30.12.06

Neste final de 2006...

Neste final de 2006… CARUMA quer despedir-se neste final de 2006 de todos os seus, pacientes, leitores. Tal como o país e, sobretudo, o mundo, andou um pouco à deriva num processo de adaptação que deixou a nu o seu fragilizado esqueleto. A aposta na ruptura tem vindo a destruir a memória, querendo dar razão àqueles que defendem o «fim da história». Mas sem memória, secamos as raízes e tornamos absurda a vida. Vários foram os momentos em que o século XX voltou as costas ao passado, recriando pesadelos que eliminaram milhões de vidas. O modernismo relativista transformou-se em individualismo triunfante e as nações submergiram sob totalitarismos expansionistas que ignoram toda e qualquer fronteira. No início do séc. XXI, a fronteira contrai-se e dilata-se ao sabor da vontade dos anónimos conglomerados. O homem pesa cada vez menos face à teia dos interesses. De vez em quando, executa-se um “saddam” para que a teia possa eliminar mais uma série de obstáculos. Objectivamente, a decisão de execução visa que os súbditos se exterminem, em nome da frágil memória que ainda lhes resta da História. Nestas circunstâncias, CARUMA não pode esperar que 2007 seja mais justo que 2006. O ser humano, depois de ter sido expulso do paraíso, está a ser expulso da terra. A dificuldade não está em determinar o agente da expulsão, mas em saber o que fazer com ele. Porém, a rotunda é a melhor metáfora do que espero para 2007, mas que não desejo a ninguém. Se a memória me não atraiçoa, em tempos idos, de encruzilhadas, o que me fascinava e prendia era a nora e, em particular, os alcatruzes.

26.12.06

Os conglomerados no Jardim das Delícias...



«O que Bosch nos mostra com o Jardim das Delícias é um falso paraíso, cuja beleza é passageira e conduz os homens à ruína e à condenação...», Walter Bosing

O mesmo se poderá dizer de "O Jardim das Delícias" (ASA, 2005) de João Aguiar. Trata-se de um romance sobre a União Europeia transformada em "Federação Europeia" no séc. XXI.
O federalismo vai destruindo todos os símbolos identitários em nome de uma volúpia económica, conduzida pelos «conglomerados político-financeiros» que de fusão em fusão condicionam consumidores e governos tornando-se indissociáveis do poder político e da própria criação cultural (pág.130).
Perante a destruição das identidades nacionais e regionais surge a reacção do integrismo - no caso português (ou do que resta...) - a reacção da Sagrada Milícia - a ala combatente do Movimento Integrista Português.
E no meio destes dois poderes, o protagonista - o Jornalista João Carlos - procura opor-se à cegueira de uma Europa minada por um duplo cancro... num espaço e num tempo em que a lucidez dificilmente sobrevive à arrebanhadura...
Um romance que obriga a pensar o presente, à luz da história recente... raramente problematizada. Não chega a ser um romance profético, a não ser, talvez, nesta sub-região da Ibéria...

21.12.06

Tudo é possível...

«Passo o meu dia a dia aparentemente desligado da literatura e no entanto é literatura do princípio ao fim.» José Luandino Vieira, Público, 5/12/2006
Quando a História se apaga, o campo fica livre para a mentira, a simulação, a ficção. O Ocidente querendo evitar a mentira fez-nos crer na inverosimilhança. Por isso, ensinou-nos pacientemente a distinguir a verdade da verosimilhança.
Em tempos de maior rigor, a História exigiu-nos que sacrificassemos a vida em nome da Verdade - única. Tudo o resto era desvario diabólico.... Porém esse desvario arrepiou caminho e relativizou a Verdade - a História entrou em declínio e a verosimilhança começou a impor-nos tantos caminhos quantos os romeiros. De tal modo que facilmente cultivamos a mentira que nos permite limpar as mãos sujas do sangue de todos aqueles que sacrificámos em nome de um realismo socialista que nem sequer se queria utópico.
Tudo é possível num convento em Vila Nova de Cerveira..., contrariando a máxima de que tudo o resto é literatura!
PS: Há certamente um domínio onde nem tudo é literatura - a dor. Mas mesmo essa continua a ser literatura se apenas a fingimos. Como os poetas / fingidores deveriam ser felizes!

16.12.06

A paratormona...

Depois da juvenil caça aos gambozinos passei a dedicar-me à descoberta da paratormona. Conheço-a mal, mas os seus efeitos sinto-os bem. Percorre-me o corpo numa voragem intensa e um pouco desorientada... Apesar de tudo, passei a considerá-la - a paratormona - uma nova companheira extremamente exigente: detesta que eu a esqueça, que eu me distraia...
Uma companheira um pouco paradoxal: ao mesmo tempo que ocupa o espaço, absorve-o, criando o vazio...

11.12.06

A encenação espanhola do arrependimento...


É a terceira vez que tento publicar um breve comentário não sobre a Igreja de La Preciosa Sangre, em Cárceres, mas sobre a monumentalidade da arquitectura civil e religiosa na Espanha do passado e do presente. Sempre que percorri o casco de algumas cidades espanholas (Toledo, Madrid, Burgos, Barcelona, Sevilha, Ávila, Segóvia, Cárceres) fiquei com a impressão de que os espanhóis têm uma enorme necessidade de expor a força e a crueldade erigindo fortalezas e catedrais. 
Esta necessidade não é forçosamente do soberano (do estado), é, sobretudo, a afirmação dos "senhores" da conquista - ibérica, europeia ou das américas. Senhores ciosos de afirmarem a sua superioridade perante os vizinhos e que, para efeito, edificam palácios e catedrais lado a lado, transformando o espaço num labirinto de ruas e ruelas, lutando pelos cumes numa clara projeção para os céus… O movimento é sempre ascensional, originando cogumelos de edifícios cuja funcionalidade nos escapa… porque a grandeza, afinal, é simbólica…
Mesmo a associação da grandeza ao poder nem sempre é linear, porque, mais do que expressão de riqueza poderia muito bem tratar-se de uma forma de catarse. Mas não, tudo é encenação, diria pública, não fosse a redundância... O arrependimento da conquista, do sangue derramado, transforma-se em espectáculo em que sangrador e sangrado podem caminhar lado a lado, fugindo ao exame de consciência que a nudez e a elevação das catedrais góticas acabaria por exigir.
Por isso os espanhóis preferem ao despojamento a ostentação, ao isolamento a multidão, à sobriedade a opulência, à linha o volume..., preferem tudo o que os afaste da assunção da responsabilidade, em nome da ocupação do espaço, da encenação do arrependimento...
A encenação da culpa é um sinal dos tempos de que quase todas as cidades espanholas dão testemunho... E paga-se para assistir ao espectáculo!
PS: Os dois anteriores comentários eram bem diferentes destes. Mostravam que o Barroco não foi mais do que o produto de uma contra reforma jesuítica que encenava a morte num retábulo roubado aos ameríndios! Mostrava ainda que o barroco nunca foi português nem brasileiro... era simplesmente a expressão da grandeza espanhola na Europa, contra a Europa da Reforma. Felizmente que estes comentários se perderam! 
MCG

1.12.06

A linearidade do orçamento...

O orçamento é (ou deve ser) linear.
Inicialmente, o orçamento não era mais do que um instrumento de execução de um projecto... No entanto, à medida que fomos ficando sem projecto, o orçamento tornou-se no grande acontecimento legitimador da governação e da oposição.
Governo e oposição sonham com o orçamento para poderem definir as respectivas estratégias de consolidação ou de luta pelo poder, pelo poder de gerir o orçamento de estado, como se o país se reduzisse à captura de receitas e à sua redistribuição pelas clientelas...
Se quisessemos construir um projecto nacional, ibérico, europeu, lusófono deveríamos tornar obrigatória, em todas as escolas, a leitura do(s) orçamento(s). Hoje, para o cidadão comum é tão importante interpretar o orçamento como falar inglês.
As aulas de substituição deveriam ter como único tema: o orçamento - pessoal, familiar, plurifamiliar, autárquico, regional, nacional, ibérico... global.
Afinal, o que é que pode haver de mais importante do que o orçamento? Só em Portugal, gastamos dois meses a debatê-lo, anaforicamente (contributo da TLEBS)...
Por causa do orçamento, em 1955, Max Ophuls (1902-1957) sofreu um enorme rombo: o filme Lola Montès naufragou nos baixios da crítica cinematográfica e de costumes. Nem a beleza de Martine Carol (1920-1967) seduziu os espectadores. A encenação luxuriante da ideia de que na vida tudo é movimento, mas que o carrossel pára quando menos se espera só mais tarde foi entendida por um mundo ávido de protagonismo, que, no entanto apenas valoriza o movimento.
Ora, em 1955, Max Ophuls cometera um pequeno crime: rompera com as narrativas lineares. E o orçamento ressentiu-se...
Hoje, nas nossas escolas, a linearidade poderá dar um corpo a um projecto de idiotia colectiva se apostarmos com mais convicção na leitura do orçamento..., (com a ajuda da TLEBS chegaremos lá...)
Sabe-se, embora ninguém o diga, que a TLEBS foi inventada, não pelo Max Ophuls, mas por um grupo de linguístas que descobriu como viver durante o resto da vida à mesa do orçamento.
PS: o orçamento perdeu a maiúscula que originalmente o anunciava.

24.11.06

A memória dos rios...

Se a memória não me atraiçoa, estudei em Tomar entre 1971 e 1973. Em 71/72, a chuva caía com abundância. Lembro-me porque, para chegar ao Liceu, percorria de madrugada, numa motorizada CASAL, cerca de 15 Km. Invariavelmente, às 8 horas, chegava ao largo da estação de caminho de ferro, onde se situavam os "anexos" do Liceu. E nesses "anexos", a intempérie obrigava-nos frequentemente a abrir os guardas-chuvas. Para mim, não havia nada de extraordinário: essa chuva que caía sobre mim no percurso e na escola era bem vinda. Se há alguma coisa que eu prefiro na natureza é, concerteza, a chuva... mais do que a própria água. A água só me fascina sob a forma de corrente tumultuosa. A água parada dos paúis (pessoanos ou não), dos lagos, do próprio oceano, enerva-me!
Antes de conhecer o Nabão, já conhecia o Tejo. Habituara-me a contemplá-lo das scalabitanas Portas do Sol. No entanto, só o procurava em tempo de cheias, quando banhava os pés da ribeirinha Santa Iria. O caudal alargava-se de tal modo que conseguia visualizá-lo, para lá de Almeirim e de Alpiarça, a subir o desconhecido Terreiro do Paço. A ideia de uma capital flutuante seduzia-me, dava sentido ao Portugal das caravelas.
Hoje, quando vejo imagens das cheias do Nabão, sinto uma leve frustração. Nos anos 70, as cheias do Nabão, se comparadas com as do Tejo, eram insignificantes: invadiam duas ruas, ameaçavam um outro café... mas nunca me impediram de cumprir a rotina diária: percorrer 30 Km (ida e volta); abrir o guarda-chuva na sala de aula; assistir às aulas com uma sensação de déjà vu; ler o Diário de Lisboa no café Central(?); pedir as obras de Jean-Paul Sartre na Biblioteca local... para me poder aproximar um pouco de Paris e perceber que o Sena parisiense me causaria náusea.
Hoje não vi nem o Tejo nem o Nabão, vi imagens do Nabão e do Tejo, o que não é a mesma coisa: a sucessão de imagens instantâneas destrói a força da corrente que os meus olhos procuram e, sobretudo, que os meus ouvidos poderiam escutar - e sem essa percepção total, sinto-me desligado do fluxo universal.
Desiludido, continuo sem compreender que haja defensores da construção de barragens que estanquem os caudais... que imobilizem as águas. Se conhecessem os rios, não lhes ocupavam os leitos, deixavam-nos acordar suavemente, deixavam-nos correr orgulhosamente para o grande Oceano.
PS: Já naquele tempo tinha a sensação de que a Literatura maltratava os rios. Eram demasiado românticos, faltava-lhes corrente... à excepção do riacho de Bernardim, tumultuoso, que arrastava a indefesa ave para um mar sem fim... E vou ficar por aqui, porque, em mim, começam a jorrar arroios subterrâneos...