6.1.14

A alma constrange-me...

Sempre que numa sala de aula me refiro à "alma", sinto-me constrangido. O rosto fechado dos meus interlocutores interroga-me sobre aquele conceito, como se ele nada lhes dissesse. De imediato, lastimo os poetas que, durante séculos, investiram na alma, chegando ao ponto da dissociar do corpo.

Nos últimos duzentos anos, o corpo ganhou tal relevo que a "alma" se ideologizou. As nações ganharam vida e a "alma" justificava as batalhas, os triunfos e a morte ao serviço da entidade coletiva. A alma lusa alimentava-se da necessidade de um povo triste e miserável recuperar a esfumada grandeza passada.
Os políticos habituaram-se a evocar essa alma coletiva para justificar as suas ambições pessoais, para legitimar visões do mundo desfasadas da realidade, e até fingiram que homens de raiz africana, como Eusébio, homens que no íntimo e no círculo dos amigos desprezavam, eram a expressão genuína da multirracialidade que suportava o império...
Passos Coelho não resistiu à tentação de apresentar Eusébio como "a alma portuguesa". O político, que não serve e ignora o povo, mostrou-se como genuíno herdeiro da austeridade e da cegueira do estado novo. Por seu turno, a presidente da Assembleia da República, ao questionar o custo da eventual trasladação dos restos mortais de Eusébio para o Panteão, mostrou não ser uma digna  representante do povo português.
Estes políticos de rosto fechado nunca compreenderam que há homens que são a luz da humanidade.

5.1.14

Eusébio, mediador cultural

Há algumas pessoas que me emocionam! Poucas, é verdade!
Eusébio sempre me comoveu: quando arrancava para a bola, quando driblava o adversário, quando fuzilava a rede, quando falava de si e dos outros. Nunca se punha em bicos dos pés! 
Homem simples, sem preconceitos, teve que suportar interesses públicos e privados, conseguindo ser um verdadeiro mediador cultural, no sentido que alguns historiadores (Michel Vovelle, Roger Chartier, Robert Muchembled) lhe atribuíram: 
                         
           «Mediador cultural é aquele que assegura passagens entre esferas culturais diferenciadas

E nesse sentido, Eusébio é um mito, e como tal deixa de haver registo do ciclo da vida... Eusébio é emoção pura!

4.1.14

De Negro Vestida, um livro "feliz" com um título triste

Em LER A TRISTEZA escrevi que "os livros do meu país são tristes, todos!» Para contrariar o meu pessimismo, João Paulo Videira escreveu um livro "feliz" com um título triste "DE NEGRO VESTIDA"... 
Agora que concluí a leitura, verifico que o autor revela uma fé inabalável no «poder resiliente do amor», isto é, na capacidade de recuperar de relações de conveniência, de submissão, de corrosão de sentimentos, atribuindo essa competência à mulher que, quando imbuída da vontade de mudança, consegue contaminar todos os que lhe são mais afins, como acontece com Maria de Lurdes e filhos... 
Esta vontade de combater a submissão da mulher resulta  aparentemente de uma consciência traumatizada pela secundarização da mulher-mãe, a doméstica", confinada à função procriadora e, em tudo o resto, desprezada. Até na hora da morte! 
Este romance, ao dar voz à mulher, ajusta contas com o homem. Incapaz de distinguir o sexo do amor, incapaz de respeitar a mãe dos seus filhos. O homem cobridor!
A este homem cobridor é lhe atribuído um instinto predador que só algumas mulheres possuiriam, sem, todavia, o poderem consumar...
Em síntese, este longo romance, 356 páginas, mais 10 do que o Memorial do Convento, por um lado, ajusta contas com o homem machista do estado novo, mas também da revolução dos cravos; por outro lado, surge como uma forma de esperança num tempo de acentuada degradação das relações interpessoais e familiares.
Finalmente, a leitura do intertexto deixa ver o fascínio do autor, do narrador, do contador de histórias, do «maestro das palavras que orquestrou sua sinfonia» pela narrador saramaguiano. Fascínio pela luz e pela sombra, em particular por uma «visão» que, se não vê por dentro, "fala" ao coração...:
«E veem a vida passando por si enquanto passam por ela. E tudo o que veem, sentem nas mãos que levam dadas e recebidas...» 
E para concluir, relembro, de memória provavelmente truncada, Alexandre O'Neill: "Sempre que escrevo um verso, viro-me de costas para o Fernando Pessoa".

A calibrar o conceito de idiota

Osório morreu de desgosto porque, segundo se diz, os filhos morreram cedo. Eu, todavia, não acredito na voz do povo porque, se fosse verdade, eu não teria necessidade de calibrar o conceito de idiota.
Há mesmo idiotas que falam, que se pavoneiam, que fogem às responsabilidades, que fingem ouvir o contrário do que lhes é dito, que, apenas, pensam em figurar na galeria dos notáveis... Lá, no fundo, estes sujeitos só se sentem bem na "família" dos idiotas...
E este idiota, que deseja a morte dos outros e não quer morrer, anseia, muito mais tarde, jazer no jazigo de Osório. 

3.1.14

O idiota de famíla

«O idiota define-se como sendo um sujeito que nunca ultrapassará dois ou três anos de idade mental. Incapaz de prover às suas necessidades, não fala. Os seus sentimentos são rudimentares. A aprendizagem da marcha e da limpeza é, muitas vezes, incompleta.» Michel e Françoise Gauquelin, Dicionário de Psicologia, Verbo 

Hoje surgiu-me por diante um idiota que exigia que a mãe ficasse internada no hospital ou, em alternativa, que o hospital a atirasse para o lixo que ele lá estaria para fotografar a cena.

Como acontece com muitos outros conceitos, esta definição de idiota necessita de ser calibrada, pois há certos idiotas que são asseados, desportistas, eloquentes, vaidosos, imaginativos, insensíveis e egoístas. No entanto, por detrás de tantas qualidades, estes sujeitos não ultrapassam dois ou três anos de idade mental.

Começo a temer que um destes dias não resistirei a esbofetear o primeiro idiota que me saia ao caminho, mas nesse momento perderei a razão.


2.1.14

Osório

Durante duas horas, a narrativa estendeu-se da roda dos enjeitados, apesar da caxemira, às vivendas do tempo em que o Marquês ainda não contemplava o Parque: os quartos eram catorze e desaguavam numa cozinha que dava para um quintal. Desses quartos, havia dois habitados pelo casal que, dormindo em separado, «lá se entendia, só Deus sabe como!»
Ele, Osório, enriqueceu com o negócio dos bordados da Madeira, reservava outro quarto para as fazendas e para os já mencionados que, para meu esclarecimento, faziam parte de todo o enxoval de menina prendada, rica..., o que significa que a arte de comerciante estava no saber lisonjear a mãe da menina. Antes de comerciante, importava ser cavalheiro. Distinto. Daqueles cavalheiros que as mães de família não se importam de convidar para tomar chá! No caso, a gentileza do comerciante era tanta que, por vezes, a bela neta também era convidada...
O resultado do negócio era guardado num enorme cofre em aço que, curiosamente, estava acomodado no quarto da esposa, Mariana. Ao fim do dia, de regresso a casa, Osório dirigia-se ao cofre, começando por observar se o segredo se mantinha intacto. Inevitavelmente, a voz de Osório acordava a esposa de qualquer tarefa que a cozinha lhe impusesse: - Mariana, tu mexeste no cofre!
Osório morreu de desgosto, pois os filhos morreram cedo!
MCG

1.1.14

2014 trouxe um Presidente alinhado



I - Não há uma única imagem, não há um único argumento que evidencie que 2014 possa ser melhor do que 2013? Infelizmente, ainda continua a haver quem acredite que a mudança resulta de um golpe de ilusionismo ou de retórica. 
Isso não apaga, no entanto, a ineficiência dos serviços! Ainda há uma hora, nos Olivais Norte, um infeliz transeunte caído na estrada esperou pelo menos trinta minutos pelo INEM…
Não são só os governantes que não servem! Somos nós todos que não cumprimos e que celebramos a esperança de que o problema se resolva por si próprio… E por isso apostamos na greve dos transportes, na acumulação de lixo, em encerrar a repartição o mais cedo possível, nas drogas, nas manobras perigosas, em tudo o que nos anestesie e, consequentemente, nos destrua…

II - Às 21 horas, o P.R. pôs em causa tudo o que escrevi duas horas antes! Qual porta-voz do Governo, o P.R., em nome de "uma democracia consolidada e estável", veio defender "o compromisso político nacional", chantajeando a oposição e ofendendo todos os que perdem o emprego, todos os que são obrigados a emigrar e todos os que veem os seus direitos aniquilados. De facto, o P.R. de 2014 surge bastante maquilhado, a começar pelas sobrancelhas...