Capítulo I
Aqui o mar acaba e a terra principia.
Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
Os
Lusíadas, canto III, estância 20
O Highland Brigade atraca no cais de Alcântara – faz a carreira Londres Buenos Aires. Esta carreira teve início 1 nov. 1928. 1ª classe – 150; intermédia -70; 3ª classe – 500 passageiros.
Comparação com o Adamastor, est. 40, canto V: Que pareceu sair do fundo do mar – como se o Highland Brigade viesse a escorrer do fundo do mar, navio duas vezes fantasma… (9)
Chove sobre a cidade de Lisboa.
São poucos os passageiros que desembarcam. É domingo – cidade silenciosa
que os assusta… Alusão aos passageiros da terceira classe de Gente da
Terceira Classe, de José Rodrigues Miguéis.
Caraterização do povo: e
suba com compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o
que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuaremos nós
a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio. (11) A alfândega
é uma antecâmara, um limbo de passagem, que será lá fora.
Início do retrato de Ricardo Reis: Um homem grisalho, seco de carnes com um leve sotaque brasileiro que, ao chegar, repara nuns barcos de guerra no estuário por causa do mau tempo. Dá 10 xelins ao bagageiro – são contratorpedeiros acrescenta este… Não sabe para que hotel quer ir – um que fique perto do rio, cá para baixo… o Bragança na rua do Alecrim. Esclarece que há dezasseis anos que não vinha a Portugal. No entanto, a avenida por onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela… (14)
Por causa da linha do elétrico, Ricardo Reis sobe a pé a rua do Alecrim até à porta do Hotel, temendo que o taxista desaparecesse com todos os seus bens. Entra, mas tem de subir ao primeiro andar, pois é aí que fica a receção. Só no 2º andar, há quartos. Escolhe o 201, donde poderá ver o rio – associação ao 202 do Jacinto queirosiano. (17) O táxi ficara em frente do café Royal. Com a ajuda do homem dos carregos, depois de pagar o frete, Ricardo Reis volta ao Bragança. O Pimenta transporta a mala pesada ao segundo andar. Ricardo Reis preenche o livre de entradas de hóspedes, referindo a idade de 48 anos, natural do Porto, estado civil solteiro, médico de profissão, última residência Rio de Janeiro. O gerente, isto é, Salvador coloca-se à disposição do hóspede. Chegado ao quarto, deu gorjeta ao carregador. Senta-se e reflete sobre os dias futuros – por agora o hotel bastará, lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa. (20) Agora ouve o murmúrio da cidade, seiscentas mil pessoas suspirando… abre uma janela, depois outra… em menos de meia hora despejou as malas, os livros – alguma latinação clássica de que já não fazia leitura regular, uns manuseados poetas ingleses, três ou quatro autores brasileiros, de portugueses não chegava a uma dezena, e no meio deles encontrava agora um que pertencia à biblioteca do Highland Brigade, esquecera-se de o entregar no desembarque. (…) o seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês…, que, afinal, não passa de um romance policial, e não um labirinto como um deus… (21-22)
Entre os papéis a guardar,
destaca-se a folha mais antiga datada de doze de junho de mil novecentos e
catorze:
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos.
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.
Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza...
A beira-rio,
A beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.
Girassóis sempre
Fitando o Sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.
Às oito horas em ponto, Ricardo Reis apresentou-se na sala de jantar. Descrição. (23) Esta sala dá para a Rua Nova do Carvalho. Já no final da refeição, entraram um homem de meia-idade e uma rapariga de 20 anos – pai e filha. A rapariga magra acabou a sopa, pousa a colher, a sua mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo. (25) Ricardo Reis olha fascinado a mão paralisada e cega que não sabe aonde há de ir se a não levarem…
No sofá do quarto, lê os jornais: Óscar Carmona ( presidente da república, 1926-1951) inaugurou a exposição de homenagem a Mouzinho de Albuquerque (1855-1902) na Agência Geral das Colónias (criada em 1924); novas cheias no Ribatejo – o dique dos Vinte, destruído em 1895… ironia do autor que alega em nome RR: Há grandes receios na Golegã, não me lembra onde fica, ah Ribatejo, se as cheias destruírem o dique dos Vinte… (28); notícias de fait-divers, sobre o Brasil e as operações italianas na Etiópia… lista dos espetáculos no Coliseu (A última Maravilha com Vanise Meireles), no Politeama (As cruzadas, filme histórico); lista de portugueses falecidos no Brasil na primeira quinzena de dezembro; ironia do autor sobre o tratamento dado, por cá, aos velhos (os macróbios), aos novos, aos doentes, às grávidas. Alusão à Divina Comédia de Dante, canto XXXIII do Inferno, na História dos Guelfos e Gibelinos…
Capítulo II
Apesar da invernia se manter,
no dia seguinte, Ricardo Reis foi ao Banco Comercial cambiar algum do seu
dinheiro inglês pelos escudos da pátria…Sai do banco com uma fortuna no bolso –
5 contos. Não se arrisca a atravessar o Terreiro do Paço, fica de longe a olhar
o rio, recordando o tempo em que ali se sentara…Evoca, entretanto, o poema Miséria
de João de Deus (34):
Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo daquela arcada
Passava-se a noite bem!"
A cega, que todo o dia
Tinha levado a andar,
A tais palavras do guia
Sentiu-se reanimar.
Mas saltam dois cães de gado,
Que eram como dois leões:
Tinha-os à porta o morgado
Para o guardar dos ladrões.
Tornam os pobres à estrada,
E aonde haviam de ir dar?
Ao palácio da tapada
Onde el-rei ia caçar.
À ceguinha meia morta
Torna o filho: "Oh minha mãe,
Ali no vão de uma porta
Passava-se a noite bem!"
- Se os cães deixarem... (diz ela,
A triste num riso amargo),
Com efeito a sentinela:
- "Quem vem lá?... Passe de largo!"
Então ceguinha e filhinho,
Vendo a sua esperança vã,
Deitaram-se no caminho
Até romper a manhã!...
No elétrico, Ricardo Reis relê a funérea despedida, não pode convencer-se que seja Fernando Pessoa o destinatário dela (…) por causa das anfibologias gramaticais e léxicas que ele abominaria. (39) Ricardo Reis chega ao cemitério no momento em decorre um funeral. Informa-se no registo dos defuntos do lugar onde Fernando António Nogueira Pessoa estava enterrado (2.12.1935). O funcionário indica-lhe o jazigo 4371. Ricardo Reis faz o percurso, atento à arte funerária, passando adiante do jazigo que procurava. (41) São títulos de propriedade e ocupação, jazigo de D. Dionísia de Seabra Pessoa. (42) Foi aqui que o corpo foi depositado. Entretanto, ouve: Estou aqui, e em voz alta Ricardo Reis repete, não sabendo que ouviu, Está aqui, é então que recomeça a chover. (…) Não tem mais que fazer neste sítio, o que fez nada é, dentro do jazigo está uma velha tresloucada que não pode ser deixada à solta, está também, por ela guardado, o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo…(42-43) O pensamento receoso sobre a relação avó-neto – pobre Pessoa! Nem na morte!
Ricardo sai do cemitério e apanha um táxi para o Rossio com receio de perder a hora de almoço. A viagem do Rio a Lisboa terá durado 14 dias – de 15 a 29 de dezembro de 1935. Comove-se à passagem do funeral de um anjinho, que não terá tido tempo para revelar os seus dons. Decide parar no restaurante Irmãos Unido, onde almoça sem olhar a dietas…… vê passarem lá fora os carros elétricos, ouve-os ranger nas curvas, o tilintar das campainhas soando liquidamente na atmosfera coada de chuva, como os sinos duma catedral submersa ou as cordas de um cravo ecoando infinitamente entre as paredes de um poço. (o melhor estilo saramaguiano, 45) Saiu para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira. Entra na Rua dos Douradores, observa as sacadas e as faces pálidas dos caixeiros que vêm às portas das lojas (…) o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo valido a pena… (46)
Ao voltar ao hotel, Ricardo
Reis apercebe-se que este é ‘a sua casa’, e não aquelas que habitara até esta
jornada – Porto, Lisboa, Rio de Janeiro. O vento sopra, encanado, chove menos…
Logo que entra no hotel é saudado pelo Pimenta e pelo gerente, Salvador. No
quarto, tudo estava perfeitamente arrumado. E agora Ricardo? – alusão a Carlos Drummond de Andrade
"E agora José» / Ricardo E agora José (49)
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
(…)
A chuva voltou a cair e
entra pelas janelas esquecidas. Também Ofélia se deixa ir na corrente, cantando,
mas essa terá de morrer…Ofélia, Shakespeare, IV ato (49) O elogio das criadas / obreiras
também elas (50) / Cesário
Verde - O Sentimento dum Ocidental (1ª parte) / as
obreiras /
Ricardo Reis responde à
criada em três versos de sete sílabas (redondilha maior) – o autor de
odes ditas sáficas ou alcaicas (acentuação na 4ª, 8ª e 10 sílabas),
transformado em poeta popular? (50)
A criada, serpeando
o corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às
madeiras enceradas… Lídia. Ricardo Reis repetia o nome para o não
esquecer: há pessoas assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em
verdade, são papagaios umas das outras, nem há outro modo de aprendizagem…
(51) Depois, Ricardo Reis vai à gaveta buscar as suas odes sáficas e lê alguns
versos:
Ténue, como se de Éolo a esquecessem,
A brisa da manhã titila o campo,
E há começo do sol.
Não desejemos, Lídia, nesta hora
Mais sol do que ela, nem mais alta brisa
Que a que é pequena e existe.
+++++
Quando, Lídia, vier nosso Outono
Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o Estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa -
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.
+++++++
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
+++++
Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é que um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
Têm prazer ou dores. (52,53)
Senta-se no sofá… e sonha que vai passeando na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, à ligeira por ser muito calor, começa a ouvir tiros ao longe… nem sequer ouve a voz que lhe está batendo à porta. Em cima da mesa está uma folha Aos deuses peço só que me concedam… (repetição) Identificação do hotel com o palácio da Bela Adormecida – evocação de uma cantilena infantil:
Emissário: |
Onde mora a bela condessa, |
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Condessa: |
O que quer com a bela condessa |
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— Senhor rei mandou-me aqui, |
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— Eu não dou as minhas filhas, |
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— Tão contente que eu me vinha |
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— Volte atrás, bom cavalheiro, |
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— Assentai aqui menina, |
Vestuário e calçado. Ricardo Reis prepara-se para o jantar – é descabido o escrúpulo, parece que não reparou ainda como vestem os vulgares habitantes, paletós como sacos, calças em que as joelheiras avultam como papos, gravatas de nó permanente que se enfiam e desenfiam pela cabeça, camisas mal cortadas, rugas, pregas, são os efeitos da idade. E os sapatos fazem-nos largos de tromba para que livremente possa exercitar-se o jogo dos dedos… (54) Diferenciação: Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas um hóspede de hotel que, ao sair do quarto, encontra uma folha de papel com verso e meio escritos, que, agora é necessário acabar…(55) Desce para jantar, mas antes vai ler os jornais:
A dissolução das Cortes, em Espanha, com demissão do governo
de Manuel Portela Valladares (14.12.1935-19.02.1936) Crise ítalo-abissínia -
invasão da Etiópia 3.10.1935. Nova referência à morte de Fernando Pessoa –
todos estes acontecimentos poderiam ter sido evitados se os jornais em vez de relatar
os acontecimentos os soubessem prever a tempo e horas (ironia). (56)
O jantar às 8 horas. Ricardo
Reis (meticulosidade) dobra
o jornal, volta ao quarto lavar as mãos, corrigir o aspeto, volta logo,
senta-se à mesa onde a primeira vez comeu, e espera. A motivação de tamanha
pontualidade: Ricardo Reis é somente compositor de odes, não um excêntrico,
ainda menos um tolo, menos ainda desta aldeia. (57) Ninguém mais na sala.
Decide que a partir do seguinte, virá jantar às 8:30. Descera mais cedo para
ver a rapariga, reconhece. Só que pai e filha já teriam deixado o hotel.
Salvador esclarece-o sobre a identidade dos hóspedes: Vêm aqui há três anos, o
Dr. Sampaio e Marcenda. Vêm, todos os meses, três dias. Vêm ao médico, embora
sem que haja melhoras… É Marcenda
o nome, É aim, senhor doutor, Estranha palavra, nunca tinha ouvido, Nem eu (ironia) … Volta ao quarto, e conclui o poema:
Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir. A dita é um jugo
E
o ser feliz oprime
Porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
Têm prazer ou dores.
Capítulo III
Pequeno almoço servido no
quarto por Lídia: Se
esta Lídia não fosse criada, e competente, poderia ser, pela amostra, não menos
excelente funâmbula, malabarista ou prestidigitadora, génio adequado tem ela
para a profissão, o que é incongruente, sendo criada, é chamar-se Lídia, e não
Maria. O elogio da mulher do povo. Lídia informa Ricardo Reis das cheias no
Cais do Sodré. 31.12.1935 (62) Enumeração
de ‘salvamentos’, cujo padroeiro é S. Cristóvão (Reprobus) - significa aquele que carrega
Cristo.
O ponto de vista – mudança: da rua para a janela do
segundo andar ou talvez não, o ‘transeunte’, que observava os efeitos da cheia,
levanta a cabeça. Reflexão do narrador sobre a subversão das relações
sociais / Ricardo Reis e Lídia à janela… ou retorno à idade de ouro / o
tempo de harmonia no início da humanidade. (63)
Ricardo Reis toma o pequeno
almoço, enquanto folheia, sem ler, The God of the labyrinth, obra
já citada "Deploro ter emprestado a uma senhora,
irreversivelmente, o primeiro que publicou. Já declarei que se trata de um
romance policial: The god of the labyrinth; posso agradecer que o editor
tenha proposto a sua venda nos últimos dias de novembro de 1933." (Jorge
Luis Borges, 1941)
As promessas da passagem de
ano: logo nos primeiros dias de janeiro teremos esquecido metade do que
havíamos prometido. (64) Cotejo do Deus bíblico com os deuses do paganismo
de Ricardo Reis – a verdade última dos deuses é nada saberem. (64-65)
Adiemos as promessas!
O aforismo popular (sentença, máxima,
anexim, adágio, rifão, provérbio): não quer que lhe caiam os parentes na lama /
na ocasião se faz o ladrão / adeus, mundo, cada vez a pior / (63 a 65) / o sol
é de pouca dura (69)
Ricardo Reis vai dar um
passeio antes do almoço. Sobe a Rua do Alecrim. Observa uma pedra retangular, embutida e
cravada num murete que dá para a Rua Nova do Carvalho – alusão à Clínica de
Enfermidades de los Ojos y Quirúrgicas, fundadada por A. Mascaró em 1870.
Ricardo Reis para diante da estátua de Eça de Queirós. Considerações sobre a língua: provavelmente a língua é que vai
escolhendo os escritores de que precisa, serve-se deles para que exprimam um
parte pequena do que é, quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero
ver como iremos nós viver. Saramago vira do avesso a epígrafe de Eça de
Queirós "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia".
É instrutivo o passeio: ainda agora contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões (67). Saramago indica
os versos que poderiam ser colocados no pedestal do Poeta:
Aqui, com grave dor, com triste acento,
deu o triste pastor fim a seu canto;
co rosto baixo, e alto o pensamento,
seus olhos começaram novo pranto;
mil vezes fez parar no ar o vento
e apiadou no Céu o coro santo;
as circunstantes selvas se abaixaram
de dó das tristes mágoas que escutaram.
Camões (excerto de uma écloga)
Entretanto, Ricardo Reis
continua a sua caminhada matinal: Rua da Misericórdia (do Mundo, no passado); antigo
Largo de S. Roque (São Roque nasceu no ano de 1295,
provavelmente em Montpellier, na França; morreu a 16 de agosto de 1327) e
a igreja do mesmo santo, aquele aquém um cão foi lamber as feridas da peste, bubónica
seria (67). A cadela Ugolina, por
subnutrição, devora os próprios filhos representa a pátria que destrói o melhor
da sua gente.
http://umcadernoparasaramago.blogspot.com/2010/01/o-ano-da-morte-de-ricardo-reis-romance.html
No seu interior, encontra-se a
capela de S. João Batista, a tal que foi encomendada a Itália por D. João V (…)
rei, pedreiro e arquiteto por excelência (ironia). Ricardo Reis observa dois quiosques e a marmórea memória mandada
implantar pela colónia italiana por ocasião do himeneu do rei D. Luís, tradutor
de Shakespeare e D. Maria Pia de Saboia, filha de Vittorio Emmanuele rei de
Italia (Verdi). Este monumento parece uma palmatória pronta a
assustar as meninas dos asilos. Descrição do Bairro Alto: este bairro é castiço, alto de
nome e situação, baixo de costumes… (68). Volta a chover, Ricardo Reis
abriga-se num portal, ao princípio da Travessa da Água da Flor.
A vozes das mulheres e dos
soldados – Está a choveeer; Sentinela aleeeerta - discurso
indireto livre (69) Atravessa o jardim (de S. Pedro de Alcântara), observa
as muralhas, o castelo, o casario… Em baixo, estão uns bustos de pátrios
varões.
A desconstrução da cultura: «é
como ter posto o Zé-povinho do Bordalo a fazer um toma ao Apolo de Belvedere» -
é uma estátua de mármore representando o deus grego Apolo, que faz parte do
acervo do Museu Pio-Clementino / «todo o miradouro é belvedere»: terraço alto.
Narrador expõe a teoria do associacionismo -
princípio básico da atividade mental - explicitação feita pelo narrador.
Definição do homem como ‘lugar industrial e comercial’. Continua viagem e chega
ao Convento de S. Pedro de Alcântara, hoje recolhimento de meninas pedagogicamente
palmatoadas, dando com os olhos no painel de azulejos da entrada, onde
se representa S. Francisco de Assis, il poverello… (70)
De associação em associação: a
porta do convento e a porta de Wittemberg (71) Ricardo Reis procura relembrar
versos antigos ao seguir pela Rua D. Pedro V:
Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.
No Panteão faltavas. Pois que vieste
No Panteão o teu lugar ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.
Teu vulto triste e comovido sobre
A estéril dor da humanidade antiga
Sim, nova pulcritude
Trouxe ao antigo Panteão incerto
Mas que os teus crentes te não ergam sobre
Outros, antigos deuses que dataram
Por filhos de Saturno
De mais perto da origem igual das coisas,
E melhores memórias recolheram
Do primitivo caos e da Noite
Onde os deuses não são
Mais que as estrelas súbditas do Fado.
Tu não és mais que um deus a mais no eterno
Não a ti, mas aos teus, odeio, Cristo.
Panteão que preside
À nossa vida incerta.
Nem maior nem menor que os novos deuses,
Tua sombria forma dolorida
Trouxe algo que faltava
Ao número dos divos.
Por isso reina a par de outros no Olimpo,
Ou pela triste terra se quiseres
Vai enxugar o pranto
Dos humanos que sofrem.
Não venham, porém, estultos teus cultores
Em teu nome vedar o eterno culto
Das presenças maiores
Ou parceiras da tua.
A esses, sim, do âmago eu odeio
Do crente peito, e a esses eu não sigo,
Supersticiosos leigos
Na ciência dos deuses.
Ah, aumentai, não combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos deuses dando
Cada vez maior força
Plo número maior.
Basta os males que o Fado as Parcas fez
Por seu intuito natural fazerem.
Nós homens nos façamos
Unidos pelos deuses.
Procurar cobrir com uma unidade estas variedades (despoletadas pela associação de ideias) é talvez tão absurdo como tentar esvaziar o mar com um balde. Referência a Santo Agostinho. Entretanto, Ricardo Reis chega à Praça do Rio de Janeiro que foi do Príncipe Real. Apreciação da flora local: acer, ulmo, cedro.
De regresso, Ricardo Reis
desce a Rua do Século, onde
o pessoal nobre aceitava viver paredes meias com o vulgo. O narrador aventa
a hipótese de, no futuro, existirem bairros exclusivos – o que o leitor sabe
que já acontecia no tempo da escrita.
De repente, diante de Ricardo Reis aparece uma multidão de gente pobre que enche a rua em toda a largura. Graças à qualidade de senhor bem-posto, Ricardo Reis avança facilmente por entre a mole humana, é como o cisne de Lohengrin (personagem do ciclo arturiano, filho de Percival) https://pt.wikipedia.org/wiki/Lohengrin
A falta de higiene e a pobreza
Ricardo Reis está, agora, defronte
da entrada do grande prédio do jornal O Século, o de maior expansão e circulação. Há
um odor de cebola, alho e suor recozido, de roupas raro mudadas, de corpos sem
banho ou só no dia de ir ao médico, qualquer pituitária medianamente delicada
se teria ofendido na provação deste trânsito. É o bodo do Século (75,
76). São mais de mil os
contemplados. (…) Tudo gente pobre, dos pátios e barracas. (…) A
cada pobre calha dez escudos e os garotos levam agasalhos, e brinquedos, e
livros de leitura. (…) Há quem esteja o ano inteiro à espera do bodo.
Ricardo Reis subiu a rampa da Calçada
dos Caetanos / Rua do Norte / Camões
A ironia saramaguiana: cada pobre é
fiscal doutro pobre; queira Deus que nunca se extinga a caridade para
que não venha a acabar-se a pobreza… esta gente de xale e lenço, de
surrobecos remendados, de cotins com fundilhos doutro pano, de alpargatas,
tantos descalços, e sendo as cores tão diversas, todas juntas fazem uma nódoa
parda, negra, de lodo malcheiroso, como a vasa do Cais de Sodré (76-77)
Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela
Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um
labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado
e espadachim, espécie d'Artagnan premiado com uma coroa de louros…»
Referência ao aproveitamento político e até religioso da obra do Poeta … O
narrador inicia, a propósito, uma viagem Literária: Os Lusíadas / Dante, Canto I, Nel mezzo
del camin di nostra vita / Bernardim Ribeiro, Menina e Moça /
Cervantes, D. Quixote, En un lugar de La Mancha… / Vergílio, Arma
virumque cano/ Ricardo Reis, Odes:
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores, mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
Era quase noite quando a Rua do Século ficou livre de pobres. Entretanto, depois de almoçar, Ricardo Reis ainda considerou ir ver o filme Gosto de Todas as Mulheres, com Jean Kiepura, no Tivoli, 1935 / Ich liebe alle Frauen (78) Acabou por voltar ao hotel, de táxi.
Jantar, perto das 9 horas. O hotel
está vazio. Ricardo Reis relembra a mão
de Marcenda…. Sobe ao quarto; de súbito decide ir até ao Rossio ver o relógio da estação central (passagem para
1936). Vai ver o réveillon, ou
révelion…
Ricardo Reis desceu a Rua do Chiado e a Rua do Carmo. Para os lados do Teatro Nacional, o Rossio está cheio…está toda a gente de nariz no ar, com os olhos fitos no mostrador amarelo do relógio. Da Rua do Primeiro de Dezembro, um grupo de rapazes avança batendo com tampas de panela… (84). Faltam 4 minutos para a meia-noite. Reflexão sobre os homens, … ai a volubilidade dos homens ... Começa a ouvir-se a voz profunda dos barcos ancorados… é meia-noite, a alegria de uma libertação, por um instante breve o tempo largou os homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo…Na estação do Rossio, «lá está D. Sebastião no seu nicho da frontaria, rapazito mascarado para um carnaval que há de vir (…) é patente que o Desejado virá de comboio, sujeito a atrasos… (85). O sebastianismo parodiado. Começa-se a atirar lixo para a rua. «O lixo - o que para uns deixou de prestar é vida para outros. Na madrugada do Ano Novo, Ricardo Reis, o velhinho, regressa ao Hotel. Só faltou que tivessem atirado também os velhos pelas janelas com o manequim - reflexão sobre a idade da velhice
A passagem de ano de Ricardo Reis durou pouco mais de meia hora. Voltou ao 201, «por baixo da sua porta passa uma réstia luminosa… sentado no sofá estava um homem. Fernando Pessoa, estava em corpo bem feito. Este tem só o fato preto, jaquetão, colete e calça, camisa branca, preta também a gravata, e o sapato, e a meia, como se apresentaria quem estivesse de luto ou tivesse por ofício enterrar os outros. Diálogo FP / RR Fernando Pessoa ainda tem uns oito meses para circular à vontade – de janeiro a agosto… As causas do regresso de Ricardo Reis a Portugal: o telegrama de Álvaro de Campos – senti que era uma espécie de dever; a intentona comunista no mês de novembro no Brasil (88 a 90) FP: Você, Reis, tem sina de andar a fugir das revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra…
A contradição fundamental da vida do monárquico Ricardo Reis: Querer pelo desejo o que sabe não poder querer pela vontade. Ricardo Reis explica que creio que vim por você ter morrido, é como se, morto você, só eu pudesse preencher o espaço que ocupava, ao que Fernando Pessoa, que se apercebe que já não lê, já não se vê no espelho, responde: Nenhum vivo pode substituir um morto, Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem verdadeiramente morto. (91)
Fernando Pessoa questiona Ricardo Reis sobre a identidade: e, além disso, se refletirmos bem, quem é você, a pergunta era obviamente retórica, não esperava resposta, e Ricardo Reis, que não a deu, também não a ouviu.
Capítulo IV
Os jornais elogiam o Estado português perante a
queda iminente das grandes nações, que já pedem opinião, ajuda, ilustração
(…) aos fortíssimos homens portugueses, à cabeça maximamente Oliveira Salazar, presidente
do conselho e ministro das finanças. (93) ... o Governo de 1936, enumeração
de pastas e respetivos titulares. Os elogios internos e externos da imprensa.
(94).
Declaração de Pacheco Carneiro sobre a
instrução primária e o encómio de Salazar, o maior educador do nosso
século… (…) que se deve dar à instrução primária elementar o que lhe
pertence e mais nada, sem pruridos de sabedoria excessiva, a qual, por aparecer
antes de tempo para nada serve, e também que muito pior que a treva do analfabetismo
num coração é a pura instrução materialista e pagã asfixiadora das melhores
intenções…
O modo como o escritor recolhe, seleciona e trata a
informação: Não se cuide que estas notícias apareceram assim reunidas
na mesma página de jornal (…) São acontecidos e informados de duas ou
três semanas, aqui justapostos como pedras de dominó, cada qual com seu igual…(95)
Ricardo Reis toma o pequeno-almoço trazido por Lídia que é quem faz a cama e
limpa e arruma o quarto, chamando-lhe sempre senhor doutor que a trata como
igual. Retrato de Lídia (95, 96): 30 anos, morena, muito bem feita, sinal junto
da asa do nariz…
4 janeiro: Três dias haviam passado e Fernando
Pessoa não voltou a aparecer…» (96) Ricardo
Reis, suspenso, minuciosamente, lia os jornais - ver objetivo da leitura: para
revestir o seu próprio rosto e retrato de uma nova substância, poder levar as
mãos à cara e reconhecer-se. Na última página deu com um grande anúncio: Casa de carimbos e chapas esmaltadas (o Freire
Gravador, 1882, na esquina da Rua do Ouro com a Rua da Victoria – Aires Lourenço
da Costa Freire). Extensa enumeração com referência «ao trabalho do divino
ferreiro Hefestos» - o deus da tecnologia e dos ferreiros (96-98) O labirinto: «Este
anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia.»
Ricardo Reis ao olhar para o
anúncio, esqueceu-se do pequeno almoço, afligindo Lídia. Ricardo Reis
coloca-lhe a mão no braço de Lídia: parecia que se estava dando um
grande abalo de terra com o epicentro no quarto duzentos e um, mais
precisamente no coração desta criada (99). São
assim os labirintos, têm ruas, travessas e becos sem saída…
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.
(13.11.1935)
A necrologia - Vai o ano de feição que os defuntos são correnteza (105): Leonardo Coimbra (criacionismo); Valle- Inclan (romance Lobos); John Gilbert (ator de A Grande Parada); de Rudyard Kipling, o poeta do If; Jorge V - 1492 óbitos em nov. de 1935…
A IRONIA (106-107): a mortalidade infantil (os anjinhos do céu); a posse do
governo; a foto dos cumprimentadores; o sábio ditador (o estado novo); os
homens bons e não bons; o povo (o sarcasmo): diga-me se não valia mais
deixá-los morrer, poupava-se o vergonhoso espetáculo do nosso mundo…»
Reflexão sobre o
homem: o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo.» Ricardo Reis
elogia a beleza de Lídia (108) Envergonhado, decide sair de casa. No Politeama,
viu o filme Cruzada Heroica (1936), na rua de Eugénio dos Santos - atual Rua
das Portas de Santo Antão.
A cama tem 2 almofadas
(indício, 109-110). Lídia entra na cama de Ricardo Reis…
Capítulo V
Salvador transformado em gajeiro (a nau - o hotel Bragança fundeado no cais) anuncia a chegada do doutor Sampaio e filha. Irão ao teatro D. Maria, o Nacional, ver Tá Mar de Alfredo Cortez (1880-1946). Ricardo Reis decide ir também para ser um bom português (…) que devia frequentar as artes portuguesas. Ricardo Reis reflete sobre o nome de Marcenda: estranho nome, nunca ouvido, parece um murmúrio, um eco, uma arcada de violoncelo… Associa Marcenda a Verlaine e a Camilo Pessanha - o simbolismo. Feuille morte. Paul Verlaine, Chanson d'automne / Camilo Pessanha Poema: Chorai arcadas / do violoncelo!
Analepse sobre o relacionamento
amoroso de Ricardo Reis e Lídia (113).
Indecisão sobre comportamento naquela circunstância - a proximidade dos quartos
de Ricardo Reis e Marcenda. Alusão ao envelhecimento e ao anúncio Nhympha do
Mondego – pareceram-lhe hoje mais brancos os cabelos das fontes.
Ao jantar, Marcenda reage à presença de Ricardo Reis e informa o pai do reencontro (116). Os jornais, a telefonia mói umas cançonetas portuguesas, estrídulas, esganiçadas… O narrador: é talvez o pensamento que se vai pensando ou apenas pensando…»
A propósito do casamento impossível com Marcenda, Saramago cruza a descrição com fragmentos de Chuva Oblíqua: podem desaparecer o altar e o celebrante, calar-se a música… (117)
Ricardo Reis desce o Chiado para
comprar bilhete para o Tá-Mar. (118) Elenco da peça no
Teatro Nacional: Palmira Bastos; Amélia de Maria Bem; Lalande de Rosa; Amarante
de Lavagante… Voltou ao hotel, apenas, para mudar de roupa
A ode alcaica - diz-se do verso grego
hendecassílabo com cesura entre o segundo e o terceiro pé. «Não se pergunte portanto ao poeta o que pensou ou
sentiu, precisamente para não ter o dizer é que ele faz versos.» (118)
Ricardo Reis apercebe-se da impropriedade de vir a Lisboa uma doente que vive em Coimbra e, ao ir comprar bilhete para o Teatro (peça Tá Mar), repara na «abundância de pessoas que trazem sinais de luto» em memória do rei Jorge V de Inglaterra (20 janeiro 1936). Referência à necessidade de porto de abrigo para os pescadores da Nazaré. Obras no Teatro Éden, novo café Chave de Ouro. Lídia de Reis vs. Lídia de Saramago. (119)
Sofro, Lídia, do medo do destino.
Qualquer pequena cousa de onde pode
Brotar uma ordem nova em minha vida,
Lídia, me aterra.
Qualquer cousa, qual seja, que transforme
Meu plano curso de existência, embora
Para melhores cousas o transforme,
Por transformar
Odeio, e não o quero. Os deuses dessem
Que ininterrupta minha vida fosse
Uma planície sem relevos, indo
Até ao fim.
A glória embora eu nunca haurisse, ou nunca
Amor ou justa estima dessem-me outros,
Basta que a vida seja só a vida
E que eu a viva.
*
Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.
Chegam os pescadores da
Nazaré. Ricardo Reis não gosta dos aplausos, por uma questão de sensibilidade
e pudor - melindre de aristocrata de quem não tem sangue azul…
Ricardo Reis reflete sobre
o que viu e ouviu, acha que o objeto de arte não é a imitação, que foi
fraqueza censurável do autor escrever a peça no linguajar nazareno, ou no que
supôs ser esse linguajar, esquecido de que a realidade não suporta o seu
reflexo, rejeita-o…(121-122)
Encontro de Ricardo Reis com o
Dr. Sampaio e Marcenda no foyer no final do primeiro ato – apresentam-se apesar
de estarem alojados no mesmo hotel. Voltam a encontrar no final do segundo ato.
Marcenda tinha os olhos muito brilhantes… Durante o terceiro ato, sob o
olhar atento de Ricardo Reis, Marcenda enxugou as faces perante gestos
de amor… Isto é a comunhão da
arte, o publico aplaudia os bravos pescadores e as suas corajosas mulheres, até
Ricardo Reis bate palmas… No teatro, o entendimento entre classes é fácil… Amanhã,
à partida da camioneta, com assistência de jornalistas, fotógrafos e dirigentes
corporativos, os pescadores da Nazaré «levantarão vivas ao Estado Novo e
à Pátria. (126)
À saída do Teatro, novo
encontro. Marcenda confessa que se comovera com o terceiro ato e Ricardo Reis
diz-lhe que deu conta. Recusa o convite para regressar de táxi ao hotel, porque
percebeu que seria um erro…. Decide voltar a pé… desce toda a Rua
Augusta, já é tempo de atravessar o Terreiro do Paço, pisar
aqueles degraus do cais… o Tejo, à noite, visto por Ricardo Reis – os vultos,
os barcos, os contratorpedeiros que têm nomes de rios (127 -129) Paráfrase do rio que corre pela
minha aldeia. O cívico que o aborda, não fosse ele algum suicida. (129) Segue pela Rua do Arsenal. Em 10 minutos,
chega ao hotel. Suspendeu o passo à porta do quarto de Marcenda. Na cama,
encontrou uma botija – boa rapariga essa Lídia. Tenta ler The Labyrinth, sem dar muita
atenção ao que lia… fechou os olhos e quando os reabre estava Fernando Pessoa sentado
aos pés da cama, como se viesse de visita a um doente. (131)
Diálogo noturno entre Fernando
Pessoa e Ricardo Reis sobre a incongruência do esteta ao receber uma serviçal -
Ricardo Reis cativo de uma criada. Alusão à Natércia de Camões (132). Afinal, quem é que escreveu as odes?
(F.P.) Quer que eu acredite que esse homem é aquele mesmo que escreveu
Sereno e vendo a vida à distância a que está…
O sol de Inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos
troncos de ramos secos.
O
frio leve treme.
Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
Aqueço-me
trémulo
A
outro sol do que este.
O sol que havia sobre o Pártenon e a Acrópole
0 que alumiava os passos lentos e graves
De
Aristóteles falando.
Mas
Epicuro melhor
Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Sereno
e vendo a vida
À
distância a que está.
Diálogo sobre o fingimento: Fingir e fingir-se não é o mesmo? Claro que não é o mesmo, eu apenas fingi, você finge-se, se quiser ver onde estão as diferenças, leia-me e volte a ler-se… (132-133)
Meia hora depois da saída de
Fernando Pessoa, Lídia enfiou-se na cama, enroscou-se e perguntou Então, o
teatro foi bonito…
Capítulo VI
A Salvador pareceu que estavam dando a notícia tarde de mais – da ida ao Teatro e do encontro de hóspedes. (135)
Ricardo Reis mostra-se preocupado com a ausência de Marcenda ao almoço. Esclarecida a ausência, decide sair para depois ficar…
Leitura dos
"dessangrados" jornais de Lisboa: notícias nacionais e internacionais:
Eduardo VIII, o novo rei inglês; o historiador Costa Brochado (1904-1989)- (https://omeupessoa.wordpress.com/tag/costa-brochado/
- felicita o ministro do Interior; a ideia da ligação da Áustria à Alemanha
(Anschluss); as divergências no bloco eleitoral das direitas espanholas (138).
Marcenda regressa ao hotel
carregada de embrulhos. Ricardo Reis não sabe o que fazer, pois quer evitar a
atenção de Salvador e Pimenta… Marcenda promete voltar à sala de estar, para
conversar com ele. Reflexão do narrador sobre a desvalorização da palavra: estava-se
então no tempo em que as palavras eram novas e os sentimentos começavam. (140)
Ricardo e Marcenda conversam
sobre a peça Tá Mar: a representação nunca deve ser natural, o que se
passa num palco é teatro, não é a vida, não é vida, a vida não é representável…
(141)
Diálogo sobre o braço (a mão
esquerda) de Marcenda – três argumentos de Ricardo Reis para não falar sobre
aquele caso. Lídia, que serve café, dá conta da alteração fisionómica de
Marcenda. Enerva-se. Salvador apercebe-se.
Ricardo Reis pega no braço de
Marcenda, sentindo pela primeira vez na vida o que é o abandono total, a ausência
duma reação voluntária ou instintiva… (143)
O início da paralisação terá
acontecido 4 anos antes (em dezembro. Trauma (desgosto)? Soluço profundo de
Marcenda. Minha mão morreu e o meu braço não se mexeu mais. (144)
Pergunta direta de Ricardo Reis: Não mexe o braço porque não pode, ou porque não quer. (145) Marcenda não responde à pergunta, o que leva Ricardo Reis a retorquir: tanto quanto posso julgar, se está doente do coração, também está doente de si mesma… Ricardo Reis explica por que está viver num hotel - não sabe se volta ao Brasil ou se continuará em Lisboa. (149)
Terminada a longa conversa,
Ricardo Reis liga a telefonia na altura em que estão a transmitir A Lagoa adormecida, de Francisco Alves. (150)
Às 8 horas, o doutor Sampaio bate à porta de Ricardo Reis a convidá-lo a jantarem juntos. Conversa sobre o tratamento de Marcenda em Lisboa. A etiqueta entre pessoas civilizadas à entrada da sala de jantar… Durante a refeição, o diálogo é sobre a Lusa Atenas, sobre a ida de Ricardo Reis para o Brasil em 1919, ano da restauração da monarquia no Norte, confessando o médico não acreditar em democracia e aborrecer de morte o socialismo. (154) O Dr. Sampaio revela-se admirador de Salazar, homem de alto pensamento e firme autoridade. Após longo elogio do estado da nação em 1936, o Dr. Sampaio recomenda a leitura do livro Conspiração do jornalista patriota Tomé Vieira, nascido em 1900 na Granja, concelho de Leiria…
Capítulo VII
Sobre as leituras que o homem faz ao longo da vida. Será
fácil fazer uma ideia aproximada das leituras de Ricardo, aluno que foi dos
jesuítas. Por outro lado, Alberto
Caeiro, que, tal como Fernando Pessoa, não leu O Nome de Guerra, de Almada
Negreiros, 1925 /1938, Deus saberá a falta que lhe fez.
Vem esta reflexão (159-164) a propósito da recomendação de
leitura “A Conspiração” de Tomé Vieira, feita pelo Dr. Sampaio a Ricardo
Reis, que já vai no capítulo 7… / resumo da obra – elogio do Estado Novo.
Ricardo Reis considera o livro “uma estupidez”.
Comparação entre a situação
portuguesa e a europeia, designadamente a espanhola Falange vs. ditadura
vermelha (164). A declaração de Hitler: Saiba o mundo que
a Alemanha será pacífica e amará a paz… Remilitarização da Renânia.
Portugal e as colónias. Ponto
de vista de Lloyd George que considera Portugal favorecido em comparação com a
Alemanha e a Itália. Referência ao Quinto Império de Pessoa, com ou sem colónias?
(166) Conversa imaginada entre FP e RR sobre a consistência das afirmações de
Pessoa. (167-168)
Lídia sente-se ignorada, por
pouco tempo… Cena de sangue na Mouraria. (169)
Ricardo Reis assiste à saída do préstito do Mouraria e acompanha-o até ao Paço
da Rainha. Surpreendido com o ajuntamento popular, chega ao ponto de o comparar
com o bodo do Século… a diferença, no entanto, tinha origem no vestuário
carnavalesco de mulheres e homens – pobreza e riqueza misturadas; a
marginalidade em cortejo fúnebre. As
roupas encarnadas eram utilizadas em ‘dias assinalados’, do nascimento à morte.
(171-173) Referência a Gil Robles (Espanha), anti luta
de classes, mas defensor da justiça social, isto antes das eleições que foram
ganhas pela esquerda – 16 de fevereiro de 1936.
Manuel Azaña lideraria a coligação de esquerda.
Boatos sobre a preparação de
um golpe militar em Espanha, liderado pelos generais Manuel Goded Llopis e Francisco
Franco. (174) Fernando Pessoa indica o
comunismo como causa do conflito espanhol… para acabar citando, com Ricardo
Reis, Álvaro de Campos Ah, todo o cais, É uma saudade de pedra…
Tinham-se encontrado num café de bairro, onde chalaçam sobre o carnaval que se
avizinha (175-176).
Ricardo Reis teme que a sua
relação com Lídia se torne escandalosa. Entretanto, o Bragança começara a
encher-se de espanhóis. Gente rica que fugia dos comunistas. (178)
Referência à decisão do Governo de dar início ao estudo para construção de uma ponte sobre o Tejo, assim como à proposta de um ministro ‘a preconizar a criação de uma sopa dos pobres em cada freguesia.’ E também ao cardeal Pacelli – alusão ao futuro Papa Pio XII - que vê em Mussolini o maior restaurador cultural do império romano. (180) Ricardo Reis compara o carnaval brasileiro com o português. Chove durante o desfile carnavalesco na Avenida da Liberdade. Descrição do corso. O elogio das crianças! A mascarada da morte. Seria Fernando Pessoa? (182-188)
Capítulo IX
Em Espanha, foi constituída uma junta governativa em Burgos. Em Badajoz, a população armou-se para resistir ao assalto iminente dos falangistas. Em Portugal, aumentam as inscrições de voluntários para a Mocidade Portuguesa. Miguel de Unamuno(1864-1936) – passou os últimos dias da sua vida em prisão domiciliar, depois te ter sido demitido por Franco em 22 de outubro de 1936; ver incidente de 12 de outubro de 1936 - , reitor da Universidade de Salamanca e autor celebrado, deu a sua adesão à Junta Governativa de Burgos, em nome da salvação da civilização ocidental. (449) Em termos de fascismo, Saramago coloca lado a lado Unamuno, Tomé Vieira e Lopes Ribeiro. E todos esqueceram a vergonhosa atitude de Unamuno!
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos
as mãos).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais
longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E
sem desassossegos grandes.
(excerto)
Parece que toda a Galiza se bandeou com o general Franco, não admira, sempre é um filho da terra, o sentimento pode muito. (452) O sim e o não de Miguel Unamuno perturbam Ricardo Reis… (453) Milan d’Astray (1879-1954) – itinerário de Buenos Aires até Salamanca, onde gritará Viva la muerte, e depois escuridão.
Fernando Pessoa não aparece. O
tempo arrasta-se como uma vaga lenta e viscosa… Os velhos só à noitinha
aparecem no Alto de Santa Catarina, não aguentam a torreira do sol… Falta a
água em Lisboa. Num dos dias, Ricardo Reis saiu cedo. Dirigiu-se ao cemitério
dos Prazeres, ao número 4371. Fernando Pessoa, surge a seu lado, quando
contempla o rio. Falam sobra a situação espanhola – a resposta de Unamuno a Milan-Astray…
Ricardo Reis fica sozinho… a paisagem não parece real. (457)
Capítulo XVIII
Ricardo Reis compra uma telefonia da marca Pilot. Quer manter-se a par das notícias de forma discreta e reservada. (459) Não é capaz de decidir se fica feliz com as vitórias da direita ou se com a derrota dos republicanos espanhóis. Satisfaz-se com o mal-estar que sente.Lídia fez uma grande festa quando viu a telefonia, pois andava preocupada com o desleixo de Ricardo Reis. Os espanhóis começam a abandonar o Bragança. O Rádio Clube Português passou a ter uma locutora espanhola, devido à forte presença de exilados em Lisboa e arredores… (461) Lídia chora o bombardeamento de Badajoz, influenciada pelo irmão Daniel, marinheiro no Afonso de Albuquerque – ver a Revolta dos Marinheiros em 8 de setembro de 1936, no Tejo. Ricardo Reis defende os insurretos devido à ação dos comunistas que cortaram uma orelha a cento e dez proprietários… abusaram das suas senhoras… - ver O CRIME, 6 números, de 18 de abril a 5 de julho de 1936, da autoria de Tomás Vieira que, em Julho, passa a correspondente de O Século. (462) Lídia considera que, de acordo com Daniel, não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem. Motins na Madeira – a revolta do leite no verão de 1936 – Jornal Avante. O narrador ironiza sobre a verdade da futura TV, com base na análise do rosto. No Rádio Clube Português, a emissão ouve-se cara ao sol com la camisa nueva, o hino da Falange… (464) Um telegrama dos antigos legionários portugueses com esperança num porvir radioso para as duas pátrias ibéricas… Erico Braga (ator, autor de revista, 1889-1962) apresenta a Noite de Prata no Casino Estoril. Desesperado por se ver tão sozinho, Ricardo Reis lembra-se de Lídia, que ela está grávida e que o menino poderá participar na guerra de 1961 (colonial) e vê-o, à luz do poema de Fernando Pessoa, trespassado, moreno e pálido… apesar de não pretender perfilhá-lo. (466)
Badajoz rendeu-se. O general
Mola manda fuzilar 2000 milicianos prisioneiros na praça de toiros. Ricardo
Reis só soube dos acontecimentos o que lhe disseram os jornais portugueses. O
resto soube-o por Lídia, que o soubera pelo irmão… Lídia interroga-se sobre a
sua relação com Ricardo Reis, porque eles não são iguais… Reis regressa ao
início do the god of the labyrinth
que interrompe, pois começa a ver no tabuleiro, plaino abandonado (…) o
jovem que jovem fora (…) a arena coberta de corpos que pareciam
crucificados …(467)
Chegado de Tetuão (cidade do noroeste de Marrocos), o general Milan d’Astray anuncia guerra sem quartel, de extermínio, contra o micróbio marxista. À semelhança do que acontece no país vizinho, os sindicatos nacionais promovem um comício contra o comunismo, com veemente profissão de fé doutrinária e de confiança nos destinos da nação. (469) Os falangista espanhóis foram ao Rádio Clube Português louvar a integração de Portugal na cruzada resgatadora…
Em toda a sua vida, Ricardo Reis nunca assistira a um comício político. Perante a situação dos últimos tempos, Ricardo Reis curioso decide ir ao Campo Pequeno assistir ao comício promovido pelos sindicatos. Ao entrar, achou-se confundido com os bancários, todos de fita azul no braço com a cruz de Cristo, e as iniciais SNB… (470) Saúdam-se à romana, dão vivas ao Estado Novo. Esfuziam os gritos patrióticos, Portugal Portugal Portugal, Salazar Salazar Salazar, este não veio Assistem representantes do fascio italiano, com as suas camisas negras…; representantes nazis, de camisa castanha e braçadeira com a cruz suástica; entram os falangistas espanhóis com a já conhecida camisa azul. Grita-se morte ao bolchevismo em todas as línguas. (472) Oradores: o operário Gilberto Arroteia; Luís Pinto Coelho (Mocidade Portuguesa); Fernando Homem de Cristo; Abel Mesquita; António Castro Fernandes; Ricardo Durão, major; o capitão Jorge Botelho Moniz, o primeiro na importância política…(473) Ricardo Reis, à saída da festa de que não fazia parte, decidiu atravessar a cidade inteira a pé – quase uma légua. Já em casa, não consegue pensar no que vira e ouvira e evoca Miguel Unamuno: Eis-me aqui, homens de Portugal, povo de suicidas, gente que não grita Viva la muerte, mas vive com ela… Em conclusão, Ricardo Reis declara a comícios não torno… da roupa desprendia-se um cheiro a cebola…
Acontecimentos históricos: a finança americana
prontifica-se a conceder os fundos necessários à revolução nacionalista
espanhola; a igreja católica e o Reich anunciam combate ombro contra o inimigo
comum; Mussolini propõe-se mobilizar oito milhões de homens; em Portugal,
aumenta a adesão à Mocidade Portuguesa e à Legião Portuguesa; o presidente do
conselho anda a visitar estabelecimentos militares. (476) Já quem lhe chame
Esteves em vez de Salazar. (477) O Afonso de Albuquerque foi a Alicante
buscar refugiados.
Lídia não tem aparecido.
Ricardo Reis sente-se cada vez mais só. Desmazelado, dorme quase todo o dia.
Escreve uma longa carta a Marcenda – punha de pé toda uma arqueologia da
lembrança. Rasgou-a. E, alta noite, foi lançar os papelinhos por cima das
grades do jardim. Dois dias depois
copiou o seu poema:
Saudoso já deste Verão que vejo.
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de
perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei de errar,
sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.
Enviou o poema a Marcenda Sampaio, para a posta-restante. Se o receber, Marcenda não saberá a quem atribuir a autoria do poema, pois Ricardo Reis nunca lhe disse que era poeta.
Capítulo XIX
Apesar da promessa de não
voltar, Lídia bate à porta. Lídia tem os olhos vermelhos e inchados.
Veio por causa do irmão. É que os barcos vão revoltar-se, sair para o mar.
Ricardo Reis não tem em si qualquer sentimento – talvez que isto seja o destino,
sabermos o que vai acontecer, sabermos que não há nada que o possa evitar, e
ficarmos quietos, olhando, como puros observadores o espetáculo do mundo, ao
tempo que imaginamos que este será também o nosso último olhar, porque com o
mesmo mundo acabaremos… (480) Lídia: a ideia é irem para Angra do Heroísmo
libertar os presos políticos, tomar posse da ilha , e esperar que haja
levantamentos aqui… Os barcos envolvidos: Afonso de Albuquerque, o Dão e o
Bartolomeu Dias. Lídia veio só para desabafar.
No dia seguinte, ao sair para
o almoço, Ricardo Reis parou no jardim a olhar o quadro dos navios de guerra,
em frente ao Terreiro do Paço. Comove-se – turvam-se-lhe os olhos de
lágrimas, também foi assim que começou o grande choro do Adamastor. (483)
Entretanto, surge o dirigível Hindemburgo, que vem largar o correio à Portela de Sacavém.
À tarde, Ricardo Reis desceu
ao Terreiro do Paço para ver os
barcos, e lembrou-se que em todos estes meses nunca fora ao Martinho
da Arcada. (484) Não chega a entrar. Está Ricardo Reis a olhar os barcos,
quando de repente o Victor lhe pergunta Então o senhor doutor veio ver os
barcos… os barcos e o rio, respondeu, de forma agitada. (485) Regressa,
subindo a rua do Alecrim, observa o anúncio clínica de enfermidades de los
ojos y quirúrgicas, A. Mascaró, 1870… Seguiu o caminho das estátuas.
O Victor não viera atrás de si.
Não saiu para jantar, inquieto,
já passava das onze horas quando desceu à jardim para olhar os barcos, deles viu
apenas as luzes de posição. De manhã, prepara-se para tomar banho quando ouviu o primeiro tiro de peça.
As vidraças estremecem… Ricardo Reis apressa-se para o jardim, onde já havia
muitas pessoas… O forte de Almada bombardeava os navios, o Afonso de
Albuquerque do marinheiro Daniel foi atingido… agora é o forte do Alto do Duque
que bombardeia… é impossível escapar. Passaram 100 minutos. Volta para casa, atira-se
para a cama para poder chorar à vontade, lágrimas absurdas que esta revolta não
é sua, sábio é o que contenta com o espetáculo do mundo. (489) Lava-se,
barbeia-se… eram onze e meia quando saiu de casa, vai ao Hotel Bragança…
Procura a criada, o Pimenta diz que ela saiu e ainda não voltou… queria saber o
que se passou com o irmão que estava na marinha de guerra…
Na hora da distribuição dos
vespertinos, Ricardo Reis saiu para comprar o jornal – morreram doze
marinheiros, e vinham os nomes e as idades, Daniel Martins de vinte e três anos…
(492) Não há notícia de Lídia. Fernando Pessoa bate à porta. Ficam em silêncio.
Fernando Pessoa: vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos (…) o meu
tempo chegou ao fim… Ricardo Reis vestiu o casaco, meteu o The God of the labyrinth
de baixo do braço. Então, vamos disse… e foram.
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