28.2.15

Falsas vítimas

«... a própria vítima deseja activamente o crime de que será vítima para que, como mártir, possa entrar no Paraíso e enviar o criminoso para o Inferno, onde arderá.» Fethi Beslama, La psychanalyse à l'épreuve de L'Islam, Paris, Aubier, 2002

Não é só Caim que deseja a morte, pois Abel participa ativamente nesse desejo, provocando Caim para que este o mate, para que também ele se liberte dos seus pecados. (Slavoj Zizek, Uma Vista de Olhos aos Arquivos do Islão)

É neste jogo que a Humanidade se deixou encerrar ao não ter resolvido o problema das linhagens, nascido da esterilidade de Sarai, esposa de Abraão, e da impulsividade da escrava Agar, que deu à luz Ismael, filho de Abraão.
A fixação nesse longínquo passado continua a assombrar os nossos dias... Ou, pelo menos, é pretexto para justificar, em nome de Alá / Jeová, as ideologias que só aparentemente são rivais, já que a morte de uma traria consigo a morte da outra...  

27.2.15

Tema adiado

Como ser justo poderia ser o tema deste apontamento. 
No entanto, o rei ordenou que se construísse um convento como agradecimento pela gravidez da rainha, e o romancista decide inventar um amor bestial, liberto de qualquer convenção e de qualquer precaução...
O rei, garanhão público, sentia-se humilhado pela esterilidade da austríaca...e esta, afogada em percevejos reais, só ao confessor poderia dizer a verdadeira causa do desconchavo - o que a História estabeleceu, devido ao segredo da confissão, acabou por não transpirar para a história dos fracassos originais... A culpa é do romancista e de mais ninguém!
Quanto a mim, José Saramago foi injusto com a rainha, sempre cercada pelo cunhado, de seu nome Francisco, famoso marialva caçador de marujos...
E acima de tudo, José Saramago foi injusto com o maneta e com a caçadora de almas moribundas que, sem cortesia, se amavam em qualquer esteira ou monte de palha, sem que daí resultasse qualquer prole, a única riqueza dos pobres... E nem se pode acusá-los de não terem construído qualquer engenhoca: ambos trabalharam na construção da passarola, sem esquecer que Baltasar se cansou a empurrar a carreta... E como recompensa, Blimunda esgota-se como peregrina e o maneta apaga-se no fogo da Inquisição... ao lado de «um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva» que tanto deliciavam sua majestade D. João V, o Magnânimo...

Em conclusão, mesmo para escrever este apontamento, em que o tema foi adiado, foi necessário ter, um dia, lido o Memorial do Convento. Por mais que digam o contrário, ser justo exige que se seja capaz de distinguir o leitor do charlatão...

26.2.15

Livres de senhores

«O universalismo de uma sociedade liberal ocidental não reside no facto de os seus valores (direitos humanos, etc.) serem universais no sentido de se aplicarem a TODAS as culturas, mas num sentido muito mais radical: isto é, nessa sociedade os indivíduos relacionam-se consigo próprios como "universais", participam diretamente na dimensão universal, contornando a sua posição social particular.» Slavoj Zizek, O Islão é Charlie?, editora Objetiva, fev. 2015

Quem procura uma sociedade livre de senhores só pode incomodar! 
Uma sociedade feita de indivíduos que se relacionam como "universais" e não como extensões de culturas, subordinadas a valores religiosos ou laicos, é o que parece defender o filósofo esloveno, Slavoj Zizek...

A leitura da última reflexão deste filósofo é da maior atualidade, até pela sua natureza provocatória. Na perspetiva de Slavoj Zizek, a Filosofia não existe para dar respostas, mas sim para fazer as perguntas certas. 

25.2.15

Se pouco mais sou...

Não muito longe, há quem perfure e martele de forma descontinuada! Não digo que tal aconteça todos os dias, mas o batuque tende a ecoar sempre que alguém vem, a título cada vez menos definitivo, instalar-se num dos apartamentos vizinhos.
O Destino assim terá determinado e eu não possa fazer mais do que cumprir... Afinal, de que serve o meu desejo de calma se pouco mais sou do que «pedra na orla do canteiro"!
Impedido de desafiar o Fado, aceito, resigno-me e abdico estoicamente de qualquer gesto mais abrupto.
O problema é que o ruído não chega apenas ao entardecer. A (minha) Sorte dita que, logo pela manhã, eu inicie a via sacra do rumor. Assim é ao longo do dia até que a perfuradora e o martelo, de forma descontinuada, completem o ciclo. E mesmo quando adormeço, os meus sonhos misturam jovens estridentes com o martelar de sirenes apressadas...
Que pena que a Fortuna não tenha determinado que eu seja apenas uma «pedra na orla do canteiro"!

24.2.15

Em política, a semântica é uma batata...

Antes que seja tarde demais:
O facto da Troika ter sido renomeada “as Instituições”, o Memorando ter sido renomeado “Acordo” e os credores terem sido renomeados de “Parceiros” – da mesma forma que baptizando a carne de peixe – não altera a situação anterior.
Não podem mudar o voto do povo Grego nas eleições de 25 de Janeiro."

Manolo Clezos, deputado europeu grego opõe-se à decisão do seu partido - Syriza - de alargar o programa de assistência da zona euro.
Com 94 anos, Manolo já deveria ter aprendido que, em política, a semântica é uma batata e o povo bala para canhão.
E como tal, os Gregos (tal como os Portugueses!) ou comem batata ou servem de balas para canhão!
Que venha o diabo e escolha!
(...)
PS. Os Mexicanos bem tentaram matar os espanhóis dando-lhes a batata (tubérculo venenoso) a comer. Só que os espanhóis, através da cozedura do tubérculo, anularam-lhe o veneno. E assim se quebrou a "lógica" inicial...

23.2.15

No limiar

Antes do limiar, eu conhecera o portal e, em certos dias, apenas o postigo. As palavras podem parecer sinónimas, mas para mim nunca o foram. Cada uma retrata um certo tempo, desde logo perdido. Hoje, portal e postigo mais não são do que memória de espaços distintos, com maior ou menor abertura para o mundo, isto é, a rua... De pouco me serve recordá-los - quem lá habitou já lá não mora...
De momento, vivo no limiar. Por enquanto, porque há momentos tão intensos que temo que a corda parta...
Na verdade, vivemos sempre no limiar, só que o não sabemos.




22.2.15

Meus pensamentos

"São coisas vestindo nadas,
Pós remoinhando nas portas
Das casas abandonadas."
Fernando Pessoa

Ontem, atribui inadvertidamente a Ricardo Reis um poema de Pessoa ortónimo. Diga-se que ninguém protestou, talvez por comiseração... A verdade é que me deixei embalar pela sintaxe!
(...)
Se o Poeta reconhece que o seu pensamento se corporiza apesar da sua nudez, se reconhece que o seu pensamento mais não é do que poeira do deserto, ultimamente, o meu pensamento não para de me trair como se apenas sobrasse um corpo donde ele se quisesse ausentar definitivamente.

E talvez não fosse má ideia!