Leitura de 'O Ano da Morte de Ricardo Reis'

 Plágio, imitação, intertextualidade, hipertexto e hipotexto
Seguindo de perto um artigo do Le Magazine Littéraire, nº 495, Março 2010, alinho aqui um conjunto de ideias acerca da influência em O Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago.
"Le plagiat est la base de toutes les littératures, excepté de la première, qui d'ailleurs est inconnue." (Jean Giraudoux)
1- Na Antiguidade, o plágio designava o roubo de um homem livre ou de uma criança para fazer deles escravos. Em Roma, a lei Fabia de plagiarris condenava ao chicote estes ladrões. No sentido moderno, plágio significa roubo de palavras.
O surgimento no século XVIII das noções de indivíduo e de propriedade exacerbou as reivindicações dos autores sobre a sua obra, considerada agora como uma propriedade. Beaumarchais (1732-1799) foi um pioneiro no combate pelos direitos de autor. Um pouco depois, Victor Hugo clama no Congresso Literário Internacional de Junho de 1878: "O escritor proprietário é um escritor livre. Tirar-lhe a sua propriedade é tirar-lhe a independência."
2- Ora, foi esta individualização da propriedade intelectual que permitiu conotar o plágio com o sentido que lhe damos hojeMas à experiência negativa que parece envolver integralmente o sentido da palavra, juntam-se algumas vozes que justificam a benignidade do plágio, desde que se supere o simples "cortar-colar".
Hélène Maurel-Indart defende que o exemplo de Marcel Proust é edificante, já que este escritor, conhecido pela originalidade incontestada da sua obra, estava conscientemente seguro da imitação que levava a cabo do estilo de Flaubert ou dos irmãos Goncourt. "Tinha compreendido, diz Maurel-Indart, que só poderia forjar o seu próprio estilo ao preço de um esforço de sublimação dos modelos perigosamente fascinantes, como Flaubert e os irmãos Goncourt."
Mais recentemente, convivemos razoavelmente bem com esta tese de Théophile Gautier:  "Alguém que não tenha começado por imitar não será nunca original."
3- A moderna Teoria da Literatura veio esclarecer conceptualmente os mecanismos de contaminação que conduzem um texto sempre para um fluxo intertextual, mitigando a pretensa originalidade que muitas vezes lhe atribuímos.
O autor é um auctor que aumenta o património literário, gravando no palimpsesto universal um novo hipertexto, que se sobreporá ele mesmo a uma multitude de hipotextos. A terminologia genetiana evoca, com esta imagem tão expressiva do palimpsesto, o fenómeno bem identificada da intertextualidade - relação dos textos uns com os outros —, cujas duas formas mais relacionadas com as questões de plágio são, por um lado, a intertextualidade, termo tomado de empréstimo a Júlia Kristeva, e, por outro, a hipertextualidade. Segundo Gérard Genette, a intertextualidade é a “presença efectiva de um texto noutro”. Quanto à hipertextualidadeela designa “toda a relação unindo um texto B (que chamarei hipertexto) a um texto anterior A (que chamarei, bem entendido, hipotexto). Genette põe assim em evidência os dois tipos de relações possíveis entre um hipertexto e um hipotexto. [bibliografia: Gérard Genette, Palimpsestes. La littérature au second degré, Seuil, 1982, Points Essais. Júlia Kristeva, Semeiotike. Recherches pour un sémanalyse, Seuil, 1969.]
4- Em 1968, Roland Barthes propôs substituir "pela própria linguagem aquele que até aí era tido como seu proprietário; [...] é a linguagem que fala, não é o autor." ["La mort de l'auteur", 1968, Oeuvres Complètes, t. II, Seuil.] Abrindo com isto a via para uma produção textual como biblioteca universal, "à la Borges", onde "todas as obras são as obras de um único autor, que é intemporal e anónimo." [Jorge Luis Borges, Ficções.] Publicado 19th March 2010 por Victor Gonçalves

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto editora

Capítulo I

Aqui o mar acaba e a terra principia.

Eis aqui, quase cume da cabeça

De Europa toda, o Reino Lusitano,

Onde a terra se acaba e o mar começa

Os Lusíadas, canto III, estância 20

 O Highland Brigade atraca no cais de Alcântara – faz a carreira Londres Buenos Aires. Esta carreira teve início 1 nov. 1928. 1ª classe – 150; intermédia -70; 3ª classe – 500 passageiros.

Comparação com o Adamastor, est. 40, canto V: Que pareceu sair do fundo do marcomo se o Highland Brigade viesse a escorrer do fundo do mar, navio duas vezes fantasma… (9)

Chove sobre a cidade de Lisboa. São poucos os passageiros que desembarcam. É domingo – cidade silenciosa que os assusta… Alusão aos passageiros da terceira classe de Gente da Terceira Classe, de José Rodrigues Miguéis.

Caraterização do povo: e suba com compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuaremos nós a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio. (11) A alfândega é uma antecâmara, um limbo de passagem, que será lá fora.

Início do retrato de Ricardo Reis: Um homem grisalho, seco de carnes com um leve sotaque brasileiro que, ao chegar, repara nuns barcos de guerra no estuário por causa do mau tempo. Dá 10 xelins ao bagageiro – são contratorpedeiros acrescenta este… Não sabe para que hotel quer ir – um que fique perto do rio, cá para baixo… o Bragança na rua do Alecrim. Esclarece que há dezasseis anos que não vinha a Portugal. No entanto, a avenida por onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela… (14)

Por causa da linha do elétrico, Ricardo Reis sobe a pé a rua do Alecrim até à porta do Hotel, temendo que o taxista desaparecesse com todos os seus bens. Entra, mas tem de subir ao primeiro andar, pois é aí que fica a receção. Só no 2º andar, há quartos. Escolhe o 201, donde poderá ver o rio – associação ao 202 do Jacinto queirosiano. (17) O táxi ficara em frente do café Royal. Com a ajuda do homem dos carregos, depois de pagar o frete, Ricardo Reis volta ao Bragança. O Pimenta transporta a mala pesada ao segundo andar. Ricardo Reis preenche o livre de entradas de hóspedes, referindo a idade de 48 anos, natural do Porto, estado civil solteiro, médico de profissão, última residência Rio de Janeiro. O gerente, isto é, Salvador coloca-se à disposição do hóspede. Chegado ao quarto, deu gorjeta ao carregador. Senta-se e reflete sobre os dias futuros – por agora o hotel bastará, lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa. (20) Agora ouve o murmúrio da cidade, seiscentas mil pessoas suspirando… abre uma janela, depois outra… em menos de meia hora despejou as malas, os livrosalguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, esquecera-se de o entregar no desembarque. (…) o seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês…, que, afinal, não passa de um romance policial, e não um labirinto como um deus… (21-22)

Entre os papéis a guardar, destaca-se a folha mais antiga datada de doze de junho de mil novecentos e catorze:

Mestre, são plácidas

Todas as horas

Que nós perdemos.

Se no perdê-las,

Qual numa jarra,

Nós pomos flores.

Não há tristezas

Nem alegrias

Na nossa vida.

Assim saibamos,

Sábios incautos,

Não a viver,

Mas decorrê-la,

Tranquilos, plácidos,

Tendo as crianças

Por nossas mestras,

E os olhos cheios

De Natureza...

A beira-rio,

A beira-estrada,

Conforme calha,

Sempre no mesmo

Leve descanso

De estar vivendo.

O tempo passa,

Não nos diz nada.

Envelhecemos.

Saibamos, quase

Maliciosos,

Sentir-nos ir.

Não vale a pena

Fazer um gesto.

Não se resiste

Ao deus atroz

Que os próprios filhos

Devora sempre.

Colhamos flores.

Molhemos leves

As nossas mãos

Nos rios calmos,

Para aprendermos

Calma também.

Girassóis sempre

Fitando o Sol,

Da vida iremos

Tranquilos, tendo

Nem o remorso

De ter vivido.

 A folha mais recente (…) tem a data de 13 de novembro de 1935, passou mês e meio sobre tê-la escrito:

Vivem em nós inúmeros;

Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar

Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.

Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia

Indiferente a todos.

Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados

Do que sinto ou não sinto

Disputam em quem sou.

Ignoro-os. Nada ditam

A quem me sei: eu escrevo.

 O texto matricial – As Odes de Ricardo Reis: Juntou os papéis, vinte anos dia sobre dia, folha após folha, guardou-os numa gaveta da pequena secretária

Às oito horas em ponto, Ricardo Reis apresentou-se na sala de jantar. Descrição. (23) Esta sala dá para a Rua Nova do Carvalho. Já no final da refeição, entraram um homem de meia-idade e uma rapariga de 20 anos – pai e filha. A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. (25) Ricardo Reis olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há de ir se a não levarem

No sofá do quarto, lê os jornais: Óscar Carmona ( presidente da república, 1926-1951) inaugurou a exposição de homenagem a Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) na Agência Geral das Colónias (criada em 1924);  novas cheias no Ribatejo – o dique dos Vinte, destruído em 1895… ironia do autor que alega em nome RR: Há grandes receios na Golegã, não me lembra onde fica, ah Ribatejo, se as cheias destruírem o dique dos Vinte… (28); notícias de fait-divers, sobre o Brasil e as operações italianas na Etiópia… lista dos espetáculos no Coliseu (A última Maravilha com Vanise Meireles), no Politeama (As cruzadas, filme histórico); lista de portugueses falecidos no Brasil na primeira quinzena de dezembro; ironia do autor sobre o tratamento dado, por cá, aos velhos (os macróbios), aos novos, aos doentes, às grávidas. Alusão à Divina Comédia de Dante, canto XXXIII do Inferno, na História dos Guelfos e Gibelinos…

Capítulo II

Apesar da invernia se manter, no dia seguinte, Ricardo Reis foi ao Banco Comercial cambiar algum do seu dinheiro inglês pelos escudos da pátria…Sai do banco com uma fortuna no bolso – 5 contos. Não se arrisca a atravessar o Terreiro do Paço, fica de longe a olhar o rio, recordando o tempo em que ali se sentara…Evoca, entretanto, o poema Miséria de João de Deus (34):

Era já noite cerrada,

Diz o filho: "Oh minha mãe,

Debaixo daquela arcada

Passava-se a noite bem!"

 A cega, que todo o dia

Tinha levado a andar,

A tais palavras do guia

Sentiu-se reanimar.

Mas saltam dois cães de gado,

Que eram como dois leões:

Tinha-os à porta o morgado

Para o guardar dos ladrões.

 Tornam os pobres à estrada,

E aonde haviam de ir dar?

Ao palácio da tapada

Onde el-rei ia caçar.

 À ceguinha meia morta

Torna o filho: "Oh minha mãe,

Ali no vão de uma porta

Passava-se a noite bem!"

 - Se os cães deixarem... (diz ela,

A triste num riso amargo),

Com efeito a sentinela:

- "Quem vem lá?... Passe de largo!"

 Então ceguinha e filhinho,

Vendo a sua esperança vã,

Deitaram-se no caminho

Até romper a manhã!...

 Aproximam-se as onze horas (…) é a hora em que começam a trabalhar os funcionários públicos. (35). Dirige-se à rua do Crucifixo, entra na rua Garrett, sobe ao Chiado, quatro galegos estão encostados à estátua de Camões…. Decide comprar jornais no Bairro Alto: notícias de 2 de dezembro de 1935 sobre a morte de Fernando Pessoa (36). Valorização de Mensagem, poema de exaltação nacionalista. Outro jornal pôs a notícia da morte de Fernando Pessoa na página certa, a da necrologia, … formado em Letras pela Universidade de Inglaterra… a falta de rigor jornalístico. A caminho do cemitério dos Prazeres, lê a oração fúnebre proferida à beira da campa. Lê no alto da Calçada do Combro Saramago destaca a ausência de D. João V de Mensagem. Esta visita decorre no dia 30.12.1935, no dia seguinte à chegada de Ricardo Reis.

No elétrico, Ricardo Reis relê a funérea despedida, não pode convencer-se que seja Fernando Pessoa o destinatário dela (…) por causa das anfibologias gramaticais e léxicas que ele abominaria. (39) Ricardo Reis chega ao cemitério no momento em decorre um funeral. Informa-se no registo dos defuntos do lugar onde Fernando António Nogueira Pessoa estava enterrado (2.12.1935). O funcionário indica-lhe o jazigo 4371. Ricardo Reis faz o percurso, atento à arte funerária, passando adiante do jazigo que procurava. (41) São títulos de propriedade e ocupação, jazigo de D. Dionísia de Seabra Pessoa. (42) Foi aqui que o corpo foi depositado. Entretanto, ouve: Estou aqui, e em voz alta Ricardo Reis repete, não sabendo que ouviu, Está aqui, é então que recomeça a chover. (…) Não tem mais que fazer neste sítio, o que fez nada é, dentro do jazigo está uma velha tresloucada que não pode ser deixada à solta, está também, por ela guardado, o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo…(42-43) O pensamento receoso sobre a relação avó-neto – pobre Pessoa! Nem na morte!

Ricardo sai do cemitério e apanha um táxi para o Rossio com receio de perder a hora de almoço. A viagem do Rio a Lisboa terá durado 14 dias – de 15 a 29 de dezembro de 1935. Comove-se à passagem do funeral de um anjinho, que não terá tido tempo para revelar os seus dons. Decide parar no restaurante Irmãos Unido, onde almoça sem olhar a dietas…… vê passarem lá fora os carros elétricos, ouve-os ranger nas curvas, o tilintar das campainhas soando liquidamente na atmosfera coada de chuva, como os sinos duma catedral submersa ou as cordas de um cravo ecoando infinitamente entre as paredes de um poço. (o melhor estilo saramaguiano, 45) Saiu para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira. Entra na Rua dos Douradores, observa as sacadas e as faces pálidas dos caixeiros que vêm às portas das lojas (…) o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo valido a pena… (46)

Ao voltar ao hotel, Ricardo Reis apercebe-se que este é ‘a sua casa’, e não aquelas que habitara até esta jornada – Porto, Lisboa, Rio de Janeiro. O vento sopra, encanado, chove menos… Logo que entra no hotel é saudado pelo Pimenta e pelo gerente, Salvador. No quarto, tudo estava perfeitamente arrumado. E agora Ricardo? – alusão a Carlos Drummond de Andrade "E agora José» / Ricardo E agora José  (49)

 E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

 

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

(…)

A chuva voltou a cair e entra pelas janelas esquecidas. Também Ofélia se deixa ir na corrente, cantando, mas essa terá de morrer…Ofélia, Shakespeare, IV ato (49) O elogio das criadas / obreiras também elas (50) / Cesário Verde - O Sentimento dum Ocidental (1ª parte) / as obreiras /

Ricardo Reis responde à criada em três versos de sete sílabas (redondilha maior) – o autor de odes ditas sáficas ou alcaicas (acentuação na 4ª, 8ª e 10 sílabas), transformado em poeta popular? (50)

A criada, serpeando o corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às madeiras enceradas… Lídia. Ricardo Reis repetia o nome para o não esquecer: há pessoas assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em verdade, são papagaios umas das outras, nem há outro modo de aprendizagem… (51) Depois, Ricardo Reis vai à gaveta buscar as suas odes sáficas e lê alguns versos:

Ténue, como se de Éolo a esquecessem,

A brisa da manhã titila o campo,

E há começo do sol.

Não desejemos, Lídia, nesta hora

Mais sol do que ela, nem mais alta brisa

Que a que é pequena e existe.

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Quando, Lídia, vier nosso Outono

Com o Inverno que há nele, reservemos

Um pensamento, não para a futura

Primavera, que é de outrem,

Nem para o Estio, de quem somos mortos,

Senão para o que fica do que passa - 

O amarelo atual que as folhas vivem

E as torna diferentes.

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Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)

+++++

Aos deuses peço só que me concedam

O nada lhes pedir. A dita é um jugo

E o ser feliz oprime

Porque é que um certo estado.

Não quieto nem inquieto meu ser calmo

Quero erguer alto acima de onde os homens

Têm prazer ou dores. (52,53)

 Senta-se no sofá… e sonha que vai passeando na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, à ligeira por ser muito calor, começa a ouvir tiros ao longe… nem sequer ouve a voz que lhe está batendo à porta. Em cima da mesa está uma folha Aos deuses peço só que me concedam… (repetição) Identificação do hotel com o palácio da Bela Adormecida – evocação de uma cantilena infantil:

 

Emissário:

Onde mora a bela condessa,
Língua de França, onde nasceu?

 

 

Condessa:

O que quer com a bela condessa
Língua de França, onde nasceu?

 

 

 

— Senhor rei mandou-me aqui,
Buscar uma de vossas filhas
E levar você também.

 

 

 

— Eu não dou as minhas filhas,
Nem por ouro , nem por prata,
Nem por sangue de Aragão,
Para casar com esse ladrão.

 

 

 

— Tão contente que eu me vinha
E tão triste que eu me vou,
Por causa da bela condessa
Que sua filha me negou.

 

 

 

— Volte atrás, bom cavalheiro,
Por ser um homem de bem
Subie naquele outeiro
Escolhei daquelas três:
Uma se chama Maria,
Outra se chama Guiomar,
A mais formosinha delas
Chama-se Estrela do Mar.

 

 

 

— Assentai aqui menina,
Para coser e bordar,
Que do céu lhe há de vir
Uma agulha e um dedal.
O dedal será de ouro,
A agulha será de prata,
Palmatória de marfim
Para a mestra castigar.


 Vestuário e calçado. Ricardo Reis prepara-se para o jantar – é descabido o escrúpulo, parece que não reparou ainda como vestem os vulgares habitantes, paletós como sacos, calças em que as joelheiras avultam como papos, gravatas de nó permanente que se enfiam e desenfiam pela cabeça, camisas mal cortadas, rugas, pregas, são os efeitos da idade. E os sapatos fazem-nos largos de tromba para que livremente possa exercitar-se o jogo dos dedos… (54) Diferenciação: Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas um hóspede de hotel que, ao sair do quarto, encontra uma folha de papel com verso e meio escritos, que, agora é necessário acabar…(55) Desce para jantar, mas antes vai ler os jornais:

A dissolução das Cortes, em Espanha, com demissão do governo de Manuel Portela Valladares (14.12.1935-19.02.1936) Crise ítalo-abissínia - invasão da Etiópia 3.10.1935. Nova referência à morte de Fernando Pessoa – todos estes acontecimentos poderiam ter sido evitados se os jornais em vez de relatar os acontecimentos os soubessem prever a tempo e horas (ironia). (56)

O jantar às 8 horas. Ricardo Reis (meticulosidade) dobra o jornal, volta ao quarto lavar as mãos, corrigir o aspeto, volta logo, senta-se à mesa onde a primeira vez comeu, e espera. A motivação de tamanha pontualidade: Ricardo Reis é somente compositor de odes, não um excêntrico, ainda menos um tolo, menos ainda desta aldeia. (57) Ninguém mais na sala. Decide que a partir do seguinte, virá jantar às 8:30. Descera mais cedo para ver a rapariga, reconhece. Só que pai e filha já teriam deixado o hotel. Salvador esclarece-o sobre a identidade dos hóspedes: Vêm aqui há três anos, o Dr. Sampaio e Marcenda. Vêm, todos os meses, três dias. Vêm ao médico, embora sem que haja melhoras… É Marcenda o nome, É aim, senhor doutor, Estranha palavra, nunca tinha ouvido, Nem eu (ironia) …  Volta ao quarto, e conclui o poema:

Aos deuses peço só que me concedam

O nada lhes pedir. A dita é um jugo

                E o ser feliz oprime

Porque é um certo estado.

Não quieto nem inquieto meu ser calmo

Quero erguer alto acima de onde os homens

                Têm prazer ou dores.

Capítulo III

Pequeno almoço servido no quarto por Lídia: Se esta Lídia não fosse criada, e competente, poderia ser, pela amostra, não menos excelente funâmbula, malabarista ou prestidigitadora, génio adequado tem ela para a profissão, o que é incongruente, sendo criada, é chamar-se Lídia, e não Maria. O elogio da mulher do povo. Lídia informa Ricardo Reis das cheias no Cais do Sodré. 31.12.1935 (62) Enumeração de ‘salvamentos’, cujo padroeiro é S. Cristóvão (Reprobus) - significa aquele que carrega Cristo. 

O ponto de vista – mudança: da rua para a janela do segundo andar ou talvez não, o ‘transeunte’, que observava os efeitos da cheia, levanta a cabeça. Reflexão do narrador sobre a subversão das relações sociais / Ricardo Reis e Lídia à janela… ou retorno à idade de ouro / o tempo de harmonia no início da humanidade. (63)

Ricardo Reis toma o pequeno almoço, enquanto folheia, sem ler, The God of the labyrinth, obra já citada "Deploro ter emprestado a uma senhora, irreversivelmente, o primeiro que publicou. Já declarei que se trata de um romance policial: The god of the labyrinth; posso agradecer que o editor tenha proposto a sua venda nos últimos dias de novembro de 1933." (Jorge Luis Borges, 1941)

As promessas da passagem de ano: logo nos primeiros dias de janeiro teremos esquecido metade do que havíamos prometido. (64) Cotejo do Deus bíblico com os deuses do paganismo de Ricardo Reis – a verdade última dos deuses é nada saberem. (64-65) Adiemos as promessas!

O aforismo popular (sentença, máxima, anexim, adágio, rifão, provérbio): não quer que lhe caiam os parentes na lama / na ocasião se faz o ladrão / adeus, mundo, cada vez a pior / (63 a 65) / o sol é de pouca dura (69)

Ricardo Reis vai dar um passeio antes do almoço. Sobe a Rua do Alecrim. Observa uma pedra retangular, embutida e cravada num murete que dá para a Rua Nova do Carvalho – alusão à Clínica de Enfermidades de los Ojos y Quirúrgicas, fundadada por A. Mascaró em 1870. Ricardo Reis para diante da estátua de Eça de Queirós. Considerações sobre a língua: provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam um parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver. Saramago vira do avesso a epígrafe de Eça de Queirós "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia". É instrutivo o passeio: ainda agora contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões (67). Saramago indica os versos que poderiam ser colocados no pedestal do Poeta:

Aqui, com grave dor, com triste acento,

deu o triste pastor fim a seu canto;

co rosto baixo, e alto o pensamento,

seus olhos começaram novo pranto;

mil vezes fez parar no ar o vento

e apiadou no Céu o coro santo;

as circunstantes selvas se abaixaram

de dó das tristes mágoas que escutaram.

Camões (excerto de uma écloga)

Entretanto, Ricardo Reis continua a sua caminhada matinal: Rua da Misericórdia (do Mundo, no passado); antigo Largo de S. Roque (São Roque nasceu no ano de 1295, provavelmente em Montpellier, na França; morreu a 16 de agosto de 1327) e a igreja do mesmo santo, aquele aquém um cão foi lamber as feridas da peste, bubónica seria (67). A cadela Ugolina, por subnutrição, devora os próprios filhos representa a pátria que destrói o melhor da sua gente.

http://umcadernoparasaramago.blogspot.com/2010/01/o-ano-da-morte-de-ricardo-reis-romance.html

No seu interior, encontra-se a capela de S. João Batista, a tal que foi encomendada a Itália por D. João V (…) rei, pedreiro e arquiteto por excelência (ironia). Ricardo Reis observa dois quiosques e a marmórea memória mandada implantar pela colónia italiana por ocasião do himeneu do rei D. Luís, tradutor de Shakespeare e D. Maria Pia de Saboia, filha de Vittorio Emmanuele rei de Italia (Verdi). Este monumento parece uma palmatória pronta a assustar as meninas dos asilos. Descrição do Bairro Alto: este bairro é castiço, alto de nome e situação, baixo de costumes… (68). Volta a chover, Ricardo Reis abriga-se num portal, ao princípio da Travessa da Água da Flor.

A vozes das mulheres e dos soldados – Está a choveeer; Sentinela aleeeerta - discurso indireto livre (69) Atravessa o jardim (de S. Pedro de Alcântara), observa as muralhas, o castelo, o casario… Em baixo, estão uns bustos de pátrios varões.

A desconstrução da cultura: «é como ter posto o Zé-povinho do Bordalo a fazer um toma ao Apolo de Belvedere» - é uma estátua de mármore representando o deus grego Apolo, que faz parte do acervo do Museu Pio-Clementino / «todo o miradouro é belvedere»: terraço alto.

Narrador expõe a teoria do associacionismo - princípio básico da atividade mental - explicitação feita pelo narrador. Definição do homem como ‘lugar industrial e comercial’. Continua viagem e chega ao Convento de S. Pedro de Alcântara, hoje recolhimento de meninas pedagogicamente palmatoadas, dando com os olhos no painel de azulejos da entrada, onde se representa S. Francisco de Assis, il poverello… (70)

De associação em associação: a porta do convento e a porta de Wittemberg (71) Ricardo Reis procura relembrar versos antigos ao seguir pela Rua D. Pedro V:

 Não a ti, Cristo, odeio ou menos prezo

Que aos outros deuses que te precederam

Na memória dos homens.

Nem mais nem menos és, mas outro deus.

No Panteão faltavas. Pois que vieste

No Panteão o teu lugar ocupa,

Mas cuida não procures

Usurpar o que aos outros é devido.

Teu vulto triste e comovido sobre

A estéril dor da humanidade antiga

Sim, nova pulcritude

Trouxe ao antigo Panteão incerto

Mas que os teus crentes te não ergam sobre

Outros, antigos deuses que dataram

Por filhos de Saturno

De mais perto da origem igual das coisas,

E melhores memórias recolheram

Do primitivo caos e da Noite

Onde os deuses não são

Mais que as estrelas súbditas do Fado.

Tu não és mais que um deus a mais no eterno

Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.

Panteão que preside

À nossa vida incerta.

Nem maior nem menor que os novos deuses,

Tua sombria forma dolorida

Trouxe algo que faltava

Ao número dos divos.

Por isso reina a par de outros no Olimpo,

Ou pela triste terra se quiseres

Vai enxugar o pranto

Dos humanos que sofrem.

Não venham, porém, estultos teus cultores

Em teu nome vedar o eterno culto

Das presenças maiores

Ou parceiras da tua.

A esses, sim, do âmago eu odeio

Do crente peito, e a esses eu não sigo,

Supersticiosos leigos

Na ciência dos deuses.

Ah, aumentai, não combatendo nunca.

Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando

Cada vez maior força

Plo número maior.

Basta os males que o Fado as Parcas fez

Por seu intuito natural fazerem.

Nós homens nos façamos

Unidos pelos deuses.

Procurar cobrir com uma unidade estas variedades (despoletadas pela associação de ideias) é talvez tão absurdo como tentar esvaziar o mar com um balde. Referência a Santo Agostinho.  Entretanto, Ricardo Reis chega à Praça do Rio de Janeiro que foi do Príncipe Real. Apreciação da flora local: acer, ulmo, cedro.

De regresso, Ricardo Reis desce a Rua do Século, onde o pessoal nobre aceitava viver paredes meias com o vulgo. O narrador aventa a hipótese de, no futuro, existirem bairros exclusivos – o que o leitor sabe que já acontecia no tempo da escrita.

De repente, diante de Ricardo Reis aparece uma multidão de gente pobre que enche a rua em toda a largura. Graças à qualidade de senhor bem-posto, Ricardo Reis avança facilmente por entre a mole humana, é como o cisne de Lohengrin (personagem do ciclo arturiano, filho de Percival) https://pt.wikipedia.org/wiki/Lohengrin

A falta de higiene e a pobreza

Ricardo Reis está, agora, defronte da entrada do grande prédio do jornal O Século, o de maior expansão e circulaçãoHá um odor de cebola, alho e suor recozido, de roupas raro mudadas, de corpos sem banho ou só no dia de ir ao médico, qualquer pituitária medianamente delicada se teria ofendido na provação deste trânsitoÉ o bodo do Século (75, 76). São mais de mil os contemplados. (…) Tudo gente pobre, dos pátios e barracas. (…) A cada pobre calha dez escudos e os garotos levam agasalhos, e brinquedos, e livros de leitura. (…) Há quem esteja o ano inteiro à espera do bodo.  Ricardo Reis subiu a rampa da Calçada dos Caetanos / Rua do Norte / Camões

A ironia saramaguiana: cada pobre é fiscal doutro pobre; queira Deus que nunca se extinga a caridade para que não venha a acabar-se a pobrezaesta gente de xale e lenço, de surrobecos remendados, de cotins com fundilhos doutro pano, de alpargatas, tantos descalços, e sendo as cores tão diversas, todas juntas fazem uma nódoa parda, negra, de lodo malcheiroso, como a vasa do Cais de Sodré (76-77)

Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie d'Artagnan premiado com uma coroa de louros…» Referência ao aproveitamento político e até religioso da obra do Poeta … O narrador inicia, a propósito, uma viagem Literária: Os Lusíadas / Dante, Canto I, Nel mezzo del camin di nostra vita / Bernardim Ribeiro, Menina e Moça / Cervantes, D. Quixote, En un lugar de La Mancha… / Vergílio, Arma virumque cano/ Ricardo Reis, Odes:

 Não tenhas nada nas mãos

Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem

Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos

Nada te cairá.

Que trono te querem dar

Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem

Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem

Da estatura da sombra

Que serás quando fores

Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores, mas larga-as,

Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica

E sê rei de ti próprio.

Era quase noite quando a Rua do Século ficou livre de pobres. Entretanto, depois de almoçar, Ricardo Reis ainda considerou ir ver o filme Gosto de Todas as Mulheres, com Jean Kiepura, no Tivoli, 1935 / Ich liebe alle Frauen (78) Acabou por voltar ao hotel, de táxi.

Jantar, perto das 9 horas. O hotel está vazio.  Ricardo Reis relembra a mão de Marcenda…. Sobe ao quarto; de súbito decide ir até ao Rossio ver o relógio da estação central (passagem para 1936). Vai ver o réveillon, ou révelion… 

Ricardo Reis desceu a Rua do Chiado e a Rua do Carmo. Para os lados do Teatro Nacional, o Rossio está cheio…está toda a gente de nariz no ar, com os olhos fitos no mostrador amarelo do relógio. Da Rua do Primeiro de Dezembro, um grupo de rapazes avança batendo com tampas de panela(84). Faltam 4 minutos para a meia-noite. Reflexão sobre os homens, … ai a volubilidade dos homens ... Começa a ouvir-se a voz profunda dos barcos ancoradosé meia-noite, a alegria de uma libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo…Na estação do Rossio, «lá está D. Sebastião no seu nicho da frontaria, rapazito mascarado para um carnaval que há de vir (…) é patente que o Desejado virá de comboio, sujeito a atrasos(85). O sebastianismo parodiado. Começa-se a atirar lixo para a rua. «O lixo - o que para uns deixou de prestar é vida para outros. Na madrugada do Ano Novo, Ricardo Reis, o velhinho, regressa ao Hotel. Só faltou que tivessem atirado também os velhos pelas janelas com o manequim - reflexão sobre a idade da velhice

A passagem de ano de Ricardo Reis durou pouco mais de meia hora. Voltou ao 201, «por baixo da sua porta passa uma réstia luminosasentado no sofá estava um homem. Fernando Pessoa, estava em corpo bem feito. Este tem só o fato preto, jaquetão, colete e calça, camisa branca, preta também a gravata, e o sapato, e a meia, como se apresentaria quem estivesse de luto ou tivesse por ofício enterrar os outros. Diálogo FP / RR Fernando Pessoa ainda tem uns oito meses para circular à vontade – de janeiro a agosto… As causas do regresso de Ricardo Reis a Portugal: o telegrama de Álvaro de Campos – senti que era uma espécie de dever; a intentona comunista no mês de novembro no Brasil (88 a 90) FP: Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra

A contradição fundamental da vida do monárquico Ricardo Reis: Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade. Ricardo Reis explica que creio que vim por você ter morrido, é como se, morto você, só eu pudesse preencher o espaço que ocupava, ao que Fernando Pessoa, que se apercebe que já não lê, já não se vê no espelho, responde: Nenhum vivo pode substituir um morto, Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto. (91)

Fernando Pessoa questiona Ricardo Reis sobre a identidade: e, além disso, se refletirmos bem, quem é você, a pergunta era obviamente retórica, não esperava resposta, e Ricardo Reis, que não a deu, também não a ouviu.

Capítulo IV

Os jornais elogiam o Estado português perante a queda iminente das grandes nações, que já pedem opinião, ajuda, ilustração (…) aos fortíssimos homens portugueses, à cabeça maximamente Oliveira Salazar, presidente do conselho e ministro das finanças. (93) ... o Governo de 1936, enumeração de pastas e respetivos titulares. Os elogios internos e externos da imprensa. (94).

Declaração de Pacheco Carneiro sobre a instrução primária e o encómio de Salazar, o maior educador do nosso século… (…) que se deve dar à instrução primária elementar o que lhe pertence e mais nada, sem pruridos de sabedoria excessiva, a qual, por aparecer antes de tempo para nada serve, e também que muito pior que a treva do analfabetismo num coração é a pura instrução materialista e pagã asfixiadora das melhores intenções

O modo como o escritor recolhe, seleciona e trata a informação: Não se cuide que estas notícias apareceram assim reunidas na mesma página de jornal (…) São acontecidos e informados de duas ou três semanas, aqui justapostos como pedras de dominó, cada qual com seu igual…(95) Ricardo Reis toma o pequeno-almoço trazido por Lídia que é quem faz a cama e limpa e arruma o quarto, chamando-lhe sempre senhor doutor que a trata como igual. Retrato de Lídia (95, 96): 30 anos, morena, muito bem feita, sinal junto da asa do nariz…

4 janeiro: Três dias haviam passado e Fernando Pessoa não voltou a aparecer…» (96) Ricardo Reis, suspenso, minuciosamente, lia os jornais - ver objetivo da leitura: para revestir o seu próprio rosto e retrato de uma nova substância, poder levar as mãos à cara e reconhecer-se. Na última página deu com um grande anúncio:  Casa de carimbos e chapas esmaltadas (o Freire Gravador, 1882, na esquina da Rua do Ouro com a Rua da Victoria – Aires Lourenço da Costa Freire). Extensa enumeração com referência «ao trabalho do divino ferreiro Hefestos» - o deus da tecnologia e dos ferreiros (96-98O labirinto: «Este anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia.» 

Ricardo Reis ao olhar para o anúncio, esqueceu-se do pequeno almoço, afligindo Lídia. Ricardo Reis coloca-lhe a mão no braço de Lídia: parecia que se estava dando um grande abalo de terra com o epicentro no quarto duzentos e um, mais precisamente no coração desta criada (99)São assim os labirintos, têm ruas, travessas e becos sem saída… 

 Ricardo Reis, depois do pequeno almoço, da leitura dos jornais, de Lídia, sai para a rua: Ora, Ricardo Reis é um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem passou (100) Nova notícia sobre a morte de Fernando Pessoa (101). Crítica dos jornais. Ricardo Reis pensa abrir consultório - o doente médico de um médico doente … Fernando Pessoa está parado à esquina da rua de Santa Justa, sem óculos… (102-103) Caminham para o Terreiro do Paço (a chuva) - o diálogo. Referência à ode 

Vivem em nós inúmeros;

Se penso ou sinto, ignoro

Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar

 Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.

Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia

 Indiferente a todos.

Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados

Do que sinto ou não sinto

 Disputam em quem sou.

Ignoro-os. Nada ditam

A quem me sei: eu escrevo.

        (13.11.1935)

A necrologia - Vai o ano de feição que os defuntos são correnteza (105): Leonardo Coimbra (criacionismo); Valle- Inclan (romance Lobos); John Gilbert (ator de A Grande Parada); de Rudyard Kipling, o poeta do If; Jorge V - 1492 óbitos em nov. de 1935…

A IRONIA (106-107): a mortalidade infantil (os anjinhos do céu); a posse do governo; a foto dos cumprimentadores; o sábio ditador (o estado novo); os homens bons e não bons; o povo (o sarcasmo): diga-me se não valia mais deixá-los morrer, poupava-se o vergonhoso espetáculo do nosso mundo…»

Reflexão sobre o homem: o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo.» Ricardo Reis elogia a beleza de Lídia (108) Envergonhado, decide sair de casa. No Politeama, viu o filme Cruzada Heroica (1936), na rua de Eugénio dos Santos - atual Rua das Portas de Santo Antão.

A cama tem 2 almofadas (indício, 109-110). Lídia entra na cama de Ricardo Reis…

Capítulo V 

Salvador transformado em gajeiro (a nau - o hotel Bragança fundeado no cais) anuncia a chegada do doutor Sampaio e filha. Irão ao teatro D. Maria, o Nacional, ver Tá Mar de Alfredo Cortez (1880-1946). Ricardo Reis decide ir também para ser um bom português (…) que devia frequentar as artes portuguesas. Ricardo Reis reflete sobre o nome de Marcenda: estranho nome, nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de violoncelo… Associa Marcenda a Verlaine e a Camilo Pessanha - o simbolismo. Feuille mortePaul Verlaine, Chanson d'automne  / Camilo Pessanha Poema: Chorai arcadas / do violoncelo! 

Analepse sobre o relacionamento amoroso de Ricardo Reis e Lídia (113). Indecisão sobre comportamento naquela circunstância - a proximidade dos quartos de Ricardo Reis e Marcenda. Alusão ao envelhecimento e ao anúncio Nhympha do Mondegopareceram-lhe hoje mais brancos os cabelos das fontes.

Ao jantar, Marcenda reage à presença de Ricardo Reis e informa o pai do reencontro (116). Os jornais, a telefonia mói umas cançonetas portuguesas, estrídulas, esganiçadas… O narrador: é talvez o pensamento que se vai pensando ou apenas pensando…»

A propósito do casamento impossível com Marcenda, Saramago cruza a descrição com fragmentos de Chuva Oblíqua: podem desaparecer o altar e o celebrante, calar-se a música… (117)

Ricardo Reis desce o Chiado para comprar bilhete para o Tá-Mar.  (118) Elenco da peça no Teatro Nacional: Palmira Bastos; Amélia de Maria Bem; Lalande de Rosa; Amarante de Lavagante… Voltou ao hotel, apenas, para mudar de roupa

A ode alcaica - diz-se do verso grego hendecassílabo com cesura entre o segundo e o terceiro pé. «Não se pergunte portanto ao poeta o que pensou ou sentiu, precisamente para não ter o dizer é que ele faz versos.» (118)

Ricardo Reis apercebe-se da impropriedade de vir a Lisboa uma doente que vive em Coimbra e, ao ir comprar bilhete para o Teatro (peça Tá Mar), repara na «abundância de pessoas que trazem sinais de luto» em memória do rei Jorge V de Inglaterra (20 janeiro 1936). Referência à necessidade de porto de abrigo para os pescadores da Nazaré. Obras no Teatro Éden, novo café Chave de Ouro. Lídia de Reis vs. Lídia de Saramago. (119)

Sofro, Lídia, do medo do destino.

Qualquer pequena cousa de onde pode

Brotar uma ordem nova em minha vida,

        Lídia, me aterra.

Qualquer cousa, qual seja, que transforme

Meu plano curso de existência, embora

Para melhores cousas o transforme,

        Por transformar

Odeio, e não o quero. Os deuses dessem

Que ininterrupta minha vida fosse

Uma planície sem relevos, indo

        Até ao fim.

A glória embora eu nunca haurisse, ou nunca

Amor ou justa estima dessem-me outros,

Basta que a vida seja só a vida

        E que eu a viva.

                  *

Sofro, Lídia, do medo do destino.

A leve pedra que um momento ergue

As lisas rodas do meu carro, aterra

        Meu coração.

Tudo quanto me ameace de mudar-me

Para melhor que seja, odeio e fujo.

Deixem-me os deuses minha vida sempre

        Sem renovar

Meus dias, mas que um passe e outro passe

Ficando eu sempre quase o mesmo, indo

Para a velhice como um dia entra

        No anoitecer.

No Teatro Nacional, Marcenda, três filas à frente…. Está sentada à direita do pai. Conversa, talvez, sobre o dramaturgo: Alfredo Cortez, autor de Tá Mar e de Os Gladiadores, peça já vista pelo Dr. Sampaio e de que não gostou… (120)

Chegam os pescadores da Nazaré. Ricardo Reis não gosta dos aplausos, por uma questão de sensibilidade e pudor - melindre de aristocrata de quem não tem sangue azul

Ricardo Reis reflete sobre o que viu e ouviu, acha que o objeto de arte não é a imitação, que foi fraqueza censurável do autor escrever a peça no linguajar nazareno, ou no que supôs ser esse linguajar, esquecido de que a realidade não suporta o seu reflexo, rejeita-o…(121-122)

Encontro de Ricardo Reis com o Dr. Sampaio e Marcenda no foyer no final do primeiro ato – apresentam-se apesar de estarem alojados no mesmo hotel. Voltam a encontrar no final do segundo ato. Marcenda tinha os olhos muito brilhantes… Durante o terceiro ato, sob o olhar atento de Ricardo Reis, Marcenda enxugou as faces perante gestos de amor…  Isto é a comunhão da arte, o publico aplaudia os bravos pescadores e as suas corajosas mulheres, até Ricardo Reis bate palmas… No teatro, o entendimento entre classes é fácil… Amanhã, à partida da camioneta, com assistência de jornalistas, fotógrafos e dirigentes corporativos, os pescadores da Nazaré «levantarão vivas ao Estado Novo e à Pátria. (126)

À saída do Teatro, novo encontro. Marcenda confessa que se comovera com o terceiro ato e Ricardo Reis diz-lhe que deu conta. Recusa o convite para regressar de táxi ao hotel, porque percebeu que seria um erro…. Decide voltar a pé… desce toda a Rua Augusta, já é tempo de atravessar o Terreiro do Paço, pisar aqueles degraus do cais… o Tejo, à noite, visto por Ricardo Reis – os vultos, os barcos, os contratorpedeiros que têm nomes de rios (127 -129) Paráfrase do rio que corre pela minha aldeia. O cívico que o aborda, não fosse ele algum suicida. (129) Segue pela Rua do Arsenal. Em 10 minutos, chega ao hotel. Suspendeu o passo à porta do quarto de Marcenda. Na cama, encontrou uma botija – boa rapariga essa Lídia. Tenta ler The Labyrinth, sem dar muita atenção ao que lia… fechou os olhos e quando os reabre estava Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, como se viesse de visita a um doente. (131)

Diálogo noturno entre Fernando Pessoa e Ricardo Reis sobre a incongruência do esteta ao receber uma serviçal - Ricardo Reis cativo de uma criada. Alusão à Natércia de Camões (132). Afinal, quem é que escreveu as odes? (F.P.) Quer que eu acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida à distância a que está

 A palidez do dia é levemente dourada.

O sol de Inverno faz luzir como orvalho as curvas

                Dos troncos de ramos secos.

                O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha

Crença, consolado só por pensar nos deuses,

                Aqueço-me trémulo

                A outro sol do que este.

O sol que havia sobre o Pártenon e a Acrópole

0 que alumiava os passos lentos e graves

                De Aristóteles falando.

                Mas Epicuro melhor

Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre

Tendo para os deuses uma atitude também de deus,

                Sereno e vendo a vida

                À distância a que está.

 Diálogo sobre o fingimento: Fingir e fingir-se não é o mesmo? Claro que não é o mesmo, eu apenas fingi, você finge-se, se quiser ver onde estão as diferenças, leia-me e volte a ler-se… (132-133)

Meia hora depois da saída de Fernando Pessoa, Lídia enfiou-se na cama, enroscou-se e perguntou Então, o teatro foi bonito

Capítulo VI

 A Salvador pareceu que estavam dando a notícia tarde de mais – da ida ao Teatro e do encontro de hóspedes. (135)

Ricardo Reis mostra-se preocupado com a ausência de Marcenda ao almoço. Esclarecida a ausência, decide sair para depois ficar…

Leitura dos "dessangrados" jornais de Lisboa: notícias nacionais e internacionais: Eduardo VIII, o novo rei inglês; o historiador Costa Brochado (1904-1989)- (https://omeupessoa.wordpress.com/tag/costa-brochado/ - felicita o ministro do Interior; a ideia da ligação da Áustria à Alemanha (Anschluss); as divergências no bloco eleitoral das direitas espanholas (138).

Marcenda regressa ao hotel carregada de embrulhos. Ricardo Reis não sabe o que fazer, pois quer evitar a atenção de Salvador e Pimenta… Marcenda promete voltar à sala de estar, para conversar com ele. Reflexão do narrador sobre a desvalorização da palavra: estava-se então no tempo em que as palavras eram novas e os sentimentos começavam. (140)  

Ricardo e Marcenda conversam sobre a peça Tá Mar: a representação nunca deve ser natural, o que se passa num palco é teatro, não é a vida, não é vida, a vida não é representável(141)

Diálogo sobre o braço (a mão esquerda) de Marcenda – três argumentos de Ricardo Reis para não falar sobre aquele caso. Lídia, que serve café, dá conta da alteração fisionómica de Marcenda. Enerva-se. Salvador apercebe-se.

Ricardo Reis pega no braço de Marcenda, sentindo pela primeira vez na vida o que é o abandono total, a ausência duma reação voluntária ou instintiva(143)

O início da paralisação terá acontecido 4 anos antes (em dezembro. Trauma (desgosto)? Soluço profundo de Marcenda. Minha mão morreu e o meu braço não se mexeu mais. (144)

Pergunta direta de Ricardo Reis: Não mexe o braço porque não pode, ou porque não quer. (145) Marcenda não responde à pergunta, o que leva Ricardo Reis a retorquir: tanto quanto posso julgar, se está doente do coração, também está doente de si mesma… Ricardo Reis explica por que está viver num hotel - não sabe se volta ao Brasil ou se continuará em Lisboa. (149)

Terminada a longa conversa, Ricardo Reis liga a telefonia na altura em que estão a transmitir A Lagoa adormecida, de Francisco Alves. (150)

Às 8 horas, o doutor Sampaio bate à porta de Ricardo Reis a convidá-lo a jantarem juntos. Conversa sobre o tratamento de Marcenda em Lisboa. A etiqueta entre pessoas civilizadas à entrada da sala de jantar…  Durante a refeição, o diálogo é sobre a Lusa Atenas, sobre a ida de Ricardo Reis para o Brasil em 1919, ano da restauração da monarquia no Norte, confessando o médico não acreditar em democracia e aborrecer de morte o socialismo. (154) O Dr. Sampaio revela-se admirador de Salazar, homem de alto pensamento e firme autoridade. Após longo elogio do estado da nação em 1936, o Dr. Sampaio recomenda a leitura do livro Conspiração do jornalista patriota Tomé Vieira, nascido em 1900 na Granja, concelho de Leiria… 

Capítulo VII

Sobre as leituras que o homem faz ao longo da vida. Será fácil fazer uma ideia aproximada das leituras de Ricardo, aluno que foi dos jesuítas. Por outro lado,  Alberto Caeiro, que, tal como Fernando Pessoa, não leu O Nome de Guerra, de Almada Negreiros, 1925 /1938, Deus saberá a falta que lhe fez.

Vem esta reflexão (159-164) a propósito da recomendação de leitura “A Conspiração” de Tomé Vieira, feita pelo Dr. Sampaio a Ricardo Reis, que já vai no capítulo 7… / resumo da obra – elogio do Estado Novo. Ricardo Reis considera o livro “uma estupidez”.

Comparação entre a situação portuguesa e a europeia, designadamente a espanhola Falange vs. ditadura vermelha (164). A declaração de Hitler: Saiba o mundo que a Alemanha será pacífica e amará a paz… Remilitarização da Renânia.

Portugal e as colónias. Ponto de vista de Lloyd George que considera Portugal favorecido em comparação com a Alemanha e a Itália. Referência ao Quinto Império de Pessoa, com ou sem colónias? (166) Conversa imaginada entre FP e RR sobre a consistência das afirmações de Pessoa. (167-168)

Lídia sente-se ignorada, por pouco tempo… Cena de sangue na Mouraria. (169) Ricardo Reis assiste à saída do préstito do Mouraria e acompanha-o até ao Paço da Rainha. Surpreendido com o ajuntamento popular, chega ao ponto de o comparar com o bodo do Século… a diferença, no entanto, tinha origem no vestuário carnavalesco de mulheres e homens – pobreza e riqueza misturadas; a marginalidade em cortejo fúnebre.  As roupas encarnadas eram utilizadas em ‘dias assinalados’, do nascimento à morte. (171-173) Referência a Gil Robles (Espanha), anti luta de classes, mas defensor da justiça social, isto antes das eleições que foram ganhas pela esquerda – 16 de fevereiro de 1936. Manuel Azaña lideraria a coligação de esquerda.

Boatos sobre a preparação de um golpe militar em Espanha, liderado pelos generais Manuel Goded Llopis e Francisco Franco. (174) Fernando Pessoa indica o comunismo como causa do conflito espanhol… para acabar citando, com Ricardo Reis, Álvaro de Campos Ah, todo o cais, É uma saudade de pedra… Tinham-se encontrado num café de bairro, onde chalaçam sobre o carnaval que se avizinha (175-176).

Ricardo Reis teme que a sua relação com Lídia se torne escandalosa. Entretanto, o Bragança começara a encher-se de espanhóis. Gente rica que fugia dos comunistas. (178)

Referência à decisão do Governo de dar início ao estudo para construção de uma ponte sobre o Tejo, assim como à proposta de um ministro ‘a preconizar a criação de uma sopa dos pobres em cada freguesia.’  E também ao cardeal Pacelli – alusão ao futuro Papa Pio XII - que vê em Mussolini o maior restaurador cultural do império romano. (180) Ricardo Reis compara o carnaval brasileiro com o português. Chove durante o desfile carnavalesco na Avenida da Liberdade. Descrição do corso. O elogio das crianças! A mascarada da morte. Seria Fernando Pessoa? (182-188)

Capítulo VIII
Noite febril, Ricardo Reis sonha com grandes planícies banhadas de sol, assombrado pela hipótese de Fernando pessoa se ter mascarado de morte. Retoma a leitura The God of the labyrint – apenas página e meia. Regressa no sonho ao Rio de Janeiro – bombardeamento das praias de Urca e Vermelha. Ver intentona comunista ou Revolta Vermelha de 35 contra o governo de Getúlio Vargas em 27 de novembro de 1935. A relação com Lídia menos sôfrega. (189-192)
Desponta o dia, 2ªfeira de carnaval.
Versos de Ricardo Reis: Nada somos que valha /somo-lo mais que em vão / (192)

Flores que colho, ou deixo,
Vosso destino é o mesmo.
Via que sigo, chegas
Não só aonde eu chego.
Nada somos que valha
Somo-lo mais que em vão.

Lídia – aquela mão castigada de trabalhos - é comparada com as mãos de Cloe, Neera e a outra Lídia, dos afuselados dedos, das cuidadas unhas, das macias palmas de Marcenda. (193)
De cama, durante dois dias, Ricardo Reis é tratado por Lídia, numa perturbadora intimidade só dos dois conhecida. (194-195) Perde-se o carnaval na chuva que vai caindo. Referência a Luís Ucedo Ureña - 4 de janeiro de 1936: no Diário de Lisboa surge uma pequena notícia que dá conta do desaparecimento de Luis Uceda Ureña desde 30 de dezembro de 1935. Luis Uceda Ureña era chefe de contabilidade no Banco Comercial de Lisboa. Durante semanas não se sabe do paradeiro de Luis Uceda Ureña. Até que a 22 de fevereiro, o proprietário de um terreno no Alto do Forte junto à estrada que ligava Lisboa a Sintra encontra um cadáver no meio de um matagal.
Ricardo Reis recebe uma contrafé da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. (196-197) No dia 2 de março, às 10 da manhã, tem encontro marcado na Rua António aria Cardoso. Lídia teme a intimidação policial, porque o irmão contava-lhe coisas pouco abonatórias sobre a pvde. (198-199) Lídia dá informação sobre o irmão: está na Marinha, no Afonso de Albuquerque, tem 23 anos e chama-se Daniel Martins e é ‘contra a situação’. Lídia é filha de pai incógnito. (200) Ricardo Reis volta à conversa com o Dr. Sampaio sobre o livro “Conspiração” – sai-se da leitura como de um banho lustral. (205)
Ricardo Reis janta no quarto e escreve: Como as pedras que na orla dos canteiros o fado nos dispõe… (206)

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.
E deseja o destino que deseja;
                Nem cumpre o que deseja,
                Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
                Que a Sorte nos fez postos
                Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
                Cumpramos o que somos.
                Nada mais nos é dado.

Marcenda já sabe da chamada à polícia e avisa-o de que o pai não quer ser visto com Ricardo Reis. Por escrito, Marcenda marca encontro com Ricardo Reis no Alto de Santa Catarina.
No dia seguinte, Ricardo Reis almoça no Irmãos Unidos, sobe a rua do Carmo, entra na Brasileira, onde escuta uma conversa patética e ambígua. Sai, atravessa o Largo de Camões – atravessou a praça onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o veem…» (208)
Antes das 3 horas, chega ao Alto de Santa Catarina. Descreve a estátua do furioso Adamastor, toscamente desbastado. Sentados num banco, dois velhos… Entretanto, surge Fernando Pessoa, ácido e irónico, comentando as ações de Ricardo Reis, feito D. João… - trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher as mãos e ainda espera por outra dama… Fernando Pessoa, afinal, prefere o Ricardo Reis de outro tempo… (210-211)
Ricardo Reis cita a Marcenda uns versos de Fernando Pessoa: Entre o que vivo e a vida, entre quem estou e sou

Porque é que um sono agita
Em vez de repousar
O que em minha alma habita
E a faz não descansar?
Que externa sonolência,
Que absurda confusão,
Me oprime sem violência
Me faz ver sem visão?
Entre o que vivo e a vida,
Entre quem estou e sou,
Durmo numa descida,
Descida em que não vou.
E, num infiel regresso
Ao que já era bruma,
Sonolento me apresso
Para coisa nenhuma.
6-9-1933

Diálogo com Marcenda sobre a poesia e depois sobre a saúde dela. Marcenda põe a hipótese de ir a Fátima, tal é a sua descrença na medicina. Marcenda traz de volta a intimidação da pvde. Ricardo Reis mostra-se confiante, pois não tem nada de que o possam acusar. Marcenda pede-lhe que escreva a dar notícias para a posta-restante… um dos velhos avistara Fernando Pessoa! E Ricardo Reis viu uma casa com escritos no segundo andar… (213-214)

Capítulo IX

O tempo adverso, que desde finais de 1935 mantém-se diariamente acentua a pobreza e a miséria social, acompanha Ricardo Reis na sua ida à polícia na Rua António Maria Cardoso (215-218). Pontual, de contrafé na mão, espera até que um ‘homem, que cheirava intensamente a cebola’- o Victor - o conduz por um corredor comprido até entrar numa sala onde a uma secretária se encontrava um outro homem – o doutor-adjunto. Ricardo Reis identifica-se já mais calmo, explica a sua proveniência e profissão, a chegada a Lisboa no dia 29 de dezembro, o tempo vivido no Brasil (de 1919 a 1935), a razão do regresso e o projeto de abrir consultório, os amigos do Rio de Janeiro – a inquirição é lhe apresentada como uma simples’ conversa’…, no entanto recusa-se a revelar os nomes dos seus conhecimentos…, expõe a seu alheamento da política, apesar da referência às ‘sopas dos pobres’… (222) Já na rua, nova bátega. Em suma, Ricardo Reis não gostou nada daquela experiência policial, chega a desejar um terramoto que soterrasse o Victor e o doutor-adjunto. Lídia revela-se preocupado com o sucedido, mas Ricardo Reis ironicamente desvalorizou a ação policial, embora referisse «fiquei com a impressão de que podem perguntar tudo.» (224)
O jornal francês Le Jour elogia Salazar: «homem enérgico e simples, cuja clarividência e sensatez deram ao seu país a prosperidade e um sentimento de altivez nacional.» (225)
Ricardo Reis escreve uma carta a Marcenda. Hesitação sobre o vocativo a utilizar. Dá-lhe conta do que passara com a polícia, procurando descansá-la e avisa que talvez venha a abandonar o hotel. A chuva intensa continua “já o Cais de Sodré se está alargando”. (229 Ricardo Reis medita: Estás só, ninguém o sabe, cala e finge” …

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada esperes que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis engana o Salvador sobre o teor da conversa na polícia. Este, no entanto, não deixou de inquirir o amigo “Victor” … Anuncia a Lídia que vai alugar casa. Esta pede-lhe para o visitar nos seus dias de folga e quase que lhe confessa a sua paixão, pese o desnível social e educativo. (232)
Ricardo Reis procura casa. Entretanto, no Brasil, Luís Carlos Prestes foi preso – militar e político comunista, 1890-1990) Ocupação da Renânia pela Alemanha. Prisão do fascista espanhol José António Primo de Rivera. O seu partido foi declarado ilegal. Kierkegard publicou o Desespero Humano. Novas cheias no Ribatejo. Enquanto procura casa nos anúncios dos jornais, Ricardo Reis vai tomando conhecimento do que passa no mundo. Finalmente, encontra o anúncio do 2º andar mobilado na Rua de Santa Catarina (Diário de Notícias). Volta, assim, aquela rua onde continuam os dois velhos sentados no mesmo banco de há três semanas…. Encontrado o procurador na Baixa, RR regressa ao 2º andar… De uma janela, avistava-se o Adamastor, os velhos, o rio sujo… Casa alugada! (239)

Capítulo X
Ricardo Reis muda para o Alto (Rua) de Santa Catarina. Com ajuda da ‘criada’ Lídia. Trabalhos de instalação doméstica. Carta para Marcenda, com a indicação da nova morada. A metáfora da teia de aranha (Porto, Rio, Lisboa) … (242) Testemunhas da mudança: os velhos. Da janela, vê-se o largo rio – a vida marítima. Ricardo Reis vai Jantar à Rua dos Correeiros – Ah como é diferente a vida no Hotel Bragança, mesmo não sendo de primeira classe. (244) Um dia sem chuva. Sai do hotel no sábado, tendo dificuldade em informar o Salvador, gerente – como se tivesse regressado à sua adolescência de educando dos jesuítas… (245) Acaba por o fazer, melindrando o gerente, que queria saber para onde é que ele se mudava. (248) Durante a mudança, Ricardo Reis (e os moços de fretes) cruzam-se com elétricos apinhados de gente loura de cabelo e rosada pele, são alemães excursionistas, operários da Frente Alemã do Trabalho, quase todos vestidos à moda bávara… (251) Apresentação da casa em discurso indireto livre Esta é a porta de entrada da minha casa… agora entremos todos… Quando tornar a precisar da gente, patrão… (252) Volta a chover. Lá fora, os velhos, um alto, outro baixo, cada qual com o seu guarda-chuva… (254) A iluminação dos exteriores em 1936. Ricardo Reis observa o acendedor de candeeiros. Alusão à Tétis do Adamastor de Os Lusíadas. (256). O mito de Adão e Eva. (258-259). A solidão pesa-lhe como a noite, a noite prende-o como o visco… (259) Regressa aos seus papéis. Projetos: restaurante, livro, consultório, viagem, encontrar Marcenda. (260) Deita-se, lê 10 páginas do Sermão da Primeira Dominga da Quaresma. Adormece a pensar em Lídia, mas quem o visita é Fernando Pessoa. Refletem sobre a solidãoa solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós. (262) A morte também é pleonástica, é mesmo a mais pleonástica de todas as coisas. (…) A primeira solidão é não sentirmos úteis. (263) Saramago atribui a Fernando Pessoa a seguinte ideia: imperdoável esquecimento, não ter posto o Adamastor na Mensagem.. (264) Fernando Pessoa passa grande parte da noite no quarto de Ricardo Reis.

Capítulo XI
O silêncio como meio-irmão da solidão. (267) Ricardo Reis esqueceu-se dos fósforos. Teve de ir à rua de manhã…acabou por ir ver o rio e a outra margem. Verificou a autoria da estátua do Adamastor, que data de 1927. Reencontra os velhos que leem o Século dos bodos. (269) Neste, se volta a Luís Uceda, desaparecido desde 30 de dezembro de 1935 na estrada de Sintra. No seu porta-moedas havia, estampada, uma fotografia a cores de Salazar… (270) Ver ironia saramaguiana.
Regressa a casa, toma o pequeno almoço, cuida demoradamente da sua higiene como se tivesse encontro arcado com alguma mulher. Volta a sair. Começa o seu passeio pelo Calhariz, desceu ao Camões, ali teve o impulso sentimental de visitar o Hotel Bragança. (273) Vai almoçar ao Chave de Ouro (fundado em 1916 e remodelado em 1936, praça D. Pedro IV). Vai ao cinema ver O Barqueiro do Volga, filme francês (1936), com Pierre Blanchard. Mal regressa a casa, Lídia bate à porta. Lídia anuncia que virá 6ªfeira fazer a limpeza e trazer os produtos que faltam. Lídia anuncia a chegada de Marcenda. Ricardo Reis revela-se consciente da sua duplicidade. (278) Não sai de casa para jantar e reinicia a leitura de The god of the labyrinth, mas adormece. De manhã, é visitado pela leiteira e o padeiro, com quem acaba por acordar o fornecimento matinal de leite e de pão. Até a gazeta acabará por receber diariamente.
Na nova casa, Ricardo Reis projeta ler as gazetas, da manhã e da tarde, reler, medir, ponderar e corrigir desde o princípio as odes, retomar o labirinto e o deus dele, olhar da janela o céu (…) que um destes dias irá comprar uma telefonia (282) Da leitura dos jornais, para além da enumeração de anúncios, destacam-se a inauguração por Salazar dos refeitórios na Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, o estado de guerra no Brasil,  o agravamento da situação política na Alemanha, em Espanha e no Reino Unido…; o início das filmagens da Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro, estreado em 1937 (283) - muito provavelmente, o único - filme de propaganda ideológica feito pelo salazarismo: nele, a personagem principal, um homem com inclinações comunistas, apaixona-se por uma senhora bastante afecta à ideologia implementada pelo 28 de Maio. Desenrola-se então uma espécie de luta de bem contra o mal, i.e., das ideias do salazarismo contra as do comunismo. No fim, o homem acaba por abandonar os seus antigos pontos de vista e abraçar a causa de Salazar. O filme foi financiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro.

Ricardo Reis associa o filme ao romance a Conspiração – história de conversão ao nacionalismo. Entretanto, Ricardo Reis teme que Marcenda não apareça, mas no último prazo ela surge. (286) Entram para o escritório. O primeiro beijo de Marcenda, que ela acaba por interromper… temendo o futuro do momento. O pai de Marcenda acha que ela deve ir a Fátima, pois pode acontecer um milagre se ela tiver fé.


Capítulo XII
As vizinhas de Ricardo Reis interrogam-se: Francamente, vizinha, não lhe sei dizer, mudou-se faz amanhã oito dias e já lá entraram duas mulheres… (293) Foi um dia de muito trabalho para Lídia – limpar toda aquela casa. Os equívocos das vizinhas, quando Ricardo Reis saiu para almoçar. As vizinhas veem-se obrigadas a reconhecer que Lídia sabe o que faz. Por outro lado, não sabe resistir às solicitações do doutor – toma banho lá em casa; pela primeira vez estão ambos nus. (298)
Ricardo Reis escreve a Marcenda uma extensa carta, trabalhosamente pensada. (…) Sinto que quem sou e quem fui são sonhos diferentes. Nova paráfrase. (300)

Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
        Quem fui é alguém que amo
        Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
        Senão de quem habito
        Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
        Que quem sou e quem fui
        São sonhos diferentes.

Ricardo Reis foi à procura de um emprego médico. Ironia: Não há falta de médicos; felizmente, só de sifilíticos temos seiscentos mil … por cada mil crianças nascidas morrem cento e cinquenta. (300) Acabou por encontrar o gabinete na Praça de Camões: da janela, é certo que se vê o d’Artagnan de costas. Uma substituição temporária de um colega especialista de coração e pulmões, apesar de Ricardo Reis não ter grandes conhecimentos nestas matérias (302) Acorda as condições da esculápica sublocação.
Escreve novamente a Marcenda, sem ter tido resposta, a falar da nova vida de médico em atividade. O tempo tem melhorado, o mundo é que vai pior. Já é primavera. (203) Reflexão sobre a morte, a fome escondida; os lusitanos e os alemães. O humor samaraguiano. (304) O aparecimento de Hitler em público – o delírio do povo alemão. Os italianos. Os espanhóis. A fome leva à emigração, por exemplo para o Brasil – só em março foram seiscentos e seis. (305-306)
Chegado o tempo de Páscoa, o governo mandou distribuir por todo o país bodo geral (…) Os pobrezinhos fazem bicha nem sempre paciente às portas das juntas de freguesia e das misericórdias… (306) Alusão à censura dos jornais. Ricardo Reis continua a leitura dos jornais – as receitas. Se o tempo abre, vai lê-los junto do Adamastor – alusão ao episódio de Os Lusíadas, que Camões terá exagerado… (308). Os velhos esperam que ele lhes deixe o jornal sobre o banco. Notícias sobre Mussolini que aniquila as forças etíopes; sobre o apoio militar soviético à hipotética União das Repúblicas Ibéricas Soviéticas Independentes; sobre o povo eleito de Lumbrales - Portugal; sobre o cortejo da jornada corporativa do Norte… (309)
De regresso a casa, Ricardo Reis vê um sobrescrito na passadeira. É de Marcenda. Lê-a, depois de uma longa hesitação. (313) O que os separa: o braço, a idade. Escolhe a amizade. Na ida a Lisboa, visitá-lo-á no consultório. Refere novamente a vontade do pai de que ela vá a Fátima. Referência a todas as cartas de amor são ridículas. (315)
Sai para jantar, pessoa educada, nem se dava por ela, jantava sozinho, mas mantinha sempre dois talheres… Janta. Sai. Apanha o elétrico – viagem comprida em direção à Rua Ferreira Borges (Campo de Ourique). Sai no enfiamento da Rua Domingues Sequeira. Segue pela Rua de Saraiva de Carvalho em direção ao cemitério. O portão está fechado. Meteu as mãos nas grades, mas nenhuma outra mão veio apertar a sua. (319)

Cap. XIII
Fernando Pessoa espera Ricardo Reis junto do Adamastor e interroga-o sobre as suas relações com Lídia e Marcenda, estranhando-as, sobretudo porque no passado o heterónimo apenas se acolhia à sombra de três musas clássicas: Neera, Cloe e Lídia. (321-322) Questiona sobretudo a natureza dos sentimentos… Reflexão sobre a morte: sabemos que os outros morrem e não que nós morremos…. Sobre a vida: o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos. (323) Referência ao poema de Pessoa, mensagem agora rejeitada: Neófito, não há morteIniciação

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
......
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
......
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
......
Neófito, não há morte.

Autoridade: Pero Grulho – personagem cómico, fruto da imaginação popular.
Reflexão de Pessoa sobre a memória e o esquecimento, jogo que o último acaba sempre por ganhar. Neófito, há morte. (324) Fernando Pessoa acompanha Ricardo Reis a casa. À porta estava o agente Victor, reconhecível pelo violento odor de cebola. Ricardo Reis questiona-o sobre a sua presença ali. E diz-lhe que mora ali, no 2º andar. Em casa, Fernando Pessoa recosta-se no sofá do escritório. (326) Ricardo Reis informa-o de que o estranho é da polícia, tal como o doutor-adjunto. Fernando Pessoa provoca-o sobre um hipotético abuso sexual de Lídia que teria apresentado queixa à pvde- interlocutor errado. Para tal, existia a polícia dos costumes… FP recusa o estatuto de fantasma: fantasma não sou, um fantasma vem do outro mundo, eu limito-me a vir do cemitério dos Prazeres. (327) Fernando Pessoa alude aos versos que fez a Salazar.
António de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequência regular...
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
......
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Pica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
......
Coitadinho
do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.
Mas enfim é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.

É o ditador português, o protetor, o pai, o professor, o poder manso, um quarto de sacristão, um quarto de sibila, um quarto de Sebastião, um quarto de Sidónio, o mais apropriado possível aos nossos hábitos e índole, Alguns pês e quatro esses… (327) Conversam sobre a popularidade de Salazar na imprensa estrangeira. São artigos encomendados pela propaganda… Fernando Pessoa sonha que estava vivo. Reflexão sobra a vida e a morte. Pede a Ricardo Reis que lhe dê notícias dos últimos 5 meses. (329) Hitler fez 47 anos (n.1889) e passou revista a 33.000 soldados num ambiente de veneração quase religiosa… (330) Por cá, o arcebispo de Mitilene defende que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal. Nova referência a Mensagem – quando na Mensagem chamei santo a Portugal. Fernando Pessoa pensava que tinha exagerado. (331) O Cardeal Cerejeira em alocução aos seminaristas: sede angelicamente puros, eucaristicamente fervorosos e ardentemente zelosos. (332) Deus como avalista político na Alemanha e em Portugal. Continuação da leitura de notícias: Pio XI e o cinema; Maximino Correia e Angola; distribuição de pão em Olhão; associação secreta espanhola; Sociedade de Geografia; 50.000 espanhóis refugiados em Portugal, segundo o jornal Pueblo Gallego; Tavares, restaurante. Fernando Pessoa profetiza uma guerra civil em Espanha. (333)
Visita de Lídia. Ricardo Reis dormira mal. Analepse referente ao junho de 1916, lembrando que Ricardo Reis tinha acabado de escrever a ode mais extensa Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia… Ricardo Reis ignora a alusão de Lídia a namoro e casamento e reflete sobre o corporativismo – receita de um novo paraíso… (336) Não vira o zepelim que passara por cima de Lisboa… a sua origem: general e astronauta alemão, conde Graf Zeppelim. (337). A cruz, gamada ou suástica, emblema da Alemanha, dos nazis. Lídia mostra-se informada, através do irmão, Daniel. O corpo recusa-se, a primeira vez. Lídia sai infelicíssima.
Três dias mais tarde, Marcenda surge no consultório. Revela que não deverá voltar ao médico. Não tem qualquer esperança. Conversam sobre as cartas anteriores. Voltam a beijar-se. O desejo intensifica-se até que Ricardo Reis pede a Marcenda que case com ele. Ela rejeitou.  Sai do consultório. Atravessa a praça de Camões. (340-345)


Capítulo XIV
Carta de Marcenda anunciando que não voltará a visitar nem a ver Ricardo Reis. Informa que foi desenganada sobre a recuperação do braço. Pede que não volte a escrever. A pedido do pai, irá a Fátima. Ricardo Reis gostaria de ter informado Marcenda que é poeta e não apenas médico de clínica geral. (350) As mulheres da poesia são abstrações líricas, pretextos, inventado interlocutor. Exemplo do poema que dedicaria a Marcenda. (350-351

Vive sem horas. Quanto mede pesa,
        E quanto pensas mede.
Num fluido incerto nexo, como o rio
        Cujas ondas são ele,
Assim teus dias vê, e se te vires
Passar, como a outrem, cala.

Relembra as palavras ditas no consultório, da última vez que estiveram juntos. Retoma a interpretação do drama do Adamastor – de amor. Entretanto, em Portugal, o tempo é de festa: celebra-se a data do aparecimento do professor António de Oliveira Salazar na vida pública, há oito anos… e também o seu aniversário – 47 anos. Nasceu no mesmo ano do Hitler. Aproxima-se a Festa Nacional do Trabalho, com um cento de carros ornamentados, apagando as comemorações do Primeiro de Maio, que não estão autorizadas… (352) Referência à evolução política em Espanha e França. Mussolini anuncia o fim da guerra na Etiópia – a Itália tem alma imperial. Retrato de Addis-Abeba a ser destruída – repetição (354-355) Nova alusão aos jogadores de xadrez.
Ricardo Reis regressa às suas odes. Mestre são plácidasos deuses desterradoscoroai-me em verdade de rosaso deus Pã não morreude apolo o carro rodouvem sentar-te, comigo, Lídiao mês é junho e ardentea guerra já não tarda… (356) Ricardo Reis e Lídia, juntos. Nas varandas, as vizinhas azedas e invejosas trocam palavras com segundo sentido. Lídia sente-se feliz. Ricardo Reis informa-a que amanhã vai a Fátima. Lídia sabe que Marcenda também tenciona lá ir.
Ricardo começa a ler o Desaparecido (1935) de Carlos Queirós, poeta que poderia ter sido sobrinho de Fernando Pessoa. Comentário:
A beleza do livro começa pelo livro. A edição é lindíssima. A beleza do livro continua pelo livro fora: os poemas são admiráveis.
Não se pode dizer deste livro o que é vulgar dizer-se, elogiosamente, de um primeiro livro, sobretudo de um jovem: — que é uma bela promessa. O livro de Carlos Queiroz não é uma promessa, porque é uma realização. Cumpriu, sem ter prometido, sem ter tido que prometer.
Assim se deveria fazer sempre, ou quase sempre. Pertence ao mais íntimo da probidade literária e artística o não se apresentar ao público sem ter plena consciência de que na obra apresentada está tudo quanto em nós haja de forte. Não escrevia Milton um soneto sem que o fizesse como se desse soneto dependesse toda a sua fama futura.
E que prazer o de se poder escrever isto sem que a amizade que tenho pelo poeta, que é muita, uma só palavra me dite; sem o que o gosto de incitar quem é jovem, e tenho esse gosto, me faça sublinhar uma só frase; de poder escrever isto sem mais entendimentos que com a justiça, sem mais combinações que com a verdade.

Diálogo virtual entre Lídia e Marcenda sobre a respetiva relação com Fernando Pessoa.
Ricardo Reis interrompe a leitura de Varina, de Carlos Queirós (360):

Ó Varina, passa,
Passa tu primeiro...
Que és a flor da raça,
A mais séria graça
Do país inteiro!

Teu orgulho seja
Sonora fanfarra,
Zimbório de igreja!
Que logo te veja
Quem entra na barra.

Lisboa, esquecida
Que é porto de mar,
Fica esclarecida
E reconhecida
Se te vê passar.

Dá-lhe a tua graça
Clássica e sadia,
Ó Varina, passa...
Na noite da raça
Teu pregão faz dia!

Vê que toda a gente
Ao ver-te, sorri.
Não sabe o que sente,
Mas fica contente
De olhar para ti.

E sobre o que pensa
Quem te vê passar,
Eterna, suspensa,
Acena a imensa
Presença do Mar!

Ricardo Reis beija Lídia, como já fizera com Marcenda.
Na manhã seguinte, Ricardo Reis partiu de comboio do Rossio, às 5 h e 55 minutos, com destino a Fátima. 12.05.1935. Comprara antecipadamente bilhete de primeira classe, lugar marcado… (360-361) A viagem de comboio ao longo de Tejo. Depois de Santarém, a viagem é lenta. O comboio vai sobrelotado. Ricardo Reis dormita. Imagina Marcenda ajoelhada… sem, no entanto, acontecer qualquer milagre… Ricardo Reis, o milagreiro, rodeado por uma multidão de peregrinos…. Chegado à estação de Fátima, o comboio despejou-se. Faltam 20 km para chegar à Cova da Iria. Procura um lugar onde possa almoçar. Não havia em condições. Acabou por comer uns carapaus fritos com batatas cozidas, de azeite e vinagre… tudo oferecido. (364)
Consegue apanhar uma camioneta de carreira. Lá se sentou – alçando a perna por cima dos cestos e dos atados de esteiras e mantas, excessivo esforço para quem está em processo de digestão e afracado do calor. (364) Descrição do percurso dos milhares que vão a pé. Muitos descalços, guiados pelos párocos… cantam desafinadamente, de modo lamuriento… as mulheres e os homens fingindo. Tudo envolto em poeira. Este povo continua a acreditar que o que defende do frio defende do calor. (366) Ricardo Reis atesta a morte de um romeiro. A viagem é retomada com Ricardo Reis a ser alvo das atenções. Evocação da ressurreição de Lázaro – o milagre que não se dá mesmo indo a caminho da Cova de Iria.
A camioneta avaria. Radiador não resiste. Ricardo Reis junta-se ao fluxo dos passageiros. (368) Por cima, um avião lançava prospetos de todas as cores. O povo analfabeto apanha-os, sem saber o que fazer. Ricardo Reis informa que é um anúncio do Bovril…
A cova de Iria é um mar de gente acampada: não falta ninguém; um acampamento de ciganos… Ricardo Reis leva nas mãos a maleta, não sabe onde dirigir-se… o sol está abrasador… vai à procura do hospital… Na enfermaria, as camas eram reduzidas para o número de doentes (30 para 300) … Não encontra Marcenda. Foi à procura de uma sombra e aí se deixou ficar. (371) Tudo parece absurdo a Ricardo Reis, este de ter vindo de Lisboa a Fátima como quem veio atrás de uma miragem sabendo de antemão que é miragem e nada mais… (372) alusão às raparigas de Alberto Caeiro. Entretanto, descobre uma outra peregrinação, a do comércio e mendicância. Distinção entre o pobre de pedir e o pedinchão. Os desempregados. Os vendilhões. Desce à esplanada rumorosa, mergulha na profunda multidão. Está a sair a imagem da capelinha de aparições (…) o sobrenatural veio e soprou sobre duzentas mil cabeças, alguma coisa vai ter de acontecer. (375)
Não houve milagres. Ricardo Reis arranchou com um grupo debaixo de um toldo, sem confianças, apenas uma irmandade de ocasião. (376) Ricardo Reis não verá Marcenda. Vê-se a si como um ser duplo. (377)

A meio da manhã do dia seguinte, Ricardo Reis decide partir. Não ficou para o adeus à Virgem. Na curva do caminho estava uma cruz de pau espetada no chão. Afinal não tinha havido milagre. (378)

Capítulo XV
Da ideia oficial de ‘povo eleito’ à paródia do Quinto Império. (379) O presidente da República, general António Óscar de Fragoso Carmona é posto a ridículo.
Regressado de Fátima, Ricardo Reis não saiu de casa durante três dias. Quando saiu com o jornal, onde surgia a patriótica afirmação do senhor presidente, foi sentar-se à sombra do Adamastor. Estavam lá os velhos a ver chegar os barcos que vinham visitar a terra prometida.
De volta ao consultório, Ricardo Reis recebe uma carta do médico titular, quando ele imaginava que fosse de Marcenda a explicar a sua ausência…. Só exercerá ali durante mais 12 dias. (383)
Lídia não tem aparecido. Ricardo Reis está agora sozinho em casa. À janela. Deita-se pensa em Fernando Pessoa, Caeiro, Álvaro… De vez em quando, vai ao cinema. (384) Começa a pensar em voltar ao Brasil – este país não é seu… tem uma história só fiada de Deus e de Nossa Senhora. Fernando Pessoa aparece de vez em quando para dizer uma ironia… Marcenda deixou de existir. (385) Lídia é aia de Ana Karenine, serve para arrumar a casa e para certas faltas…
Ricardo Reis esclarece Lídia sobre a ida a Fátima – Foi uma vez para saber como era. Diz-lhe que não encontrou o Dr. Sampaio nem a filha. Pergunta-lhe pelo irmão, a pretexto do discurso de um tal engenheiro Nobre Guedes – Francisco José Nobre Guedes (1893-1969), foi o 1º comissário nacional da Mocidade Portuguesa (1936-1940). Anticomunista, considera repugnante a folha do Marinheiro Vermelho, ao contrário de Lídia que o apreciava – órgão clandestino da ORA – Organização Revolucionária da Armada (PCP, 1934-1936). Ver julgamento do Manuel Guedes + 40 réus. (389)
Alguns dias mais tarde, recebe a visita de Fernando Pessoa, quando procurava escrever Nós não vemos as Parcas acabarem-nos (390):

Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
        Nem dá de Apolo ao carro
        Outro curso que Apolo.
Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
        Olhe até não ver nada
        Com seus cansados olhos.
Vê como Ceres e a mesma sempre
E como os louros campos entumece
        E os cala pràs avenas
        Dos agrados de Pã.
Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
        As ninfas não sossegam
        Na sua  dança eterna.
E como as hemadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
        E atrasam o deus Pã
        Na atenção à sua flauta.
Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
        Quer sob o ouro de Apolo
        Ou a prata de Diana.
Quer troe Júpiter nos céus toldados,
Quer apedreje com as suas ondas
        Neptuno as planas praias
        E os erguidos rochedos.
Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
        Por isso as esqueçamos
        Como se não houvessem.
Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
        Não nos vale pensarmos
        No futuro sabido
Que aos nossos olhos tirará Apolo
E nos porá longe de Ceres e onde
        Nenhum Pã cace à flauta
        Nenhuma branca ninfa.
Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
        De ir imitando os deuses
        Até sentir-lhe a calma.
Venha depois com as suas cãs caídas
A velhice, que os deuses concederam
Que esta hora por ser sua
Não sofra de Saturno
Mas seja o templo onde sejamos deuses
Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios
Nem precisam de crentes
Os que de si o foram.

Vejo-o cada vez menos queixou-se Ricardo Reis. Fernando Pessoa refere que bem o tinha avisado… com o passar do tempo vou-me esquecendo. (391) Relembra a infância em Durban, a propósito da estátua do Adamastor. Hoje encontrou a casa por causa do odor de cebola do Victor que continua em vigilância. Ricardo Reis interroga Fernando Pessoa sobre António Ferro – 1895/1956, dirigiu o Secretariado da Propaganda Nacional, desde 1933 a 1949). Fernando Pessoa apresenta-o com amigo, dizendo devo-lhe a elo os cinco contos de réis do prémio da Mensagem. (392).  Em 1936, quem recebeu o prémio foi Carlos Queirós, o sobrinho da Ophelinha… Referência às Cartas de Amor. O donjuanismo frustrado.
Fernando Pessoa considera que as odes de Ricardo Reis são uma poetização da ordem. Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram, E os homens que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino… (394-395) Sobre António Ferro: O Ferro é tonto, achou que o Salazar era o destino português, o messias… em nome da ordemo sebastianismo.
O general António Óscar de Fragoso Carmona no dia 21 de maio de 1936 preparava-se para presidir ao lançamento do João Lisboa à água. O barco de aviso navio de guerra, pequeno e veloz) de segunda classe João Lisboa começa a deslizar carreira abaixo sem que ninguém lhe tivesse tocado (…) foi partida dos arsenalistas, gente sobre todas maliciosada chacota não se livraram. (397) Agostinho Lourenço – fundador da pvde em 1933; todas as semanas se encontrava com Salazar - cumprirá o que o presidente do Conselho terá exigido em relação aos responsáveis pelo infame atentado à compostura da pátria. (397)
O governo decidiu explicar aos moradores como se proteger em caso de bombardeamento, deixando no ar a ideia de que o inimigo poderia ser o castelhano agora rojo. Foi marcado um simulacro de um ataque aéreo-químico, tendo como alvo a estação do Rossio para o dia 27.05.1936. (398-399) De entre os salvadores, destaca-se o ator de teatro e cine António Silva (1886-1971), à frente dos bombeiros voluntários da Ajuda. Na estação do Rossio continua, miraculosamente incólume, a estátua de el-rei Sebastião. (400)

O pior foi os jornais terem dado no dia seguinte a notícia de mortos reais e feridos verdadeiros. Ricardo Reis decide ir ver com os seus olhos o cenário e os atores. Associação com a passarola do padre Bartolomeu Gusmão. Saramago cita-se a si próprio, chegando à passarola que o imortalizou… (402) Ricardo Reis fará a Lídia o relato do simulacro à portuguesa. Entretanto, o marinheiro Manuel Guedes fugiu, quando era levado para o tribunal… Ricardo Reis sorri: este país num desmazelo, os barcos que vão para a água antes de tempo, os presos que se somem, os carteiros que não entregam as cartas, os varredores, enfim dos varredores não há nada a dizer. Mas Lídia achava muito bem que Manuel Guedes tivesse fugido. (405)

Capítulo XVI
No Alto de Santa Catarina, as cigarras cantam nas palmeiras. Evocação do Adamastor nas praias à espera da Dóris alcoveta (casamenteira). Faz calor. Os velhos chegam cedo, partem para almoçar e voltam. Os barcos entram e saem. As palmeiras não são árvores! Os velhos não sabem e Ricardo Reis, apesar de cultivar a botânica nos seus versos.
Ricardo Reis passou a deitar-se tarde. Deixou de tomar o pequeno almoço. Durante a manhã, fixa-se no sonho de que não quer sonhar. Acorda à hora de almoço, fazendo uma higiene indagadora. Sai para almoçar. Volta à penumbra da sua casa, onde a pouco e pouco voltou o antigo cheiro de bafio. Lídia aparece agora com menos frequência. (411) À tardinha, Ricardo Reis volta a sair, e vai sentar-se num banco de jardim… A solidão e o destino. (412)

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada esperes que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

Os velhos leem o jornal, mas um deles é analfabeto. A notícia do Seiscentos Maluco, guarda-freio dos elétricos. Foi despedido. Tinha a mania de chocar contra as carroças… Ricardo, sentado no banco dos velhos, entabula conversa para que lhe expliquem a alcunha do Maluco… o número dele na Carris era o seiscentoso que aos velhos mais interessa são precisamente estas notícias do quotidiano dramático e pitoresco. (413) A festa do Jockey Club a favor das vítimas das inundações. (414)
Entretanto, greves em França – 500.000 grevistas. O que levará Léon Blum – líder político socialista, 1872 a 1950, ao poder. Em Espanha, a situação política agrava-se.
A celebração do 10 de Junho com vinte e um solenes e espaços tiros acorda Ricardo Reis. A Festa da Raça. Volta a adormecer. À tarde, ao regressar do almoço, reparou que havia ramos de flores nos degraus da estátua de Camões… o épico elevado à categoria de símbolo da Raça. (417) Ricardo Reis não saiu à noite e assim não viu Fernando Pessoa sentado na praça, a cogitar na ausência de qualquer poema em Mensagem dedicado a Camões. Este acusa-o de inveja, mas considera que tal não tem qualquer importância… Em casa, Ricardo Reis tenta escrever um poema a Marcenda. (418) A composição da ode na perspetiva de Saramago.

Saudoso já deste Verão que vejo.
Lágrimas para as flores dele emprego
        Na lembrança invertida
        De quando hei de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
        Em que hei de errar, sem flores,
        No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
        Antes que com a curva
        Diurna da ampla terra.

Um abalo sísmico. Lídia estava na cama. Ricardo Reis e Lídia não se levantaram. Estavam nus… Lídia teme a morte. As vizinhas gritam na escada.  De súbito, Lídia informa: Acho que estou grávidaRicardo Reis procura as palavras convenientes, mas o que se encontra dentro de si é um alheamento…  (419-423) Pensas em deixar vir a criançaLídia responde, Vou deixar vir o menino. Ricardo Reis começa a pensar que se meteu num grande sarilho, fico para aqui com um filho às costas, terei de o perfilhar…Lídia diz-lhe simplesmente, Se não quiser perfilhar o menino, não faz mal, fica sendo filho de pai incógnito, como eu.

Lídia passa a maior parte do dia em casa de Ricardo Reis. Está de férias do hotel. Terminadas as férias, regressa a rotina. (425) Numa destas noites de solidão, Fernando Pessoa bateu-lhe à porta que agora se orienta pela estátua de Camões…. Parece que naquele ano estava na moda retirar estátuas – do Pinheiro Chagas (escritor e político, 1842-1895), do José Luís Monteiro (arquiteto, autor da nave da estação ferroviária do Rossio, 1848-1942). Também retiraram o Discóbolo da Avenida, Chamaram-lhe efebo impúbere e efeminado, em nome da higiene espiritual. (427) Fernando Pessoa pediu que lhe contasse outros escândalos, então Ricardo Reis anunciou o maior deles: Vou ser pai. Reflexão sobre a ironia: a ironia é sempre máscara, talvez de uma certa forma de dor. (428) Fernando Pessoa a decisão de Ricardo Reis de não casar com Lídia nem pretender perfilhar o menino, apesar da alusão à safadice do Álvaro de Campos – pedia emprestado e não pagava. Confissão de Ricardo Reis: a minha vida passa-se entre a casa, o restaurante e um banco de jardim, é como se não tivesse nada que fazer que esperar a morte. (430) Referência à visita de estudo de 25 estudantes das Juventudes Hitlerianas de Hamburgo… (431) Nós não somos nada… E também à criação da Mocidade Portuguesa que lá para outubro iniciará a sério os seus trabalhos… O filho poderá vir a usar no cinto o S duplo, SS, servir Salazar… Alusão aos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936… No entanto, Lídia diria filho meu não entra em semelhantes comédias. (432)

Capítulo XVII
O Victor e os seus ajudantes cercam um andar, assaltam um apartamento onde vários homens conspiram. 4 foram apanhados, 1 fugiu pela janela – o figurão importante. Então, o realizador diz, Corta.  Trata-se de António Lopes Ribeiro (cineasta afeto ao Estado Novo – ver A Revolução de Maio (1937), 1908-1995), que considera que a filmagem correu bem.
Vivem-se festividades de todo o tipo – populares e mais cultas. Tomás Alcaide – tenor, 1901-1967- atua no Teatro de S. Luís… O general José Sanjurjo (um dos principais conspiradores que levou à guerra civil espanhola, continua na villa Santa Leocádia, no Monte Estoril. Faleceu a 20 de julho de 1936 num desastre de aviação nesta localidade. (439)
Ricardo Reis lê os jornais e acaba por impor a si mesmo o dever de preocupar-se um pouco. (440) os velhos começaram a comprar o jornal, mesmo o analfabeto. Ricardo Reis, porque dorme até tarde, deve ter sido o último habitante de Lisboa a saber que se dera um golpe militar em Espanha, 17 e 18 de julho de 1936. Ricardo Reis, monárquico, ficou sem perceber quem os verdadeiros autores da revolta – receia-se em Madrid um movimento revolucionário fascista. O levantamento começou no Marrocos espanhol (…) e o que o seu principal chefe é o general Franco. Caiu o governo de Casares Quiroga… Referência à morte de José Sanjurjo. O seu funeral é realizado no Estoril. Em guarda de honra, membros da Falange Espanhola (partido fundado em 1934). A regeneração da Europa caminha a passos de gigante, primeiro foi a Itália, depois Portugal, a seguir a Alemanha, agora a Espanha… (444)
Lídia conta a Ricardo Reis que os espanhóis do Bragança celebraram o acontecimento com uma grande festa, nem a trágica morte do general os desanimou… (445) Comentário de Ricardo Reis sobre os acontecimentos vividos em Espanha:

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis defende a intervenção do exército em Espanha. O irmão de Lídia diz que os militares não ganharão porque vão ter o povo todo contra eles. Lídia define-se: O povo é isto que eu sou, uma criada de servir que tem um irmão revolucionário e se deita com um senhor doutor contrário às revoluções… (446)

Em Espanha, foi constituída uma junta governativa em Burgos. Em Badajoz, a população armou-se para resistir ao assalto iminente dos falangistas. Em Portugal, aumentam as inscrições de voluntários para a Mocidade Portuguesa. Miguel de Unamuno(1864-1936) – passou os últimos dias da sua vida em prisão domiciliar, depois te ter sido demitido por Franco em 22 de outubro de 1936; ver incidente de 12 de outubro de 1936 - , reitor da Universidade de Salamanca e autor celebrado, deu a sua adesão à Junta Governativa de Burgos, em nome da salvação da civilização ocidental. (449) Em termos de fascismo, Saramago coloca lado a lado Unamuno, Tomé Vieira e Lopes Ribeiro. E todos esqueceram a vergonhosa atitude de Unamuno!

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

                (Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

                Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

                E sem desassossegos grandes.

         (excerto)

Parece que toda a Galiza se bandeou com o general Franco, não admira, sempre é um filho da terra, o sentimento pode muito. (452) O sim e o não de Miguel Unamuno perturbam Ricardo Reis… (453) Milan d’Astray (1879-1954) – itinerário de Buenos Aires até Salamanca, onde gritará Viva la muerte, e depois escuridão.

Fernando Pessoa não aparece. O tempo arrasta-se como uma vaga lenta e viscosaOs velhos só à noitinha aparecem no Alto de Santa Catarina, não aguentam a torreira do sol… Falta a água em Lisboa. Num dos dias, Ricardo Reis saiu cedo. Dirigiu-se ao cemitério dos Prazeres, ao número 4371. Fernando Pessoa, surge a seu lado, quando contempla o rio. Falam sobra a situação espanhola – a resposta de Unamuno a Milan-Astray… Ricardo Reis fica sozinho… a paisagem não parece real. (457)

Capítulo XVIII

Ricardo Reis compra uma telefonia da marca Pilot. Quer manter-se a par das notícias de forma discreta e reservada. (459) Não é capaz de decidir se fica feliz com as vitórias da direita ou se com a derrota dos republicanos espanhóis. Satisfaz-se com o mal-estar que sente.Lídia fez uma grande festa quando viu a telefonia, pois andava preocupada com o desleixo de Ricardo Reis. Os espanhóis começam a abandonar o Bragança. O Rádio Clube Português passou a ter uma locutora espanhola, devido à forte presença de exilados em Lisboa e arredores… (461) Lídia chora o bombardeamento de Badajoz, influenciada pelo irmão Daniel, marinheiro no Afonso de Albuquerque – ver a Revolta dos Marinheiros em 8 de setembro de 1936, no Tejo. Ricardo Reis defende os insurretos devido à ação dos comunistas que cortaram uma orelha a cento e dez proprietários… abusaram das suas senhoras… - ver O CRIME, 6 números, de 18 de abril a 5 de julho de 1936, da autoria de Tomás Vieira que, em Julho, passa a correspondente de O Século. (462) Lídia considera que, de acordo com Daniel, não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem. Motins na Madeira – a revolta do leite no verão de 1936 – Jornal Avante. O narrador ironiza sobre a verdade da futura TV, com base na análise do rosto. No Rádio Clube Português, a emissão ouve-se cara ao sol com la camisa nueva, o hino da Falange… (464) Um telegrama dos antigos legionários portugueses com esperança num porvir radioso para as duas pátrias ibéricasErico Braga (ator, autor de revista, 1889-1962) apresenta a Noite de Prata no Casino Estoril. Desesperado por se ver tão sozinho, Ricardo Reis lembra-se de Lídia, que ela está grávida e que o menino poderá participar na guerra de 1961 (colonial) e vê-o, à luz do poema de Fernando Pessoa, trespassado, moreno e pálido… apesar de não pretender perfilhá-lo. (466)

Badajoz rendeu-se. O general Mola manda fuzilar 2000 milicianos prisioneiros na praça de toiros. Ricardo Reis só soube dos acontecimentos o que lhe disseram os jornais portugueses. O resto soube-o por Lídia, que o soubera pelo irmão… Lídia interroga-se sobre a sua relação com Ricardo Reis, porque eles não são iguais… Reis regressa ao início do the god of the labyrinth que interrompe, pois começa a ver no tabuleiro, plaino abandonado (…) o jovem que jovem fora (…) a arena coberta de corpos que pareciam crucificados …(467)

Chegado de Tetuão (cidade do noroeste de Marrocos), o general Milan d’Astray anuncia guerra sem quartel, de extermínio, contra o micróbio marxista. À semelhança do que acontece no país vizinho, os sindicatos nacionais promovem um comício contra o comunismo, com veemente profissão de fé doutrinária e de confiança nos destinos da nação. (469) Os falangista espanhóis foram ao Rádio Clube Português louvar a integração de Portugal na cruzada resgatadora

Em toda a sua vida, Ricardo Reis nunca assistira a um comício político. Perante a situação dos últimos tempos, Ricardo Reis curioso decide ir ao Campo Pequeno assistir ao comício promovido pelos sindicatos. Ao entrar, achou-se confundido com os bancários, todos de fita azul no braço com a cruz de Cristo, e as iniciais SNB… (470) Saúdam-se à romana, dão vivas ao Estado Novo. Esfuziam os gritos patrióticos, Portugal Portugal Portugal, Salazar Salazar Salazar, este não veio Assistem representantes do fascio italiano, com as suas camisas negras…; representantes nazis, de camisa castanha e braçadeira com a cruz suástica; entram os falangistas espanhóis com a já conhecida camisa azul. Grita-se morte ao bolchevismo em todas as línguas. (472) Oradores: o operário Gilberto Arroteia; Luís Pinto Coelho (Mocidade Portuguesa); Fernando Homem de Cristo; Abel Mesquita; António Castro Fernandes; Ricardo Durão, major; o capitão Jorge Botelho Moniz, o primeiro na importância política…(473) Ricardo Reis, à saída da festa de que não fazia parte, decidiu atravessar a cidade inteira a pé – quase uma légua. Já em casa, não consegue pensar no que vira e ouvira e evoca Miguel Unamuno: Eis-me aqui, homens de Portugal, povo de suicidas, gente que não grita Viva la muerte, mas vive com ela… Em conclusão, Ricardo Reis declara a comícios não torno… da roupa desprendia-se um cheiro a cebola

Acontecimentos históricos: a finança americana prontifica-se a conceder os fundos necessários à revolução nacionalista espanhola; a igreja católica e o Reich anunciam combate ombro contra o inimigo comum; Mussolini propõe-se mobilizar oito milhões de homens; em Portugal, aumenta a adesão à Mocidade Portuguesa e à Legião Portuguesa; o presidente do conselho anda a visitar estabelecimentos militares. (476) Já quem lhe chame Esteves em vez de Salazar. (477) O Afonso de Albuquerque foi a Alicante buscar refugiados.

Lídia não tem aparecido. Ricardo Reis sente-se cada vez mais só. Desmazelado, dorme quase todo o dia. Escreve uma longa carta a Marcenda – punha de pé toda uma arqueologia da lembrança. Rasgou-a. E, alta noite, foi lançar os papelinhos por cima das grades do jardim.  Dois dias depois copiou o seu poema:

Saudoso já deste Verão que vejo.

Lágrimas para as flores dele emprego

        Na lembrança invertida

        De quando hei de perdê-las.

Transpostos os portais irreparáveis

De cada ano, me antecipo a sombra

        Em que hei de errar, sem flores,

        No abismo rumoroso.

E colho a rosa porque a sorte manda.

Marcenda, guardo-a; murche-se comigo

        Antes que com a curva

        Diurna da ampla terra.

Enviou o poema a Marcenda Sampaio, para a posta-restante. Se o receber, Marcenda não saberá a quem atribuir a autoria do poema, pois Ricardo Reis nunca lhe disse que era poeta.

Capítulo XIX

Apesar da promessa de não voltar, Lídia bate à porta. Lídia tem os olhos vermelhos e inchados. Veio por causa do irmão. É que os barcos vão revoltar-se, sair para o mar. Ricardo Reis não tem em si qualquer sentimento – talvez que isto seja o destino, sabermos o que vai acontecer, sabermos que não há nada que o possa evitar, e ficarmos quietos, olhando, como puros observadores o espetáculo do mundo, ao tempo que imaginamos que este será também o nosso último olhar, porque com o mesmo mundo acabaremos… (480) Lídia: a ideia é irem para Angra do Heroísmo libertar os presos políticos, tomar posse da ilha , e esperar que haja levantamentos aqui… Os barcos envolvidos: Afonso de Albuquerque, o Dão e o Bartolomeu Dias. Lídia veio só para desabafar.

No dia seguinte, ao sair para o almoço, Ricardo Reis parou no jardim a olhar o quadro dos navios de guerra, em frente ao Terreiro do Paço. Comove-se – turvam-se-lhe os olhos de lágrimas, também foi assim que começou o grande choro do Adamastor. (483) Entretanto, surge o dirigível Hindemburgo, que vem largar o correio à Portela de Sacavém.

À tarde, Ricardo Reis desceu ao Terreiro do Paço para ver os barcos, e lembrou-se que em todos estes meses nunca fora ao Martinho da Arcada. (484) Não chega a entrar. Está Ricardo Reis a olhar os barcos, quando de repente o Victor lhe pergunta Então o senhor doutor veio ver os barcosos barcos e o rio, respondeu, de forma agitada. (485) Regressa, subindo a rua do Alecrim, observa o anúncio clínica de enfermidades de los ojos y quirúrgicas, A. Mascaró, 1870Seguiu o caminho das estátuas. O Victor não viera atrás de si.

Não saiu para jantar, inquieto, já passava das onze horas quando desceu à jardim para olhar os barcos, deles viu apenas as luzes de posição. De manhã, prepara-se para tomar banho quando ouviu o primeiro tiro de peça. As vidraças estremecem… Ricardo Reis apressa-se para o jardim, onde já havia muitas pessoas… O forte de Almada bombardeava os navios, o Afonso de Albuquerque do marinheiro Daniel foi atingido… agora é o forte do Alto do Duque que bombardeia… é impossível escapar. Passaram 100 minutos. Volta para casa, atira-se para a cama para poder chorar à vontade, lágrimas absurdas que esta revolta não é sua, sábio é o que contenta com o espetáculo do mundo. (489) Lava-se, barbeia-se… eram onze e meia quando saiu de casa, vai ao Hotel Bragança… Procura a criada, o Pimenta diz que ela saiu e ainda não voltou… queria saber o que se passou com o irmão que estava na marinha de guerra…

Na hora da distribuição dos vespertinos, Ricardo Reis saiu para comprar o jornal – morreram doze marinheiros, e vinham os nomes e as idades, Daniel Martins de vinte e três anos… (492) Não há notícia de Lídia. Fernando Pessoa bate à porta. Ficam em silêncio. Fernando Pessoa: vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos (…) o meu tempo chegou ao fim… Ricardo Reis vestiu o casaco, meteu o The God of the labyrinth de baixo do braço. Então, vamos disse… e foram.

 


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