31.7.15

O Adamastor e a formiga


Pedra disforme, observa o Tejo, mas não enxerga mais as naus. Cercado de arame farpado, como se ainda pudesse incomodar, o Adamastor já só avista a ponte que une e não separa... 
A verdade é que gosto mais das formigas que, indiferentes aos pés que as podem calcar, carregam tudo o que as possa alimentar quando a penúria chegar...
Por perto, as cigarras... até eu, que compreendo a ansiedade do Adamastor, pareço a cigarra popular. 
Na minha aldeia, havia formigas e cigarras, porém nunca encontrei o Adamastor dos Oceanos... apesar de não faltarem por lá uns tantos colossos...

30.7.15

2066 - Parte I

2066 - Um círculo crítico em torno da obra fingida de um autor fictício - Benno Von Archimboldi... Estudiosos de uma obra inexistente criam uma biografia fingida, embora suportada por um passado nazi que levou muitos dos criminosos a mudarem de vida e a refugiarem-se bem longe da Alemanha, de preferência na América Latina.
Absurdo destino de quatro personagens mistificadores que, por entre amores sórdidos e comportamentos xenófobos e até homicidas, conseguem nas academias literárias de França, Inglaterra, Itália, Espanha e México, protagonismo e privilégios que lhes permitem viajar  e participar em conferências, colóquios, simpósios internacionais, sempre em torno de Archimboldi...
Roberto Bolaño faz assim uma crítica arrasadora da academia europeia que vive completamente afastada da realidade. 
(Parte I - 192 páginas).

29.7.15

O sapateiro

Passada a palmeira, 50 metros à direita, entrava-se num largo informe. Ao fundo, uma casa de um único piso acolhia a família do sapateiro. Era lá que o meu pai me levava para que aquele me fizesse um par de sapatos...O espaço era acanhado - pouco sobrava para além das alfaias necessária ao ofício. Do sapateiro, esqueci as feições, apenas deduzo que seria de estatura mediana, mas recordo o papel almaço que ele usava para tirar as medidas ao meu pé tosco e maltratado pelas pedras do caminho... e recordo os pregos, a sola, a cera, a sovela, as broxas e as ferraduras. Que isto de calçar o homem em pouco diferia de ferrar as cavalgaduras!

Um par de sapatos era coisa rara, acontecimento domingueiro e duradoiro... E não passou ainda assim tanto tempo!

(Agora, leio 2666, A Parte dos Críticos, de Roberto Bolaño... e ainda não encontrei nenhum sapateiro, só remendões...)

28.7.15

A pasteleira

Agora que a palmeira feneceu, recordo a pasteleira do pai do meu amigo de infância - uma enorme bicicleta cuja função era transportar as caixas de petinga, carapau, chicharro, sardinha e outros peixes de maior porte e mais carotes... Não me lembro de alguma vez ter falado com o peixeiro, apesar de ser colega de escola do filho, e de termos, por mais de uma vez, organizado umas corridas de bicicleta que davam connosco debaixo de uma figueira: calças rotas e joelhos destroçados. Uma história que, inevitavelmente, acabava mal para ambos - a correria começava sempre sob o olhar da indiferente palmeira...
O mais estranho nesta memória é que relembro o caminho, a palmeira e a pasteleira, sem esquecer a figueira, mas perdi o rasto ao meu amigo de infância. Desde que conclui a "primária", nunca mais o voltei a ver. 
E o mais grave é que esta situação de perder os amigos se vem repetindo desde que a aldeia foi ficando para trás... 
Talvez seja por isso que os amigos se tornaram em "conhecidos" e, ultimamente, em "desconhecidos", ao contrário da palmeira, da pasteleira...

27.7.15

Pedaço de caminho

(A memória principal data de 15.08.2012)

Para chegar à casa, M. tinha que passar pela palmeira.
Daquela palmeira avistava-se sobre o lado direito uma casa térrea. Donde é que aquela palmeira teria saído, se não se vislumbrava nenhum palmar entre vinhas, olivais e figueirais? Saía de casa e logo os olhos se fixavam naquela inesperada presença. Aquela fixação, ao contrário do que seria de esperar, não fazia sonhar. Era uma presença muda que ajudava a delimitar o caminho de pedra maltratada e que, quando as chuvas desabavam, assistia à transformação da rua em rio de lama. Para além da pedra e da lama, erguia-se, majestosa, a palmeira. Ainda, hoje, por lá continua…
Aquele pedaço de caminho que separava a casa da palmeira foi durante dez anos a aldeia de M.
Para lá da palmeira, a rua estava assombrada: havia cabras nocturnas que devoravam os parcos canteiros de flores, havia cães que latiam sem parar e, sobretudo, havia a violência das palavras grosseiras que fendiam os tímpanos de M. Essas palavras ainda hoje ecoam na mente de M. Talvez se possa admitir que ainda o assombram.

De facto não são só as palavras que ecoam… há também gritos. E em particular, tosses ininterruptas que atravessam o tempo e se repetem…
(...)
Apesar da memória, nem tudo pode ser dito. E de que serviria?

(...)

Última hora: a palmeira já só vive na minha memória e, agora, sei que um pedaço de mim ficou pelo caminho...

26.7.15

A enxaqueca

O dia é de enxaqueca, sempre que o calor aperta. Ao contrário da maioria da população, fujo do sol como o diabo da cruz... E a história já é antiga!
Remonta ao tempo em que, nos meses de agosto e de setembro, me via obrigado a colher figos e uvas, sem esquecer que, feita a colheita, era necessário cuidar dos tabuleiros em que estes frutos eram postos a secar: figo seco e passa de uva.

A enxaqueca poderia ter, assim, origem numa fobia, mas a verdade é que, ainda hoje, quando apanho sol, a dor de cabeça desponta, sobretudo do lado direito...

Com isto, talvez tenha encontrado a explicação para a indisposição que a direita me provoca, particularmente, quando representada por homens tão inteligentes como Cavaco Silva, Passos Coelho, Paulo Portas e respectivos acólitos...

                   "É hora de os portugueses dizerem à oposição que ela não é precisa."

                                (Pedro Passos Coelho discursou na Madeira, na festa do Chão da Lagoa.)
  


25.7.15

Quando deixamos morrer uma língua

«Nous ne pouvons savoir!- Nous sommes accablés
D'un manteau d'ignorance et d'étroites chimères!
Singes d'hommes tombés de la vulve des mères,
Notre pâle raison nous cache l'infini!
Nous voulons regarder: Le doute nous punit!
Le doute, morne oiseau, nous frappe de son aile,
- Et l'horizon s'enfuit d'une fuite eternelle!...»

Arthur Rimbaud, Soleil et Chair ( excerto)

Em tempo de certezas, sinto-me de tal modo ignorante que só a poesia me traz algum sossego, porque, afinal, o Poeta confina o seu ofício à expressão dos limites da razão humana e à valorização da dúvida, apesar do desapontamento que ela nos pode trazer... 

Além disso só,  na bigorna do Poeta, as palavras encontram o ritmo capaz de exprimir tudo o que ignoramos: Et l'horizon s'enfuit d'une fuite eternelle!

Aqui chegado, deixo de querer traduzir os versos, porque a beleza plasmada numa língua não é traduzível.
Quando deixamos morrer uma língua, deitamos fora a beleza de uma comunidade.