29.4.20

Faça como o diabo!


  1.  Sintonize um canal de cada vez.
  2.  Não faça comentários enquanto ouve e vê.
  3.  Se considerar que lhe estão a vender uma ideia ou qualquer outro produto, desligue.
  4.  Antes de procurar novo canal, faça uma pausa de pelo menos 30 minutos: converse com quem estiver por perto - mas não demasiadamente - leia um livro, vá até à janela e observe a linha do horizonte.
  5. Se lhe agradar a ideia, vá anotando as suas sensações.
  6. Não diga a ninguém o que anda a fazer.
  7. Não se queixe publicamente.
  8. Contenha as saudações, as efusões e as libações.
  9. Bloqueie todas as comunicações que não lhe sejam essenciais.
  10. Se sair de casa, proteja todos os orifícios e procure os caminhos e as horas de menor movimento.
  11. Não evite o trabalho. Faça-o em segurança.
  12. Não espere que as autoridades lhe digam o que tem de fazer.
  13.  Se se sentir mal, vá ao hospital. Não fique à espera!
  14. Não se comprometa desnecessariamente.
  15. Faça como o diabo, evite a cruz!

28.4.20

O ator secundário

«... a morte devia ser um gesto simples de retirada, como do palco sai um ator secundário, não chegou a dizer a palavra final, não lhe pertencia, saiu apenas, deixou de ser preciso.» José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto editora, p.360

Dizem que  culpa é de um vírus - o protagonista. De facto, as vítimas deixaram de ter nome. Mais não são que dados estatísticos, nos quais não sabemos se podemos acreditar.
Nas guerras ainda havia o cuidado de elaborar listas de nomes para mais tarde se erigirem memoriais, agora escondem-se os nomes como se fossem leprosos.
Já não se sabe se as vítimas deixaram de ser precisas ou se não estarão a prestar um serviço silencioso aos estados de todo o mundo.
Todos os dias se aborda necessidade de por um travão na crise económica, creio, no entanto que essa crise chegou bem antes do protagonista. 
Convém não esquecer que a maioria das vítimas já era apontada como causa da crise. A peste grisalha!

26.4.20

Talvez possamos reencontrar a alma

Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9).
«Todas as coisas deste mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E, sendo que não há no mundo coisa tão grande por que se possa trocar a alma, não há coisa no mundo tão pequena e tão vil por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma verdade de Séneca, que, por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há coisa para connosco mais vil que nós mesmos. - Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado, e não o vendeis muito bem vendido? Pois, se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não quereis dar, senão pelo que vale, a vossa alma, que vale mais que o mundo todo, a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Cristo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo e como o vosso cavalo? Se vos perguntam acaso por que não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque haveis de queimar e porque há de arder eternamente.» Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (excerto), Padre António Vieira

Desconheço o motivo que levou José Saramago a escolher como leitura de Ricardo Reis o Sermão da Primeira Dominga da Quaresma. Suspeito, no entanto, que, para além do calendário de 1936, terá sido a suposta educação jesuítica do heterónimo... 
De qualquer modo, nem Ricardo Reis conseguiu ler mais do que 10 páginas, nem Saramago se deu ao trabalho de indicar o autor do trecho por si escolhido «Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é a vossa própria alma» O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto editora, pág.260
Não consta que Ricardo Reis tenha tido tempo de visitar o Maranhão, nem que Saramago se tenha perdido no Sermão, a leitura abre-nos, porém, a porta para que, em tempo de quarentena, possamos procurar a alma lá bem no fundo do sertão... para que o gentio Séneca deixe de ter razão.

25.4.20

As joaninhas de abril

Sem cravos, mas com joaninhas, excelentes predadores…
Cansado de tanta comemoração, celebro o que a Natureza me oferece, embora continue a ouvir os apelos do passado, como se já não fosse necessário dar novas cores ao presente.
Há quem não entenda que o modelo, mais do que abrir, encerrou um ciclo - o ciclo imperial.
E este comportamento, como diria o Poeta, já tem o som de repetido. 

23.4.20

Flores de abril

Apesar do confinamento e da liturgia anacrónica que se aproxima, a Natureza segue o seu caminho…
Perguntaram-me, hoje, se recomendava algum conteúdo certificado para que os jovens possam evitar o lixo que circula na Internet…
Fiquei sem resposta. 
E agora que volto a pensar nisso,  creio que não há volta a dar. 
Se eles quiserem, encontrarão forma de separar o trigo do joio, porque a ideia de lhes dar só trigo acabará por atirá-los para um canteiro onde qualquer erva daninha os sufocará…
Talvez a leitura de Saramago possa ajudar na floração: «Portugal é um oásis, aqui a política não é coisa do vulgo, por isso há tanta harmonia entre nós, o sossego que veem nas ruas é o que está nos espíritos.» O Ano da Morte de Ricardo Reis, pág. 204, Porto editora

22.4.20

O respeito e o respeitinho

O respeitinho é coisa antiga. O simples sufixo 'inho' já indica que o  respeito se foi tornando numa prática social discutível.
Para uns era sinal de reconhecimento da autoridade divina, estatal, familiar, profissional… Para outros, uma forma de ridicularizar os 'submissos'...
Em terra de submissos, o atrevimento libertava e, em alguns casos, tudo permitia...
É esse abuso que, por estes dias, grassa. Numas situações, por falta de educação; noutras por falta deliberada, abusiva, de respeito.
Por exemplo, hoje, numa fila de atendimento nos CTT, vi-me obrigado a colocar uma máscara, porque uns não respeitavam a distância e outros, simplesmente, tinham decidido concentrar-se  em grupo naquele lugar, tratando de por a conversa em dia sobre os comportamentos do respetivo rebanho…

19.4.20

Cava-se a distancia

A distância social é regra, mas o seu cumprimento é discutível, sobretudo entre os mais velhos que parecem ter dificuldade em respeitar as marcas que lhes surgem no caminho. Provavelmente não as veem!
O confinamento como antídoto para o contágio tem uma dupla face. Ao mesmo tempo que nos tira das ruas, dos espaços de trabalho e de lazer, enclausura-nos em casa ou em recantos esquecidos e miseráveis.
A distância social gera a cada dia que passa esquecimento, solidão.
Em certos casos, a rutura é de tal monta que a vida começa a não fazer sentido. Trocados os dias, a sucessão desfaz-se...

17.4.20

Agora que Abril se encima


Escola Secundária de Camões
Dias houve em que Abril empolgava, depois a liturgia partidarizou-se ou, ainda pior, oficializou-se… num estado não muito diferente do novo.
Agora que a morte campeia, talvez valha a pena reler… até porque são necessárias outras vias…

Coimbra, 14 de julho de 1970

É escusado. Ninguém aqui conte receber, em circunstância alguma, qualquer estímulo tonificante. A todas as horas e de todos os lados, só nos chegam motivos de desânimo e náusea. Mais roubalheiras, mais traficâncias, mais covardias, mais degradações, na administração pública, nas profissões liberais, no comércio, na indústria, nas ciências, nas artes e na religião. De tal maneira, que, mesmo contra vontade, é-se levado a concluir tristemente, de que em vez de uma comunidade de esforços nobilitantes, somos uma lamentável associação de indignidades. E aí começa a tortura mental de quem, apesar de tudo, gosta de ser português, e não se conforma com a ideia de um anátema a que estejamos condenados. Que razões deste mundo nos teriam levado a semelhante decadência?
Miguel Torga, Diário XI

 25 de Abril

            Esta é a madrugada que eu esperava
            O dia inicial inteiro e limpo
            Onde emergimos da noite e do silêncio
            E livres habitamos a substância do tempo
            Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977

Nesta hora20 de Maio de 1974

            Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
            Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso expor 
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir
Na nudez de alegria que nos veste
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977


   Casa na Chuva

            A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
            Não sei porque voltou esta tarde
            se minha mãe já se foi embora
            já não vem à varanda para a ver cair
            já não levanta os olhos da costura
            para perguntar: ouves?
            Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
            a chuva sobre o teu rosto.
            Eugénio de Andrade, Escrita da Terra, 1977

  Cavalos

            Eu oiço-os cavalgar nas nuvens negras
do crepúsculo da noite da solidão
            os meus cavalos perdidos nas batalhas.
            Galopam no horizonte sem fronteiras
            suas crinas de estrelas e desastres
            suas garupas com restos de bandeiras,
            Trazem no vento sul as cítaras e a chuva
            e trazem tambores do vento norte.
            Eu oiço-os cavalgar nas nuvens negras
            os meus cavalos sobre a noite e a morte.
               Manuel Alegre, Senhora das Tempestades, 1998

   Em longo se transforma

             Em longo se transforma o breve engano,
             e o discurso em vento, 
       e o desejo em medo.
       E a esperança
             em memória, e o pensamento
             em bússola cega
             para o mundo.
             E em vidro o espelho apaga,
             gasto de mágoas e mudanças,
             o claro rosto do futuro.
        Pedro Mexia, in “O futuro em anos-luz” 100 anos. (2001)



16.4.20

O discurso do pico e do planalto

O discurso do pico e do planalto é redondo. Por vezes, desce-se ao sopé a pensar na planície, como se a montanha fosse literal. 
As novas metáforas são expressão retórica de quem quer criar uma imagem de saber, mas que, na realidade, esconde um código politico estéril.
Desde o princípio que sabemos que o pico epidémico é inconveniente, porque o país não tem meios financeiros, logísticos e técnicos para o suster. 
Assim, passámos a viver num planalto dentro de uma nuvem, esperando que o tempo a dissolva…num estado de emergência que trata do mesmo modo a montanha e a planície.
Por vezes, tenho a sensação que o pensamento silogístico está de volta - o tempo da inação.

15.4.20

Se as escutássemos!

Palavras de tanta cor!
se as escutássemos todas…
se lhes déssemos tempo,
a distância teria outro sabor.

12.4.20

Talvez a dor!

Há um mês, chovia... seria uma quinta-feira!
O último teste presencial tornara-se impossível - avisei os alunos de que a partir daquela data tudo seria realizado através da Internet. Eles, incrédulos, lá registaram o meu endereço eletrónico para me poderem solicitar o envio daquele que seria o meu último teste...
Antes de sair da sala, decidi esvaziar a gaveta da secretária e entregar o cadeado e a respectiva chave ao funcionário... (privilégio recente!)
Entretanto, passei pela Sala de Professores, onde abri o cacifo e  o esvaziei, fugindo para a rua - o meu filho esperava-me no carro na Almirante Barroso... 
A emoção apertava-me o coração, mas ninguém se apercebeu... se era de dor se de libertação.
Até hoje, não voltei, embora me falte devolver duas chaves - inúteis.
Neste momento, a sirene dos bombeiros avisa os incautos que devem abandonar a rua... Talvez a dor saia vencedora!

11.4.20

De regresso

Évora
Não se assustem! Não vou voltar à escola, regresso ao presente... da desmaterialização... não só do papel... Já que confinado, espero (?) ter tempo para levar a cabo a tarefa... embora tudo possa acontecer, até a desmaterialização do meu próprio corpo... 
Em poucos meses, sem promessa de ressurreição, já foram desmaterializados mais de 100 mil corpos...e esta purga vai continuar.
Falava de regresso para esclarecer que nos últimos dias não tenho vivido no passado, apenas desterrei umas ossadas de que, na azáfama, me esquecera.
E bom seria que não esquecêssemos o passado!

10.4.20

Os amigos

Em novembro de 1996, conclui o mestrado em Relações Interculturais na Universidade Aberta. Os meus alunos da unidade orgânica "Ciências da Educação" da Universidade Autónoma de Lisboa decidiram celebrar o acontecimento. Creio que nunca lhes agradeci devidamente o gesto. 
Por isso, hoje, apesar da distância temporal e do confinamento atual, aproveito para lhes dizer que nunca os esqueci e que espero que a mudança que se avizinha não lhes seja pesada... Bem hajam!

7.4.20

Em Santarém

No tempo em que a leitura de 'As Viagens na minha Terra" ainda fazia sentido, organizávamos visitas de estudo a Santarém - a pé,  do Largo da Sá Bandeira íamos até às Portas do Sol...
Por ali andara Garrett guiado pelo Passos Manuel... E o que os meus jovens alunos não sabiam é que também eu ali vivera e muito menos suspeitavam que os pórticos,  aos quais voltavam as costas, tinham para mim um significado inolvidável. No interior do antigo Colégio Jesuítico vivera 5 anos e meio... 
Muito menos imaginavam que o professor de Português tinha começado a sua atividade docente no Liceu Passos Manuel...

6.4.20

Nos anos 80

Sintra - Escola Secundária de Santa Maria
Parece que alguém não gostou desta fotografia. Talvez demasiado escura! No entanto, isso não autoriza que se apague o conteúdo do post, creio... Se alguém a conseguir melhorar, agradeço.

4.4.20

No século passado

Uma forma diferente de abordar Fernando Pessoa - toda no feminino...
Protagonistas: Idalina Duarte; Rosa Badajoz; Clara Marques; Paula Sousa...
Lugar: Escola Secundária de Santa Maria - Sintra.

2.4.20

Em abril...

Saio uma vez por dia, pelas 9 horas.
Caminho durante 40 minutos, longe dos homens... só um ou outro cão se aproxima de mim. Observo a displicência e a preguiça dos melros, sem esquecer a florescência...
É assim desde meados de março!
E aproveito a caminhada para fazer as imprescindíveis compras, sempre em lugares pouco concorridos.
Espero não estar a cometer qualquer infracção e, sobretudo, não estar a prejudicar quem quer seja - sempre fui muito obediente!
(Um português nascido e criado durante o Estado Novo com alguns assomos de rebeldia, que não sei se à época foi devidamente registada.) 
Neste abril para evitar equívocos, decidi deixar o telemóvel em casa...