30.5.21

O primeiro espelho


De tempos a tempos, regresso ao espelho do móvel do quarto fronteiro da primeira casa. Via-se da cama, sob o olhar do Sagrado Coração de Jesus - o espelho refletia um rapazola já crescido, que preferia não se fantasiar, por causa dos fantasmas noturnos que cavalgavam no sótão. Imagine-se o sótão!
De qualquer modo, aquele não era o primeiro espelho... antes, nas camaratas, havia uma série de espelhos mais ou menos particulares, mas só de meio corpo - o rosto distinguia-se, por uma ou outra careta, tímida..., bexigoso. Relembro, agora, que na 'camioneta da carreira', as janelas, em certos momentos, também  distorciam, ou era o estigmatismo que traía o olhar?
No entanto, o freudiano dos primeiros meses não consegue relembrar o espelho inicial, anterior à locomoção e mesmo â verbalização. Escondeu as imagens iniciais dum outro quarto, do fundo, voltado à Serra, inacessível, felizmente!
Sobram, assim, as toalhas de água dos ribeiros e dos poços, pejados de líquenes e, por vezes, de demónios atirados do alto da casa das cobras por algum apóstolo do Sagrado Coração de Jesus... Aí, sim, havia alguma surpresa e algum pavor... a invisibilidade não passava de uma quimera.

29.5.21

A nova economia

 

A nova economia: dinheiro sujo e bem bebido... com ou sem bolha!

(de Albufeira ao Porto, passando por Lisboa)

28.5.21

Talvez não!

Vivem na confusão dos dias e das noites, sob a exigência de pílulas que criem a escuridão absoluta. Paradoxalmente, as pílulas despertam os sentidos e desregulam as palavras, tornando-as significantes inócuos…
Por enquanto, as palavras vão fazendo ricochete nos dias. Nada resolvem, apenas agridem.
A esta hora da noite, o Sol brilha intensamente, mas tudo é como se se tivesse retirado definitivamente… o que traz ao palco cenas de mutismo e de zelos inesperados… resignados. Talvez não|!

(A avó que sofre o silêncio do avô. A mulher que, finalmente, se retira da vida do marido, negando-se a entrar no cemitério… O velho que se agarra às tábuas do chão do quarto, ou a velha que, de tanto manipular, acaba nas mãos do silêncio acusatório dos filhos. Ou ainda aquela tia que proíbe a criada de informar os familiares da respetiva morte… a não ser que se tratasse de um caso de polícia que ninguém mandou investigar.)

Por agora, o melhor é desligar os telemóveis!

26.5.21

A floração

 

Parece obsessão! 

A flor é sempre a mesma ou muda com os dias? Pouco importa a resposta, a verdade é que esta flor desperta a minha atenção: procuro nela a mudança, a beleza do momento. E faço-o para combater a resistência destrutiva que cresce um pouco por todo o lado…

Entretanto, vou estudando alemão, leio o ininteligível Lacan, cada vez mais convencido de que, talvez, ainda vá a tempo de reler Freud … 

Sim, Freud, devorei-o imaturo…na hora vertiginosa dos anos 70, como se estivesse a atravessar o Mar Vermelho, sob o olhar do Faraó, não sei se egípcio se austríaco.

23.5.21

É mais cómodo!


 «C'est qu'à une vérité nouvelle, on ne peut se contenter de faire sa place, car c'est de prendre notre place en elle qu'il s'agit. Elle exige qu'on se dérange. On ne saurait y parvenir à s'y habituer seulement. On s'habitue au réel. La vérité, on la refoule.» Jacques Lacan, Écrits I


Se a verdade nos questiona, facilmente a ignoramos ou, na melhor das hipóteses, habituamo-nos. É mais cómodo!
Se a realidade nos perturba, fingimos que vivemos numa outra realidade, distinta da precariedade desta vida.
Claro que podemos acomodarmo-nos, fingindo que a culpa é da depressão - palavra mágica que enriquece os profissionais da matéria (ou do espírito?) e que nos torna irresponsáveis, em definitivo.

20.5.21

Amoreira

 

Pensei ter visto um melro na amoreira, mas deve ter sido ilusão ou, então, voou sem que me tenha apercebido… talvez as amoras me tenham distraído…
… o que pensamos ou o que dizemos, que raramente é o mesmo, pouco nos diz sobre o lugar onde estamos, como se a circunstância fosse importante…
Habituámo-nos a tudo justificar, pondo-nos de parte, e atribuindo o inferno aos outros, apesar do que Freud nos quis explicar - fora das palavras sãs ou nevróticas nada corre. Triste dicotomia!
Donde é que surgiu esta amoreira de maio? Donde é que surgiu esta ideia de que somos porque pensamos? … desejamos?
Não viemos da Ásia nem criamos bichos da seda, não atravessámos o deserto para aqui chegar, nem sequer nos deitamos ao mar para atravessar… ou morrer, sem palavras.

19.5.21

Un mot pour un autre

 

pois... um burgo em vez de castelo... só que, em alemão, 'die Burg' designa castelo, o que põe em causa a ideia de que a cintura da muralha tenha acolhido os comerciantes… provavelmente, os burgueses apoderaram-se do edificado, multiplicaram-se e, sem mais, foram alargando o território à custa dos pobres vilões que, entretanto, foram sendo afastados dos castelões…

(ainda ontem os vi celebrar a chegada do soba maior.)

… e quando a deslocação era feita a cavalo ou a pé, podia-se partir duque e chegar burguês ou simplesmente soldado-pedreiro, construtor de pontes e de infantes - ambos necessários, sem qualquer consideração por leiras e corpos… tudo em nome de uma causa maior, vistos, hoje, como males maiores pelos zelotas de serviço.

18.5.21

Em flor


Em flor… o que se propaga é a dor… 

mais a fingida do que a real. 

Enquanto soterramos a dor que ignoramos,

sorrimos com as flores de maio.

Outros percorrem avenidas imperiais

como se o tempo tivesse apagado a dor 

da herança…

Senhores em flor e súbditos em dor,

ontem e hoje.

 

17.5.21

Os eleitos

 


A capa d'A Eneida jaz no jardim sacerdotal… uma versão para adolescentes distantes do Latim, em tempos de colheita pouco seletiva. O que interessava era aumentar o rebanho e colocá-lo ao serviço da nação eleita.


Na Faixa de Gaza, jazem as vítimas da arrogância de Benjamim Netanyahu, que só sobrevive agarrando-se ao leme de uma nação que, desde sempre, se imaginou como eleita…

Infelizmente, os rebanhos continuam a seguir cegamente os seus pastores em nome de falsos ídolos.




14.5.21

Ao perder as palavras

 

Não sei se as palavras podem rodar para direita ou para esquerda… As imagens podemos distorcê-las e até eliminá-las… 
O que sei é que chegamos sem elas e que, por um dom inexplicável, com elas vamos construindo a nossa realidade. ( Os poetas são os que melhor apuram esse dom!)

"C'est dans le don de la parole que réside toute la réalité de ses effets! Car c'est par la voie de ce don que toute réalité est venue à l'homme et par son acte continué qu'il la maintient." Jacques Lacan, Écrits I

O que pressinto é que se as começamos a distorcer, então o fim está próximo. Cada ser deixa de o ser ao perder as palavras. (Os poetas continuam a perder-se nas palavras e ainda bem!

11.5.21

A palavra secou

 

«Au-delà du mur, il n'y a rien qui ne soit pour nous ténèbres extérieures.» Jacques Lacan, Écrits I

Já me conformara com a ideia, só que agora as trevas mudaram-se para o lado cá. A linguagem depreciou-se de tal modo que a palavra secou.

E como tal, fiquemos por aqui antes que o muro desabe e tudo seja treva. 

(...) No entanto, a flores estão aí, indiferentes aos nossos dramas...

8.5.21

... a resposta do outro



«Ce qui je recherche dans la parole, c'est la réponse de l'autre.» Jacques Lacan, Écrits I

Escrever não para me dizer, mas para entender, ouvir o outro… como se fosse ave. Esta só canta porque procura uma resposta, caso contrário, entristece.
Infelizmente, o outro já não pode responder ou, em alternativa, deixou de estar atento, enredado nos traumas que vai inventando para não se comprometer.
O outro, por decisão ou por fatalidade, abdicou de ouvir, deixando que o eu se dilua em partículas dissonantes e vagabundas, matando, assim, a razão da escrita.

7.5.21

Em troca de perdão

O que não se chega a dizer… 
Confessá-lo em troca de perdão é vulgarizar a ação maldita, o sonho interdito, mesmo que o segredo tenha sido garantido…
Nos últimos tempos, dizer tudo, confessar tudo tornou-se o pasto de que se alimenta a turba. Mas quando se observa de perto, o pasto não tem seiva… é, apenas, uma pasta ressequida para alimentar omnívoros mesquinhos.
(...) ~
E depois há os que tudo confessam sem nada chegar a dizer... E não se importam de nos fazer descer aos infernos, lugar onde o perdão é desnecessário.

5.5.21

O dia da língua...


«C'est le monde des mots qui crée le monde des choses, d'abord confondues dans l'hic et nunc du tout en devenir...» Jacques Lacan, Écrits I

Celebramos a língua, a nossa… orgulhosos dos nossos feitos e, sobretudo, convencidos de que continuamos a ter uma missão a realizar e de que para tal há uns tantos povos dispostos a sacrificar as suas coisas…. sim, porque, ao abdicarem dos seus signos, deixam  que o futuro lhes fuja, que as suas coisas não cheguem a a dignificá-los.

Exagero, talvez. mas quantos povos se foram perdendo pelo imperial caminho? O sonho deste dia parece ser o da sua eliminação definitiva…, ao contrário do que se vai proclamando.

2.5.21

O canteiro

Em frente à casa, um canteiro irregular acolhia as tuas flores, por ti plantadas e regadas de acordo com as regras do Tempo. De vez em quando, colhias um lírio, um jarro, uma rosa, que colocavas num rústico jarrão na mesa da sala.. 
As sardinheiras nunca abandonavam o canteiro! Eram as primas-donas do lugar!
Ninguém comprava flores para te oferecer. Tu é que as oferecias ao senhor Jesus, à Virgem e a algum santo mais extremoso.
Hoje, no teu dia, não vou comprar flores para te oferecer, apenas relembro o canteiro irregular, por vezes, retouçado por caprichosas cabras que por ali passavam.
E não sei se o canteiro ainda perdura!

1.5.21

Muda o mês

Muda o mês, o inferno de abril continua… 
só o masoquismo explica porquê. 
Acrescentar o quê, se a vida é a mesma, chova ou faça sol…
Hoje foi dia de vacina, primeira dose da AstraZeneca. 
O rebanho submeteu-se sem alarido. 
só o masoquismo explica porquê.
As flores, essas, seguem o seu destino… 
um destes dias murcham e ninguém dará pela mudança. 
Não creio que as rosas sejam masoquistas.