30.5.06

Homens que nunca tiveram escrúpulos...

«As grandes obras constroem-se no silêncio, e a nossa época é barulhenta, terrivelmente indiscreta. Hoje não se erguem catedrais, constroem-se estádios. Não se fazem teatros, multiplicam-se os cinemas. Não se compõem obras, fazem-se livros. Não se procuram ideias, procuram-se imagens.» Salazar, Extracto de entrevista publicada no Diário de Notícias em 16 de Outubro de 1938.
A multiplicação dos estádios, dos cinemas, dos livros e das imagens provocou a substituição da 'vida interior' pelo vedetismo, pelo voyeurismo, pela bisbilhotice, pela superficialidade. A morte da "alma" tornou-nos sobranceiros, violentos, maledicentes, vesânicos e, sobretudo, fez-nos perder a integridade.
A sobranceria permite-nos hostilizar grupos profissionais, étnicos e religiosos como se a decadência da nação fosse culpa deles e não dos sucessivos carreiristas sem escrúpulos que nos têm governado em nome de Abril.
Era bom que olhassemos sistemicamente para o interior das instituições de modo a separar o trigo do joio. Caso contrário, corremos o risco de sermos apenas um 'campo de joio'.
O joio alastra asfixiando os poucos grãos de trigo que compõem, por entre os escolhos, obras /ideias que, se lidas /ouvidas, bem nos poderiam ajudar neste implacável tempo de sujeição do homem.
E se não aprendermos a ser íntegros, os jovens responder-nos-ão com a violência, como aconteceu com aqueles que eram jovens em 1975 e que hoje nos governam.
Post Scriptum: A citação de Salazar é propositada. Ignorar o passado é hipotecar o futuro.

29.5.06

Exclusão e desertificação

(Expressão clara e revoltada)
Tenho 80 anos. Sou retornada de Angola. Recebo 240 euros de reforma. Tomo conta de um filho que a pátria sacrificou na guerra de Angola. Ele recebe 99 euros de pensão de invalidez. Vive fechado em casa. Não fala com ninguém nem mesmo comigo, a não ser para me dizer que não gosta deste ou daquele prato. Ainda ontem telefonei para a minha filha, não me atendeu. Também telefonei para a minha neta, com o mesmo resultado. Ninguém me ajuda. Há muito tempo que estou doente. A tomar conta deste filho que a pátria sacrificou e esqueceu. Fui à segurança social pedir ajuda, não quiseram saber. Voltei lá, disseram-me que como era dona de um apartamento não me podiam ajudar. Um apartamento que paguei com o suor do meu rosto e do meu marido, já falecido, há muito. Acabaram por me pedir os ordenados de todos os meus filhos. Os meus filhos têm a vida deles. Nasceram em Angola. Procuraram melhor vida na África do Sul. Não tiveram sorte. Partiram para o Brasil, também não. Um deles sei que regressou a Angola. Não sei se já tem emprego. Ele tem muitos filhos. Para que é que a segurança social quer os ordenados deles? Como é que eu posso preencher os papéis, se não sei deles, se eles não me respondem. O senhor presidente, que também serviu a pátria, eu sei, está preocupado com a exclusão daqueles que se encontram nos lares, e eu, senhor presidente, porque é que ninguém se preocupa comigo? Eu tenho 80 anos e o meu filho não tem vida, senhor presidente. O que vai ser de nós? E, sobretudo, dele? A segurança social não quer saber de nós! E o senhor presidente?
(Nocturno)
Deixo o carro no cimo do monte, e avanço, a pé, pela vereda que há muito não percorro. Reparo que o trilho está coberto de cartuchos de munições gastas em recentes caçadas. À volta, ergue-se o mato cada vez mais denso. Percorridos 800 metros, sob um calor de maio escaldante, apercebo-me que me encontro na outra extremidade da propriedade que queria visitar. Contemplo-a e apetece-me voltar para trás: o solo ressequido começa a abrir rachas, as figueiras e as oliveiras estão cercadas por densas plantas agrestes. É quase impossível avançar. Penso no futuro daquelas oliveiras, algumas com centenas de anos, e naquelas figueiras que, no passado, tanto odiei - as figueiras malditas. E vejo todo trabalho de gerações anteriores à minha a arder!
E, hoje, não tive coragem para me aproximar do poço que se encontra junto à ribeira, seca. Nem sequer o vi, completamente escondido pela exuberante e predadora vegetação.

28.5.06

Nunca soube...

Já não sei se parta se fique... ............................................................ Raramente estive na primeira linha e das poucas vezes que lá cheguei compreendi o incómodo de lá estar
Sempre fui um céptico
a quem exigiam certezas que eu não podia ofertar Faltava-me conhecer a terra vivi demasiado tempo longe do mar Só tarde me dispus a voar - as aves já não tinham onde pousar.

27.5.06

Os galheteiros

«O que faz suspeitar que os pedagogos não gostam é dos autores que ficaram no programa, estão a querer comprometê-los aos olhos dos putos e, na próxima reforma, catrapus, tudo dos textos dos media. Para já, a lírica de Camões fica diluída em “aspectos gerais” e “Os Lusíadas” passa a fazer galheteiro com a “Mensagem”, talvez para o Pessoa ser o azeite que ajude a tornar o vinagre do Camões mais palatável, mais actual.» Helder Macedo, Público 28/09/2001
Tal como as coisas se anunciam, os professores do ensino básico e secundário nem para galheteiros servirão. O caminho mais fácil é fingir que se lê, que se interpreta, que se questiona, que se redige, mas sem que os alunos se confrontem com outras ideias - artistas, escritores, filósofos, cientistas ... para quê? - aquelas ideias que poderiam pôr em causa os interesses instalados.
Nada melhor que o inquérito para elevar o sucesso escolar! Pergunta-se aos encarregados de educação se estão satisfeitos com os professores dos seus educandos. E eles responderão de acordo com as classificações atribuídas...
Apesar do estrebuchar de uns tantos, qual será a reacção dos professores? (Belíssima catáfora!!!) Leccionar e classificar como, há muito, acontece no ensino privado: aplica-se-lhes a cartilha e sobe-se-lhes as classificações.
1º objectivo: nivelar por baixo.
2º objectivo: criar falsas elites.
3º objectivo: desmobilizar todos aqueles que sempre recusaram o carreirismo.
4º objectivo: ...
No entanto, não se compreende que as luminárias - entenda-se: pessoas de grande saber - que nos governam ainda não tenham perguntado aos (seus) alunos do ensino superior se estão satisfeitos com os respectivos professores. Se esses alunos conhecem, de facto, os professores, se costumam ter aulas e, quantas, por semestre. Se têm a certeza que esses professores lêem os trabalhos, na maioria copiados, as provas de frequência, as provas de exame... Se os professores os conhecem?
(À parte)
Qualquer aluno do ensino, dito, superior poderá responder: a maioria das luminárias continua a papaguear conteúdos mal assimilados enquanto vai redigindo dissertações e teses, numa língua de trapos, que serão aprovadas por catedráticos infalíveis e inamovíveis.
E esse é um dos principais problemas do ensino superior: a infalibilidade e a inamobilidade dos catedráticos, agregados, extraordinários, auxiliares (vitalícios!), assistentes... conselheiros, adidos, deputados, presidentes de ..., jornalistas, esposas de...
(De regresso)
Estarão as luminárias dispostas a resolver os problemas que lhes chegam às mãos: alunos que não sabem interpretar um enunciado, fazer um cálculo, traçar uma recta... ou, para não perder alunos, e consequentemente o lugar, continuarão a mentir-lhes... a eles, a nós todos. E a culpar os professores do ensino básico e secundário, com a cumplicidade dos encarregados de educação...
Mas de que educação?
Numa escola, onde não há lugar para a formação no terreno, onde objectivamente não há formadores, não é possível responsabilizar qualquer decisor. Por isso castiguem-se os galheteiros!
Paradoxalmente, a figura do galheteiro começa a tornar-se no logótipo do ME: Tal como Fernando Pessoa acolita Camões também os exames acolitarão os encarregados de educação (isto é, as associações de pais).
PS, isto é, Post scriptum: Substituamos a desacreditada caça aos gambozinos pela caça aos pares de galhetas!

26.5.06

Ensinar-lhes a mentir...

«Se o meu filho fosse vivo (...) havia de lhe ensinar a mentir, a cuidar mais do fato que da consciência e da bolsa que da alma.» Matilde, in Felizmente Há Luar!, de Luís Sttau Monteiro
Estão diante de mim, risonhos, alinhados em conversas privadas. Sorriem-me, acenam-me com a cabeça e, despreocupados, ouvem-me repetir e exemplificar o que são aliterações, assonâncias, catáforas, anáforas (linguísticas com sabor palimpséstico!), pleonasmos e outras redundâncias (in)finitas...
Perante a fastidiosa iteração, interrompem-me para me perguntar se não ficava bem rirmo-nos um pouco dos eufemismos e eu corrijo-os porque o disfemismo é que é a expressão favorita dos 'alarves' que todas as noites vão ao teatro ou ao cinema «fingir nada terem a ver com o que se passa em cena».
(Uns minutos mais tarde...)
Esforçadamente, um aluno lê um monólogo sobre como educar numa sociedade que valoriza a aparência, o dinheiro, a mentira, enquanto que outros simulam uma leitura risível, alarve do que se passa em cena, dentro e fora da sala de aula...
( Toca a campainha: sorrateiramente, abandonamos o palco... para acordar na parada do Rock In Rio-Lisboa ou no Parque Tejo com o Super Bock Super Rock)
Post Scriptum: Já sei como explicar a neologia... basta dar-lhes a palavra no nosso próximo encontro... e ficar a ouvi-los, a ouvi-los... e então descobrirei uma nova realidade ou, pelo menos, que as palavras existentes adquiriram significados novos neste fim-de-semana!

25.5.06

Ó Terra, a arte está tão perto e eles já o sabem...

«E a primeira cousa que se punha aos amigos na mesa era o sal; costume que ainda agora se usa, posto que se não saiba, em muitas partes, a razão dele, nem a porque se enojam e enfadam os hóspedes de se derramar o sal pola mesa...» Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia, 1619
Embora a Caruma seja pouco dada a celebrações e deteste o vedetismo, não pode deixar de assinalar o significado da iniciativa II Concurso Literário Camões 2005/2006, cujos prémios, nas modalidades poesia e conto, foram, hoje, entregues no Auditório Camões. Este tipo de iniciativa mostra que se deve apostar numa escola participativa, onde os alunos surjam como sujeitos capazes de escrever, compor, ler, representar, partilhar, assistir...respeitar os outros. E, hoje, foi possível testemunhar essa nova dinâmica de participação, mesmo que possa parecer incipiente. Esse é o caminho... é o sal da terra!
É, no entanto, fundamental que não se enojem nem se enfadem estes novos hóspedes derramando o sal pela mesa!

24.5.06

Escrever é um registo maçónico...

Saramago coloca-se, com Memorial do Convento, na rampa iniciática do Grande Arquitecto maçónico, que com o esquadro e o compasso determina a estrutura e os limites do céu e da terra. No entanto, o seu convento não é o convento de D. João V, apesar de ‘João’ ser o nome próprio dos santos padroeiros da maçonaria (S. João Baptista e S. João Evangelista). Santos esses que Saramago poderia ter associado ao deus Jano Bifronte, que tinha a faculdade de ver o passado e o futuro. Porém, o projecto de Saramago era o oposto: mostrar a cegueira do rei ao mandar erigir o convento. O convento é fruto do sonho megalómano de um rei que gostaria de ser o Grande Arquitecto e de um vicioso sonho da província franciscana. D. João V continua, ainda hoje, a construir infantilmente o puzzle da Basílica de S. Pedro de Roma enquanto que os franciscanos jamais poderão dar uso às 300 celas que lhes foram destinadas! Para Saramago, a Basílica não se projecta para os céus. O que lhe interessa são as fundações – o que acontece na terra dos homens que, forçados, se vêem envolvidos num projecto em que não se revêem. Mas, na outra frente (janela) da obra, encontramos os "franc–maçons" que, de facto, se projectam para os limites do céu: Sebastiana Maria de Jesus, António José da Silva, Domenico Scarlatti, Blimunda (Sete-Luas), Baltasar Mateus (Sete-Sóis), o padre Bartolomeu Lourenço ( o arquitecto-voador). Em qualquer destas figuras, notamos, e de acordo com as suas competências, uma visão niveladora, um gesto criativo, uma vidência letal e regeneradora, um braço fautor de morte e de vida, um espírito torturado e inventivo. A ambição de Saramago é um construir um memorial em cuja pedra se materializem todas as incoerências dos grandes e todos os sonhos dos pequenos. Ele quer ser a voz dos esquecidos, dos perseguidos, dos desterrados, dos executados em todos os autos-de-fé. O Grande Arquitecto.