31.7.07

Quando o vigário pode mais …

Nas sociedades democráticas, o exercício do poder está a ganhar músculo… Basta pensarmos na quantidade de homens e mulheres que cultivam a nobre actividade da musculação…

Ao mesmo tempo que a legitimidade do poder executivo se esgota em meses, a 'sociedade democrática' vai definhando. Cientes dessa fatalidade, os executivos rodeiam-se de uma nova inteligência, defensora de medidas draconianas, apresentadas majestosamente como redentoras…

Em nome da eficácia, as antigas corporações são varridas e substituídas por novos "corpos" (de titulares e outros!) … O puzzle é sedutor, mas esconde as regras ou deixa-as pingar uma a uma, gerando ansiedade, instalando o desassossego… (Há quem já não saiba se pode ir de férias!)

Atribui-se ao corpo uma cabeça e deixa-se que o estômago se alargue. Quanto ao coração, este volta a ser a sede das atribulações! Tudo bem proporcionado. Mas quando chega a hora da verdade, escondem-se os resultados, não vá alguém considerar-se mais habilitado ou mais competente. E porquê?

Porque a inteligência que nos governa é constituída por vigários que, nas suas dioceses, cultivam o registo autoritário, deixando aos prelados a palavra redentora. E quando um desses vigários se excede, o prelado, em vez de o expulsar do rebanho, protege-o religiosamente da canzoada.

Esta espécie de vigários (de vígaros?) é colocada estrategicamente em todas as repartições porque é ela – a espécie – que zelosamente aperta as rédeas à 'irrequieta sociedade' democrática.

PS: Esta diatribe surge no dia em que aceitei ser provido como titular. Resta-me saber do quê. E continuo sem saber qual é a diferença entre ser titular e "efectivo do quadro de nomeação definitiva". Eu não sei a diferença, mas uns tantos colegas ficaram a saber porque ao não serem providos perderam o rasto ao tempo em que integravam o "QND". Nesta vigariaria nada é definitivo! E estou a referir-me a pessoas com mais de trinta anos de exercício da profissão docente. Alguns começaram a exercê-la antes do 25 de Abril, no crepúsculo do Estado Novo. Tiveram que lidar com a euforia de Abril, vendo-se agora escorraçados… Será castigo? De facto, as medidas que vêm sendo incrementadas mais não são que um castigo por um crime que outros cometeram. O crime dos vígaros deste país.

29.7.07

A canícula

A canícula desfaz-nos

a vertigem e oferece-nos a aprendizagem da lentidão.

Afogueado, estirei o pescoço e vi, lá longe, em lenta cavaqueira, o João Barrento com o Eduardo Prado Coelho.

Compreenderam, ambos, por viagens distintas, que mais vale fugir da vertigem do Sol.

E eu que, desde criança, aborreço o Estio, instalo-me na miudeza das letras, à espera que a canícula cesse… e começo a apreciar a vagueza dos enigmas.

Ultimamente, os enigmas ou, melhor, os dilemas vêm-me sufocando e, eu, irresponsável, não percebia que eles me convidavam a reaprender a lentidão, tal como a canícula que se abate sobre a cidade.

 

24.7.07

Dorme ali, num banco de Jardim… na Praça José Fontana

Há dias, sob um lençol de luz, morto ou vivo, Z dorme indiferente ao ruído da cidade.
- As portadas do Liceu abrem para os pátios interiores, e simétricos na cegueira, esquecemos…
Interrogo-me, entretanto, se não será José Fontana quem, descrente da fraternidade, ali repousa…

Quem quer saber quem foi José Fontana?
Quem quer saber o nome de quem por ali dorme?

Procurar saber foi em tempos um dos objectivos da escola pública!
E, hoje, que valores é que nos orientam, ali, na Praça José Fontana?

20.7.07

Os exames…

Lembram-me os exames de consciência em que o sujeito oculta deliberadamente a sua preguiça, a sua má-fé… Os exames escritos deixaram de testar os conteúdos mais complexos, limitam-se a aspectos marginais e, por isso, os alunos que passaram o ano a estudar são os mais prejudicados, assim como os professores que procuraram cumprir os programas.

Como resolver esta perversão? Criando equipas para a elaboração das provas, independentes da tutela ministerial. Em matéria de avaliação, não há nada mais nefasto que o comissário político.

Essas equipas teriam a função de elaborar as provas de exame, submetendo-se rigorosamente aos objectivos e aos conteúdos dos programas. As equipas de autores e de auditores devem ser constituídas por professores do ciclo de ensino a que as provas dizem respeito. A intervenção de professores do ensino superior – desarticulado dos outros graus – deve ser evitada.

Infelizmente, o caminho tem sido outro: a irresponsabilidade cresce de ano para ano; os dirigentes entendem que "é humano errar" e que as culpas são sempre dos outros… e lá continuam como se ninguém saísse prejudicado…

Há, em Portugal, uma crença muito conveniente: somos todos igualmente capazes, sobretudo se não for preciso fazer um esforço… Procuramos a facilidade e odiamos aqueles que persistem em vencer os obstáculos.

PS: O comissário político está alastrar como alastraram, no passado, os frades e depois os barões. Viva o cacique! Vivam os almirantes!

15.7.07

A propósito de um pedido de desculpa…

Num país com tão pouca vontade de trabalhar, como é possível obter boas classificações em disciplinas que exigem método, disciplina e sacrifício?

Num país em que os poucos que se esforçam se vêem condenados ao desemprego ou, na melhor das hipóteses, a empregos precários e mal remunerados, o que é que podemos dizer aos jovens que se prepararam para os exames, estudando os conteúdos mais árduos, e que acabaram por ver defraudadas as suas expectativas?

A fraude começa no 1º exame e repete-se até ao final da licenciatura. Uma licenciatura que, entretanto, deixa de o ser… é apenas o 1º ciclo de um processo inventado para alimentar clientelas. E essas clientelas são cada vez mais constituídas por políticos analfabetos! Clientelas que distribuem as prebendas e as comendas entre si.

Há anos que os exames não separam o trigo do joio!

E agora ainda inventaram o critério de avaliação que permite aferir da qualidade do trabalho do professor pela comparação entre as classificações atribuídas por si e as dos colegas da mesma escola e, sobretudo, pela comparação com os resultados dos exames finais. Como é possível comparar o trabalhador honesto e responsável com o que vive da fraude?

(Imaginemos que, numa 6ª feira, às 19 horas, necessito de atravessar a Ponte 25 de Abril (?). Parto da Praça de Espanha, três faixas de rodagem – só a central dá acesso à Ponte. Cumpro aplicadamente o código. Só por volta das 20:15, ultrapasso a portagem. Entretanto, à direita e à esquerda, automóveis, autocarros furam, velozes, e gastam menos 30 minutos do que eu a atingir o mesmo destino.) Terá valido a pena ter estudado e aplicado o código da estrada? Em Portugal, não. Para os Ministérios da Educação e do Ensino Superior, também não!

Todos sabemos que a fraude existe em todos os sectores da vida nacional e, na área da educação, ela assume proporções incontornáveis. O polvo deixou de estar escondido e os seus tentáculos, oportunistas e ignorantes, movem-se continuamente asfixiando a presa.

 

9.7.07

Em dívida…

Estou naquela fase em que oiço vozes ininteligíveis capazes de destruir qualquer templo… com ou sem comunhão, esse ritual de disfarçada antropofagia prenunciadora de morte sem ressurreição. Sei, agora, que há anos que não oiço a voz inconformada do Silva Carvalho – uma voz, por vezes, claustrofóbica, mas que procurava o silêncio das paredes para sair daquele corpo pesado e libertar-se em extensas pautas brancas; uma voz capaz de combater o estereótipo com outro estereótipo. Não lhe ouço a voz nem lhe percorro as pautas silenciosas que em vão se me oferecem, como se o compositor não passasse dum excêntrico capaz de percorrer continentes à procura de uma razão outrora perdida…

E fora dessa razão, as pautas libertaram-se das amarras e impõem-me que as percorra, tão sozinho como o Poeta desavindo com a convenção e a tradição do Ocidente:

Que resta do pensamento? Penso que sinto

o poema como se fosse a realidade de onde brotou,

penso que me sinto como se a realidade que sou

não fosse oriunda de nenhuma realidade,

penso que pensar é um mundo à parte do mundo

onde se vive como parte ou partícula

dita tantas vezes insignificante. Que resta

pois de mim quando nenhum rosto sai ou entra

na imagem que de mim se desfaz enquanto perfaço

palavra a palavra, sentido a sentido, o poema?

Ser é não estar, é passar como o tempo passa

sem que a passagem seja presenciada pelo tempo.

É repetir mil vezes a pergunta fatídica

para que a resposta não possa ser figurada.

Silva Carvalho, (29/6/1992) extracto de Os Factos do Pensamento ou a Terrível Figura do Impensável, Crítica das Representações, Brasília Editora, Porto

PS: Talvez pudesse ter optado por escrever um lacónico e-mail! E o Silva Carvalho (não confundir com o Armando), lê-lo-ia pensando: «este gajo não leu nada do que lhe ofereci!» E teria razão, e é pena, porque esta voz acabará por se levantar dum chão que nunca calcou, por escorrer das paredes nocturnas em pleno meio-dia…

 

5.7.07

A dor do olhar…

(O fotógrafo suicida pede desculpa à vida e retira-se para não perder mais paisagens.)

Há quem diga que viajamos para tirar fotografias. De facto, a viagem e a fotografia confundem-se, para mais tarde nos iludirmos.

Da viagem fotografada fica a sensação de perda irremediável, de desencontro fatal, como se a imobilidade pudesse adiar a morte. Ai, o fascínio pela imagem – cristal!

Ora a fotografia imobiliza, toma formas letais sob películas de vitalidade esplendorosa - dos olhos agigantam-se corpos de areia! E das areias elevam-se cinzas vulcânicas.

Lá ao fundo, à volta do coreto, um pouco mais adiante, na tímida alameda, o fotógrafo ignora as paredes de cartão porque quem fixa de frente a morte acaba por cometer suicídio.