29.2.20

Em ano bissexto

Nunca se sabe o que nos espera… o próprio espírito santo anda em dificuldades. O pai deixa-o marinar, mas baixinho, porque os desígnios divinos foram subvertidos pelo filho-homem...
A galeria dos rebeldes é extensa, de orfeu a sísifo sem esquecer prometeu… todos eles, no entanto, sofrem o divino castigo. Só não sei se o cumprem neste dia, em ano bissexto.
Eu cumpro-o, sem dúvida, embora devagarinho para não incomodar as aves que por aqui passam… até porque para o ano…

27.2.20

É um outro

Quem aqui escreve não sou eu, é um outro que, em certos dias, não sabe ao que anda. Vai andando, mas volta sempre atrás… parece que os grilhões são elásticos, mas só até um certo ponto…
O problema é que o eu já percebeu que o ponto não é assunto seu. É um outro quem o determina, mas não aquele que não sabe ao que anda… 
E esse outro é mais do que uma ideia, é o referente que vive em parte incerta, mas sempre para lá da linha invisível que poderia esclarecer esta desfiguração.
Em suma, sem encontrar o rosto, o eu vê-se desfigurado e é quanto lhe basta, por agora.

24.2.20

Os Crimes de Hamburgo

Não conheço o Francisco Carvalho. Recentemente, descobri que publicara um romance - Os crimes de Hamburgo (Outubro 2019, Coolbooks). Por coincidência, verifico que o autor nasceu em 1978, tal como o meu filho, sendo ambos advogados e que, além disso, a minha filha, um pouco mais nova, vive em Hamburgo, militando na defesa dos direitos humanos: dos curdos atirados para o exílio, aos refugiados em geral...
Eu próprio, em agosto último, visitei, durante alguns dias, a cosmopolita cidade de Hamburgo, tendo ficado com uma imagem de um lugar onde a diversidade humana é bem visível e diferenciada e o clima severo e imprevisível. 
Não tive tempo de tomar o pulso à riqueza e à miséria, mas percebi que as relações entre autóctones e estrangeiros não são fáceis e que há demasiado silêncio no palco e ajustes de contas nos bastidores.
Sobre o romance, que li numa semana, o que posso dizer é que está muito bem construído e que me confirmou todas as minhas suspeitas e me ajudou a compreender um pouco melhor a desconfiança alemã em relação aos estrangeiros, em particular de origem muçulmana, na sequência da Queda do Muro de Berlim, da desagregação da União Soviética, das guerras fratricidas da ex-Jugoslávia e do nacionalismo turco... sem esquecer os restantes emigrantes, vindos da Ásia, da África...

Sem açúcar...

Porto
Que me desculpem, sem açúcar não é sabor original, pelo menos, se está pressuposta a sua presença...
Imagine-se o vinho do Porto sem açúcar!
Este tipo de publicidade está na base da idiotia que grassa a cada esquina e que se caracteriza pela incapacidade de separar o excesso da sobriedade.
Sem sal e sem açúcar, deixamos que nos levem ao fim do caminho ou agimos como senhores em terra de escravos... 
Da temperança, o melhor é não falar!

23.2.20

Nas Caves Ferreira

Vinho não falta! Tradição também não!
Sombrias e frias, as caves guardam milhões de litros e de euros... 
Embora também eu conhecesse alguns segredos da produção do vinho - na adolescência vi-me em apuros na limpeza dos tonéis -, não sabia que a aguardente vinícola tinha um papel tão importante na preservação do açúcar da uva... Sempre pensara que a aguardente só servia para martelar o vinho e dar cabo do fígado.
Desta vez lá fui à adega e provei o vinho... ainda que em fevereiro... Também por lá encontrei o último rei - D. Manuel II.

22.2.20

Na Serra do Pilar

Dom Afonso Henriques
Acabo de o encontrar!
Não sei o que é que ele pensa do estado do reino, sobretudo lá para os lados de Guimarães. De repente, meio mundo desatou a atirar pedras, como se vivêssemos no tempo de Dona Tareja...
Creio que o Soares dos Reis lhe terá fixado um ar desafiante, mas pode ser ilusão minha...
Na realidade, em termos absolutos, tudo não passa de ilusão, pelo menos, à escala humana, ainda que o Porto possa testemunhar uma ideia bem distinta.
Por exemplo, ainda não encontrei um traje carnavalesco! 

20.2.20

Sem limites

Sem limites
A série sobre a viagem iniciada e comandada pelo português Fernão de Magalhães e terminada pelo espanhol João Sebastião Elcano terá quatro episódios de uma hora, um orçamento de 20 milhões de euros e será dirigida pelo britânico Simon West.
Na apresentação oficial do projeto, o produtor Miguel Menéndez de Zubillaga (Mono Films) explicou que os filmes serão rodados em espanhol por um elenco de "primeira linha internacional", ainda em negociação.
O início das filmagens está previsto para o final do ano nos Estúdios Pinewood, na República Dominicana, e será concluído ao longo de 2021 em Espanha, em localizações no País Basco e nas Ilhas Canárias.
O projeto faz parte da comemoração do quinto centenário da primeira circum-navegação do globo e é financiado pela Coroa espanhola.
*
E quanto à República Portuguesa, parece não haver notícia... Também nós, não temos limites. Sós, como sempre... 

Uma morte digna em troca do quê?

Hospital Curry Cabral
Não creio que as árvores sejam estúpidas, apesar de não alterarem a rota... estas já se adaptaram ao lugar e são necessariamente hospitaleiras... Basta observar o enquadramento para perceber que elas oferecem sombra e abrigo na maioria das estações, senão em todas...
Ainda o inverno não se cumpriu, e elas ali estão verdejantes, à espera que os pássaros se adaptem ao voo dos aviões, só temem que lhes falte a água onde eles possam lavar a plumagem no estio... 
Dentro dos pavilhões vizinhos, uma enchente de cambaleantes, à espera que lhes concertem os ossos... Talvez pudessem vir até cá fora, faziam companhia às árvores, seguiam-lhes os sonhos e respiravam, respiravam muito melhor... 
Regressariam, certamente, mais sossegados a casa, mesmo que a consulta não cumprisse a esperança e lhes oferecessem a eutanásia... uma morte digna em troca... Do quê?

18.2.20

Estúpidos somos nós!

"Mas os pássaros não são estúpidos e é provável que se adaptem. E este postulado arriscado é tão cientificamente sólido como o seu contrário: o de que eles não vão encontrar outras rotas migratórias, outras paragens estalajadeiras, como no Mouchão. Ciência sem dados comprovados não é ciência." Alberto Souto de Miranda Um secretário de estado inteligente

No reino da estupidez, há sempre alguém mais inteligente, há sempre alguém para quem as probabilidades pouco importam.
'Logo se verá' é um argumento político inabalável. Caramba! Se até os caranguejos mudam a rota, para quê tanto 'arruído"?

16.2.20

Apesar de todas as dores

morcegos, criaturas noturnas demoníacas; pangolins, acusados de hospedarem vírus mortíferos; predadores humanos em todos os continentes. bandoleiros de todas as espécies - presidentes, ministros, banqueiros, generais, gestores, especuladores de todos os feitios… todos mortificam… e claro tudo serve para ganhar e acumular dinheiro à custa da pobreza ou da excentricidade… 
só a natureza desperta em flores, em cores, apesar de todas as dores.  entretanto, vou deixar que os meus olhos se concentrem na polinização em curso…

15.2.20

Contra a distanásia

Eu sou contra a distanásia, o que não significa que seja a favor da eutanásia. No primeiro caso alguém age contra mim e no segundo, ninguém deveria intervir na minha decisão - seja familiar, institucional…
O último passo deverá ser sempre do sujeito, pelo menos, enquanto não cair nas mãos dos credores…
De tempos a tempos, eleva-se o clamor.. e passamos, indiferentes à disforia ou mergulhamos na euforia carnavalesca, como sucederá nos próximos dias…
E lá longe, a MORTE anda à solta…

12.2.20

O tojo-arnal de Miguel Torga

Tojo-arnal
Conheço este tojo desde sempre, só não sabia é que esta variedade é arnal.
Não fosse a viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães e, sobretudo, a vontade de Miguel Torga de evitar os "equívocos ibéricos", eu esfumar-me-ia na ignorância de que este tojo é arnal... porque cresce na areia...
Por isso, e não só, registo aqui o acerto poético da história concluída há 500 anos, mais dia menos dia, que, ontem, Magalhães foi homenageado com uma "Praça da Circum-Navegação" no Rio de Janeiro, não na areia, mas em frente da praia de Guanabara, na presença de figuras de Estado (?) que frisaram a importância do momento na história entre Portugal e Brasil... E quanto a Espanha?


Fernão de Magalhães

         Fernão de Magalhães da Ibéria toda,
         Alma de tojo arnal sobre uma fraga
         A namorar a terra em corpo inteiro,
         Consciência do fim no fim da boda,
         Fernão de Magalhães que andaste à roda
         De quanto Portugal sonhou primeiro:

         Ter um destino é não caber no berço
         Onde o corpo nasceu.
         É transpor as fronteiras uma a uma
         E morrer sem nenhuma,
         Às lançadas à bruma,
         A cuidar que a ilusão é que venceu.
               Miguel Torga, Poemas Ibéricos


11.2.20

Equívocos ibéricos

500 anos depois



Os equívocos continuam. A celebração da primeira viagem de circum-navegação é ou não conjunta? Em tempos de infodemia (epidemia de informação), escasseiam as notícias da viagem dos navios-escola Sagres e Juan Sebastian Elcano…
Se o objetivo da comemoração for celebrar o início da globalização, torna-se difícil compreender a duplicação da viagem…
Para Fernando Pessoa, Magalhães encerra o projeto sebastianista subscrito pelo Infante: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce / Quis que a terra fosse toda uma / Que o mar unisse, já não separasse./
Continuamos separados, mesmo que diplomaticamente finjamos o contrário. De costas!

9.2.20

Em fevereiro

Em fevereiro, morreu Malaca Casteleiro. Deixou as estações e os meses com letra minúscula… Reduziu os nomes próprios, eliminou consoantes mais ou menos mudas, alterou as regras de hifenização sem, no entanto, lhe eliminar o 'h'. Em nome da simplificação, deixou cair a etimologia, desvitalizando as famílias… 
Não fosse a diversidade do uso da língua, tudo poderia ter sido aceite. Só que a variação linguística não se conforma com a norma e muito menos se ela ignora as suas raízes…
Hoje, a língua de Malaca Casteleiro lembra-me um estaleiro. Pode ser que o empreiteiro possa concluir a obra, mas convém que não descure as fundações em nome de uma internacionalização de matriz colonial. 

7.2.20

As grades de hoje

Os sinais são de viagem…
Os sinais são de comunhão…
Os sinais são de consumo.
No entanto, as grades de hoje sinalizam o acantonamento, o isolamento…  
A nova peste está aí a testar os limites da condição humana. À medida que o vírus alastra, os demónios soltam-se, vorazes…
Entretanto, esperamos que a China se feche sobre si própria, feche à chave o vírus, se desligue de nós. 

6.2.20

O pedinte da Linha Vermelha

O pedinte não tem mais de 30 anos. Tem passe e guarda-costas. Não toma banho, segundo ele, há cinco dias… Digamos que cultiva a imundície como estratégia de persuasão!
Encontro-os diariamente na Linha Vermelha. Entram nas Olaias e saem na estação de metro de Moscavide, sempre pelo elevador… o que, de imediato, afasta os outros utentes, por vezes, de forma acalorada. 
O papel visível do acompanhante, silencioso e, aparentemente, tímido, é segurar a mochila… e correr atrás do parceiro…
O pedinte dirige-se de forma assertiva, olhar ameaçador, a cada um dos passageiros, nativos ou forasteiros pouco importa, exigindo dinheiro para a sopa. Só come sopa, porque sofre de hepatite… Este é o argumento sempre que um passageiro, ciente do esquema, lhe coloca na mão uma sanduíche… 
Estou a pensar em levar-lhe uma sopa num dos próximos dias… 

3.2.20

Desapoquento-me

Desapoquento-me escrevendo, como quem respira melhor sem que a doença haja passado. Bernardo Soares

De momento, são dois os pássaros saltitantes que procuram as sobras da gaivota ou do gaivoto, sabe-se lá…  Eu não sei, nem quero saber.
Ganhei o hábito de lhes dar pão, correspondendo à expectativa da Sammy que, logo que a luz penetra na sala, se coloca de plantão - lembra-me um soldado não forçado!
Agora, que respiro um pouco melhor, preparo-me para regressar ao tempo em que ainda havia provas orais… Quem diria que a nora fecharia o andamento?

2.2.20

Delírio de fevereiro

Fundação C. Gulbenkian
(Reuben Nakian (1897-1986). Satyricon I, 1981)

Com sol, levantado o nevoeiro, desloquei-me à Fundação Calouste Gulbenkian para ouvir os solistas da respetiva orquestra (Ensemble Alorna). Gostei do que ouvi: António Vivaldi (1678-1741 e e György Kurtág (n.1926).
Em particular, deixei-me encantar pelo fagote… de tal modo que, por momentos, cheguei a pensar que este instrumento me poderia aquietar quando a sombra cair…
Entretanto, continuo sem novas de quem me poderia libertar de velhas e cansativas rotinas...