24.10.15

Sim, queria trabalhar! Mas aonde?!

«Sim, queria trabalhar! Mas aonde?!... Estava cansado de procurar, de pedir, e ninguém lhe arranjava nada, nem mesmo mísero emprego público. Bem se importavam que seu pai tivesse morrido em África, lutando pela Pátria, ou que ele mostrasse os seus papéis de jovem combatente!...
Sim, ele desejava trabalhar! Mas como se não encontrava trabalho?! E nisto tinha razão o pobre moço. Afinal, ele outros jovens da sua idade expiavam consequências duma situação que não haviam criado. Sem preparação prática para a vida, sem responsabilidades na crise, sem haverem partilhado do regabofe, eram lançados num inglório destino. Constituíam essa geração de sacrifício que engrossava a vaga de miséria que rolava pelo mundo, atroando às portas das cidades seu clamor de justiça - famintos de pão e de alegria, chorando, numa raiva sagrada, a desdita da sua inútil mocidade...»  Julião Quintinha, Novela Africana, 1933.

Este excerto, deliberadamente descontextualizado, até porque integra o capítulo Como se faz um colonial, surge aqui para provar que a atual situação nada tem de inédito e, sobretudo, que a eventual mudança política só terá sucesso se conseguir acabar com o regabofe e criar condições para que o trabalho não falte a ninguém.

23.10.15

As ilusões do Presidente

«Minha imparcialidade se torna mais fácil para mim na medida em que conheço muito pouco a respeito dessas coisas. Sei que apenas uma delas é certa: é que os juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões.» Sigmund Freud, O Mal-Estar na Civilização, pág.111, Imago editora, Rio de Janeiro.

O Presidente da República argumenta como se conhecesse os caminhos da felicidade que o País deve trilhar, independentemente dos desejos de uma parte significativa do povo. 
Os indivíduos que constituem essa parte da população não contam, como acontece com todos aqueles que não votaram ou os que vivem na precariedade, sem esquecer os condenados a emigrar...
A leitura que o Presidente faz do voto popular não é muito diferente daquela que era feita pelos Reis, desde a perda do Brasil, ou pelos Presidentes da República que o antecederam: os indivíduos devem sacrificar os seus desejos de felicidade (mesmo se ilusórios) à felicidade da Pátria.
Uma Pátria madrasta!

A verdade é que este Presidente sempre foi um "Velho do Restelo" que, depois de ter desmantelado as frágeis forças produtivas do País, se vem dedicando a admoestar os cidadãos, sem se dar ao trabalho de lançar qualquer semente à terra por mais árida que ela possa ser.

Por mim, vou me habituar a viver sem Presidente. É esse o meu desejo mais profundo: ser capaz de viver sem Presidente da República.


22.10.15

Se entronizamos a mediocridade...

«Se entronizamos a mediocridade, que nada tem de áureo, como esperar que os autênticos padrões de valor sejam reconhecidos e respeitados? Ao elevarmos tudo ao nível da consagração, não estaremos antes nivelando... por baixo?» José Rodrigues Miguéis, O Espelho Poliédrico, Aforismos  & Venenos de Aparício (IV), pág. 313, Estúdios Cor, 1972.

Em 1972, José Rodrigues Miguéis, escritor mal-amado, talvez pela sua vertente 'estrangeirada' ou, simplesmente, por desleixe e ignorância de quem "gere" a cultura portuguesa, insurgia-se contra a mania da entronização da mediocridade.
(Por uma razão que desconheço sempre valorizámos a 'mediania dourada' / 'aurea mediocritas'.)

Felizmente para ele que se ausentou deste reino onde existem tantos tronos que deixámos de saber quem nos desgoverna!
No essencial, o anonimato de J.R. Miguéis é fruto da mesma preguiça atávica que leva, por exemplo, os "bons alunos" a ignorar a exigência de apresentação, a tempo e horas, de um rascunho orçamental às instâncias europeias.
Em princípio, o 'bom aluno' deveria ser aplicado, responsável e cumpridor...

21.10.15

O discurso indireto não é fiável

«O discurso indireto não é fiável.»
Este pequeno enunciado tem vindo a assombrar-me, de tal modo que decidi contextualizá-lo. Em primeiro lugar, descobri que a autora de tal ideia é a lexicógrafa e semióloga francesa Josette Rey-Debove (1929-2005).

Na obra Le Métalangage, Armand Colin, 1997, Josette Rey-Debove considera o discurso indireto como infiel, pouco verdadeiro, desorientador, incapaz de dar a conhecer o que foi dito, função que só pode ser assegurada pelo discurso direto. E acrescenta ainda que o discurso directo não passa de uma 'tradução' e coloca todos os problemas ligados à significação da enunciação, à sua interpretação, à sua reformulação (contração e amplificação). 

No tempo em que a opinião é construída pelo comentador, convém não esquecer que os enunciados deste são pouco fiáveis, porque, afinal, mais não são do que traduções / traições de uma voz que não sabemos o que é que efetivamente terá pensado / dito.

Na comunicação como na acção, o melhor é não deixarmos as palavras por mãos alheias...

20.10.15

O narcisismo das pequenas diferenças

«Não é fácil aos homens abandonar a satisfação (...) da inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis.» Sigmund Freud, O Mal-Estar na Civilização, pág. 71, Imago.

A expressão "narcisismo das pequenas diferenças" é de Freud, e hoje vou utilizá-la para significar o que se passa na vida política portuguesa. 
Um pouco por toda a parte se fala de impasse, de falta de acordo total, ou até de displicência na abordagem da questão central: quem vai constituir um governo de legislatura capaz de nos fazer sair da austeridade em que mergulhámos... 
Olhando para o discurso dos protagonistas destes dias, para o tom agressivo que salta das suas palavras, percebemos que eles se sentem confortáveis com as escolhas que os respetivos espelhos lhes devolvem. 
Lembram, no entanto, o imperador chinês que decidiu medir de alto a baixo a China, tendo para o efeito mobilizado toda a população, sem perceber que o resultado final seria a morte do seu povo, já que não sobrava ninguém para produzir o que quer que fosse...

19.10.15

Passos e Costa recriam o paradoxo de Orwell

«Nós não nos contentamos com uma obediência negativa, nem mesmo com a mais abjecta submissão. Quando, finalmente, se dirigirem a nós, deve ser pela sua própria vontade.» Nota de rodapé 127, in A Condição Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard.

Passos e Costa digladiam-se com um único objetivo: a submissão voluntária do adversário. Pouco importa que o povo português saia prejudicado...
E a prova de que a estratégia é de terror é que não procuram qualquer consenso, entendido este como etapa fundamental para que possa ser constituído um governo que sirva globalmente os portugueses...
Se a regra do diálogo passasse pelo consenso não atirariam para a praça pública dezenas de propostas para depois virem dizer que as propostas não são sérias...

De nada serve acusar Costa ou Passos, porque, na verdade, ambos estão interessados em deitar o adversário ao tapete, esperando que o derrotado se sente voluntariamente à mesa e teça loas ao vencedor.

Estes jogadores merecem cartão vermelho!

18.10.15

Renegados

«Depuis plus de vingt ans, je traque les mêmes crapules! On dit qu'il n'y a que les imbéciles qui ne changent pas... peut-être... mais ce sont les renégats qui le prétendent!» Siné, Massacre, Livre de Poche, 1973.

Não é que eu siga com muita atenção os jogos políticos, começo, no entanto, a ouvir falar de deputados, designadamente do Partido Socialista, que se preparam para votar favoravelmente o programa e o orçamento da Coligação. Na sua perspetiva, mantêm-se fiéis ao ideário socialista, mas, como diria Siné, não sendo imbecis... vão passar à História como renegados.