidamente a quem deveria gerir as escolas.
Sem mudança no modelo de gestão das escolas, não é possível mudar o modelo organizativo. A escola não pode continuar a depender da iniciativa de indivíduos ou de grupos - do amiguismo -necessita de ser pensada globalmente por um conselho de gestão executivo e pedagógico, suficientemente ágil nas decisões, mas a quem possam ser imputadas responsabilidades... E esse órgão deverá ser remunerado, de forma diferenciada, como acontece em qualquer empresa pública ou privada.
Em fundo, ouço a senhora ministra perorar prolixamente sobre aspectos pontuais. Não lhe ouço, no entanto, qualquer palavra sobre um projecto educativo nacional. E esse é o problema nº1 da educação: o país não sabe o que quer; prefere andar à deriva, ao sabor dos impulsos dos assessores - especialistas (atomistas) que nunca dão a cara e são pagos principescamente!

3.6.06

Variante Mbala

Querendo fundar uma nova sociedade 'igualitária', os jovens decidem matar os chefes de linhagem - todos os pais (símbolo: cabeça) e todos os tios (símbolo: perna). Passado pouco tempo, e vendo-se perante um animal monstruoso sem cabeça e sem pernas, os jovens decidem restaurar a autoridade dos velhos.
Na situação actual, nem os jovens parecem querer matar os velhos, desde que estes lhes continuem a alimentar os vícios, nem o animal acéfalo e perneta que nos governa parece disposto a prescindir do seu trabalho..., mesmo que lhes reserve uma prateleira supranumerária no disco rígido do ministério da rapina.
Os velhos são os novos escravos do séc. XXI, irremediavelmente sujeitos ao contrato da mobilidade, e totalmente anatemizados se procurarem viver para além dos 65 anos. Não podendo ser suportados pela família que, entretanto, deixou de ser a célula matricial da sociedade, é lhes pedido um esforço derradeiro: - Em nome dos futuros pensionistas, devem continuar nos seus postos de trabalho até morrer!
Paradoxalmente, a maioria dos futuros pensionistas - os jovens, pelo menos, até aos 35 anos de idade - continua desempregada sem mostrar qualquer vontade de eliminar os chefes de linhagem.
Muitos daqueles jovens que entraram na vida activa em 1973-74-75, começaram por colocar a sua juventude ao serviço de um Ideal 'igualitário', suportaram todas as arbitrariedades de preclaras luminárias, para agora estas lhes dizerem: - Sois um fardo que a nação só pode suportar se continuardes a trabalhar, de preferência, até morrer.
Entretanto, os jovens de hoje continuam uma vida virtual, comportando-se como os negreiros...

1.6.06

Um país sem alma!

«Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.» Álvaro de Campos, Ode Triunfal
O Governo em geral (o M.E., em particular) em vez de combater os factores que contribuem para o insucesso do sistema educativo, decidiu encabeçar uma cruzada contra os professores, responsabilizando-os pela insolvência do Estado. Quer, agora, reduzir a massa salarial global dispendida com os professores, aumentando aqueles que se encontram no início de carreira ( gesto hipócrita de quem não se propõe contratar novos professores!) e aumentando, também, os quadros superiores da Administração Pública ( o que esconde um efectivo aumento das medíocres hostes partidárias que ocupam todos os lugares de relevo - da Assembleia da República aos Ministérios, passando por todas as correias de transmissão...). Quanto aos restantes professores, reformula-lhes as carreiras de modo a que progressão seja mais lenta, isto é, reservando os lugares do topo, certamente melhor remunerados, para aqueles que se disponham a servir, não o Estado, mas os partidos (talvez, se pudesse, aqui, falar em castas!) que controlam a vida política.
O que está em causa não é a reforma da educação, não é a formação dos jovens de modo a que se possam integrar cedo na vida activa, contribuindo para o rejuvenesciento laboral, não é ajudar os professores a alterarem os seus métodos de trabalhar e, também, não é, ao contrário do que se veicula através das televisões, dar mais intervenção aos encarregados de educação na avaliação do trabalho realizado pelos professores. O que se esconde é a decisão de distribuir a riqueza, nacional ou europeia, por todos aqueles que zelosamente suportam o poder. É a partilha da pimenta, do ouro, do açucar, da borracha, dos diamantes, do petróleo, das remessas dos emigrantes, dos fundos europeus, dos subsídios, dos impostos... IVA, IRS, IRC...
É o salve-se quem puder num país que nunca conseguiu, por si, equilibrar o deve e o haver, e que não querendo (ou não podendo?) mudar de rumo, decide tudo fazer para desacreditar os seus funcionários...
Um país sem alma!
( Delírio)
E não vale pena dizer que vendemos a alma ao Diabo. Porque o Diabo é muito mais inteligente do que aqueles que, despuradamente, nos insultam e nos envergonham. É vê-los nos estádios, nas praças, nas televisões... sempre a trabalhar pela nação!
O que vinha a calhar era uma invasão estrangeira! Talvez os galheteiros fossem definitivamente corridos...
Post scriptum: Não sei se posso continuar por muito mais tempo contra-a-corrente. Já começo a sentir-me excedentário!