23.1.07

A minha contingência...

Desde cedo que tudo me parece contingente. Esta palavra sempre me fascinou, não que ela, em si, deslumbre. A razão não é estética: uma palavra com quatro sílabas surdas é quase tão pesada como eu. E, apesar de tudo o que se diz, eu prefiro a sonoridade da insustentável leveza do ser...
A contingência agrada-me porque me obriga a olhar para dentro das ténues linhas que separam a certeza da incerteza. E eu, desde que penso nisso, não consigo encontrar nenhuma explicação para os caminhos que percorri... tudo me soa a aleatório, a decisão esquiva...
Falta-me uma explicação plausível, lógica, ancorada numa certeza...
O meu ser vem da milenar heresia, incapaz de conviver com qualquer ortodoxia, e só ouve as palavras soltas da voz.
Se a memória estivesse por perto talvez me exigisse algum exemplo... mas ele há tantos maus exemplos que prefiro abster-me de os referir. E de que serve um exemplo no reino da contingência?

18.1.07

Um dia atípico...

Estragon - On trouve toujours quelque chose , hein, Didi, pour nous donner l'impression d'exister?
Esperei todo o dia por uma porta que não chegou. Está dois meses atrasada. Habitualmente, nestas situações, relembro o título de Samuel Beckett, En attendant Godot. De acordo com o carpinteiro, é incompreensível que a porta ainda não tenha regressado, porque, na arrumação em que se encontra, ela já incomoda, e, em casa, parece fazer falta. - Não, passa de amanhã - garantiu o carpinteiro. No entanto, não estou convencido, eu que pensava tê-la visto passar em direcção ao aeroporto da Portela, facto / ilusão que não me surpreendeu, pois, às 8 da manhã, recebera a informação inopinada e espontânea de que, depois de passar pelo aeroporto, a porta seria devolvida às dobradiças que, chorosas, a aguardam pacientemente...
Entretanto, enquanto (des)esperava pela porta, assisti e, de certo modo, participei, pondo em risco o esqueleto na substituição de uma cozinha... Mas, também, aqui, tudo está atrasado e, principalmente, desajustado. As medidas nunca correspondem. E, portanto, vai ser necessário improvisar... Apesar de tudo, neste caso, o carpinteiro, ainda novo, parece ser competente... Vamos lá ver se tem os conhecimentos necessários à resolução dos problemas criados por uma incompetente agrimensora...
Começo a resvalar num terreno escorregadio, aquele em que uns tantos - muitos - substituiram com naturalidade os conhecimentos pelas competências, mudando do paradigma da incerteza para o da estupidez...
Voltando à atipia, este meu dia foi ainda atravessado por «mastros» alarmistas que me deixam à espera de Godot para que ele me explique por que motivo é tudo tão lento, tão desafinado e negligente. Apenas o maldito romeiro vai cumprindo a promessa de voltar vivo ou morto, ainda que a horas tardias, para além de que hoje o Camões não me telefonou: « Um momento, é do Camões, vou passar a chamada...»

14.1.07

A minha torre do tombo...

The Straight Story (1999) de David Lynch, que voltei a ver, ontem, no Ciclo Como o Cinema era Belo da F. C. Gulbenkian, é um belo filme sobre a teimosia e a persistência de um velho de 73 anos, fragilizado pela osteoporose, que decide reconciliar-se com o irmão Lyle, igualmente velho e doente, a viver a mais de 500 km de distância - entre Lauren no Iowa e Mount Zion no Wisconsin.
Alvin, quase cego e a precisar de uma anca nova, amparado a duas bengalas, sem carta de condução e com pouco dinheiro, decide adaptar o seu velho e ferrugento corta-relva transformando-o numa "mobile-home", e fazer-se à estrada para espanto dos seus incrédulos vizinhos.
A viagem, a 5 Km/hora, naquela impossivel caranguejola, dá-nos momentos de ternura e bondade inesquecíveis e mosta-nos uma paisagem de searas ígneas deslumbrantes - o fogo purificador!
Apesar da inverosimilhança de algumas cenas, David Lynch inicia-nos na superação da fraqueza, do acessório e do medo. Prepara-nos para a morte apaziguante...
Para mim, esta revisitação do filme não deixa de ser perturbante, pois da primeira vez que vira o filme sei, hoje, que a força da emoção sentida me obrigara a escondê-la bem fundo, num recanto para onde atiro as emoções que me perturbam a razão.

12.1.07

Herdeiros da abulia e do ópio...

Diz-me o João Goes que um dia terei de lhe explicar o que escrevo. Tudo lhe parece "filosofia". Não sei se ele tem em grande conta a filosofia. Parece-me que não. Ou, talvez, a filosofia encerre para ele um mundo misterioso a que só os iniciados ou, melhor, os lunáticos têm acesso.
O João não é caso único. Já não é apenas a filosofia que enfastia, é a escrita - toda e qualquer escrita. Textos que ainda há pouco tempo não ofereciam dificuldade de interpretação são hoje objecto de rejeição geral, a começar pelos "programadores" do m.e., assim mesmo com letra minúscula.
Os poucos textos que sobreviveram, nas escolas, ao revisionismo dos últimos 30 anos foram expulsos da diacronia, pairam no firmamento escolar quais estrelas cadentes. E os alunos olham para eles como se de uma muralha se tratasse - opacos, intransponíveis. Lê-los cansa.
Tal como cansa contemplar, meditar, descrever, comentar. Aparentemente só a acção deslumbra. Mas por pouco tempo. Herdeiros da abulia e do ópio, preferimos fingir que compreendemos.
Num tempo em que predominam a velocidade e o ruído, ficar sentado a ouvir, a dialogar ou a escrever contraria as leis da física moderna.
PS: Ainda não será desta que o João vai ficar satisfeito com a minha explicação da inteligibilidade das palavras e das coisas.

8.1.07

Continuo sem subir ao cimo do monte Sinai...

O Último Papa (2004), de David Osborn Um romance que mostra de forma clara a intriga que corrói o Vaticano. Com a morte de Gregório XVIII, um papa humilde e amado pelos fiéis, os cardeais reunem nas caves secretas da Basílica para eleger o sucessor. A luta que se gera entre os candidatos coloca face a face o cardeal Mancini, italiano, manipulador da intriga cardinalícia, bem acolitado por figuras dúbias e menores, e o cardeal americano Ignatius Heriot, atormentado pelo desejo, pelo ciúme e pela raiva e, sobretudo, por sonhos e pesadelos que o tornam “culpado” de um crime que ignora, apesar de tudo fazer para descobrir a sua origem. Em pleno conclave, Ignatius, combate a calúnia recorrendo ao argumento de que a maioria dos presentes, a começar por ele próprio, são verdadeiros Judas e, que, consciente da sua traição, se propõe, caso sejo eleito, reformar a igreja católica de acordo com os “heréticos” ensinamentos do Padre John Zacharias, cuja palavra reformista começou a atrair centenas de milhares de disciplos nos Estados Unidos. Um romance de intriga, a que não faltam os temas tradicionais: homossexualidade; pedofilia; prostituição; corrupção. E lá se encontram também a Madalena (Francesca) e a Virgem ( a Irmã Jessica), sem descurar a secular questão do celibato, para além da cada vez menos consistente infalibilidade papal. Um romance que retrata uma Igreja Católica ensimesmada, longe da miséria em que lançara as suas raízes. Para David Osborn, a salvação dessa Igreja está nas mãos de Ignatius Heriot, Gregório XIX. Sintomaticamente, hoje, na Polónia, o novo arcebispo de Varsóvia, pressionado pelo Vaticano, pediu a demissão por, alegadamente, ter colaborado com a antiga polícia secreta comunista. Mas quem sou eu para julgar a Igreja? A mesma igreja que em tempos me aconselhou a clarificar as minhas dúvidas sobre a consistência dos argumentos que ela diariamente me apresentava. Ainda, hoje, continuo sem subir ao cimo do monte Sinai …

6.1.07

E mesmo assim...

Assim até mim chegam vozes que pertenceram a corpos tantas vezes nomeados (...) Gastão Cruz De mim partem vozes de corpos tantas vezes ignorados Já só partem vozes E mesmo assim ecoam por mim vozes distantes

3.1.07

A crise da personagem...

Construir uma personagem poderia ser uma tarefa nobilitante, pois pressupõe que se olhe em redor e que se seleccione um conjunto de traços verosímeis, tanto físicos como de carácter. Com esses traços, poderíamos construir uma figura mais ou menos emblemática.
No entanto, para que a construção da personagem resulte não basta olhar, é preciso saber escutar. E, aqui, coloca-se o maior problema: o que fazer com o que escutamos? Se optarmos pela "reprodução das vozes", a personagem torna-se medíocre, reles, pois as "palavras" para além de pobres são cada vez mais ignóbeis, retratando uma sociedade decadente, alheada das grandes questões colectivas...
Desde o realismo que a tendência para que a personagem decalque o carácter se vem acentuando, gerando mimeticamente um homem cada vez mais desumanizado e, concomitantemente, pondo em causa a força educativa da personagem.
A personagem deveria ajudar o homem a melhorar a sua linguagem, o seu comportamento; a personagem deveria ajudá-lo a superar as suas fraquezas... a construir a cidade dos «homens bons».
Mas não, hoje preferimos a caricatura, preferimos o coro das harpias... e onde há coro dificilmente há democracia!