31.1.16

António Lobo Antunes, sempre...

I - «Nunca esquecerei o início da minha carreira literária. Foi súbito, instantâneo, fulminante. Vinha eu de eléctrico para Benfica, depois de mais uma educativa tarde no Liceu Camões, espécie de campo de concentração aterrorizador e inútil, quando por alturas do Calhariz, uma evidência surpreendente me cegou: vou ser escritor. Eu tinha doze anos...»  António Lobo Antunes, Retrato do artista quando jovem - II, in Segundo Livro de Crónicas, pág. 137, Dom Quixote.

...Estávamos, assim, em 1954, sendo reitor do Liceu, Joaquim Sérvulo Correia (1950-1974)...

II - «Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para ser lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma
          parece-me
     de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença.» António Lobo Antunes, Receita para me lerem, in Segundo Livro de Crónicas, pág. 109, Dom Quixote.

... Será por isso que, para mim, a leitura de António Lobo Antunes é aberta; pelo contrário, a leitura da obra de Saramago é fechada, o que perspetiva ao primeiro uma eternidade mais radiosa do que ao segundo.

III - «A minha estrada de Damasco ocorreu há cerca de dez anos, diante de um aparelho de televisão onde um ornitólogo inglês explicava o canto dos pássaros. Tornava-o não sei quantas vezes mais lento, decompunha-o e provava, comparando com obras de Haendel e Mozart, a sua estrutura sinfónica. No fim do programa eu tinha compreendido o que devia fazer: utilizar as personagens como os diversos instrumentos de uma orquestra e transformar o romance numa partitura.»António Lobo Antunes, De Deus como apreciador de Jazz, in Segundo Livro de Crónicas, pág. 131, Dom Quixote.

Ultimamente, leio os livros sem os anotar e sublinhar, o que, terminada a leitura, se revela uma grande chatice. Se quero fazer um apontamento, vejo-me obrigado a folhear o livro; no entanto, a vista raramente acerta, o que significa reler, tomar nota e voltar ao princípio. Para quem está de fora, isto só pode significar que me falta o método. Mas não, o que me acontece é o mesmo que ao hipocondríaco que foge a sete pés da saúde. Estar de saúde é estar morto! 

30.1.16

Talvez não seja picuinhice

«A ironia é o humor dos depressivos.»José Gameiro
 http://www.tsf.pt/programa/terra-a-terra/emissao/gouveia--vergilio-ferreira-5007298.html

Pouco tenho a dizer, a não ser que, enquanto leio António Lobo Antunes, vou escutando a emissão do programa Terra a Terra, dedicado a Vergílio Ferreira (TSF).
Pressinto que as minhas palavras não passam de picuinhices, mas gostaria de recusar a ideia de que Vergílio Ferreira tivesse sido «um mestre sem discípulos».
Num tempo de ortodoxias, Vergílio Ferreira era um professor heterodoxo que respeitava a pessoa do aluno, que o sabia ouvir, mas que recusava ser cúmplice de qualquer tipo de propaganda e detestava a mediocridade.
De qualquer modo, talvez não seja picuinhice ouvir quem o lê e quem o conheceu...

29.1.16

Apoquentado

´Apoquentar´ é uma daquelas palavras a que me habituei na infância. A minha mãe explicava o comportamento do meu pai, dizendo que ele andava apoquentado com a vida... Eu entendia que o céu não lhe sorria e por isso não me surpreendi quando um dia o vi partir para França, depois do granizo lhe ter destruído as vinhas.
O salto para França não lhe alterou o feitio, embora eu deixasse de ouvir falar da sua apoquentação. Por essa altura, quem andava apoquentado era eu, pois não compreendia o sentido da minha vida, apesar de me garantirem que o sentido da vida era servir...  
Durante anos, só esporadicamente ouvi conjugar o verbo 'apoquentar', e sempre na boca dos que serviam, sem receberem a devida compensação... 
Dir-se-ia que o termo 'apoquentar' só existia na boca da gente vulgar. Os poderosos desconheciam-no por inteiro, porque eles não se deixavam incomodar por miudezas...
De súbito, oiço o primeiro-ministro dizer que não está 'apoquentado' com as exigências da União Europeia - as divergências mais não são que miudezas!
Eu entendo o poderoso primeiro-ministro a quem o céu não tem faltado. Só que não consigo deixar de estar apoquentado... E parece-me que neste país há mais gente que vive apoquentada.

28.1.16

A solidão de Vergílio Ferreira

"A unidade do homem, centrada na consciência, desfaz-se à reflexão de que essa consciência é apenas «uma rede de comunicação entre os homens» e assim um homem solitário pode dispensá-la.! Vergílio Ferreira, Espaço Invisível 2, pág. 124, Bertrand editora, 1991

O homem solitário deste tempo deixou de ver reconhecida a consciência que lhe dava unidade, porque o conceito mudou de substância. Vergílio Ferreira, cada vez menos lido, não pode influenciar nem o estar nem o pensar, porque, afinal, o homem abdicou da consciência individual...
O homem já só existe se alinhado, isto é., se estiver presente nas redes sociais - redes de comunicação - cuja eficácia assenta na imagem fácil e na ideia medíocre.
Deste modo, ao ser molécula da consciência coletiva, o homem desfaz-se da sua possível unidade, deixando de ter valor como pessoa... passa a moeda de mão em mão...
(...) 
Hoje, o homem que optar pela solidão, morre... Vergílio Ferreira nasceu há 100 anos, escreveu uma obra que quis devolver ao homem a sua unidade ( a sua consciência), mas este não a quer mais.

27.1.16

Le Havre e o mundo à nossa volta

No âmbito do projeto "Moving Cinema", fui hoje à Cinemateca com três "alunos emprestados" ver o filme "Le Havre", do finlandês Aki Kausrimaki. 
Até ao momento da partida para a Barata Salgueiro, pensava que os dez alunos que integram a Oficina de Cinema da Escola Secundária de Camões, fossem cinéfilos... só que para meu espanto a maioria não deu notícia. Lá saberão porquê!
A proximidade das instituições permitiu que a deslocação se fizesse a pé e de forma célere. Todavia, na Conde Redondo ocorreu um pequeno incidente: um aluno deu uma cabeçada num semáforo, porque eu, atento ao que se passava no outro passeio, chamei a atenção para uma situação caricata. Um jovem, que descia a rua, chocou com uma corda de prumos sinalizadores de obra, deitando-os abaixo, sem revelar qualquer preocupação em os recolocar na posição correta. Entretanto, o mestre de obras, que saía do prédio em renovação, ficou estupefacto ao aperceber-se do que acabara de acontecer, sem, no entanto, perceber quem fora o responsável...
Desenlace: "o aluno emprestado" chocou com o semáforo sem lhe fazer qualquer mossa, facto que causou o gáudio de uns tantos africanos estacionados numa esquina.
(...)
A sala Félix Ribeiro estava cheia de petizes de origens diversas, mas alguns pareciam ter alguma dificuldade em compreender que o silêncio é condição necessária ao bom visionamento de um filme. Por outro lado, outros jovens, predominantemente de origem africana, revelavam uma apreensão muito interessante das situações, sem esquecer aqueles que conseguiam recordar o filme do ano anterior. 
(...)
Estas últimas reticências são a expressão de um intervalo gasto para entrega de uma caixa de música ao pai de uma criança de quatro anos que gosta de música, mas ainda não ouviu falar do topónimo Havre.
(...)
Ora os "alunos emprestados" também não sabiam que "Le Havre" é um porto francês - a pergunta surgiu a meio da Conde Redondo, ainda antes do semáforo... o que me fez lembrar o tempo em que nas aulas de Francês ensinava a geografia, a economia, a cultura de França, sem descurar a História, por exemplo, da ocupação alemã e da resistência...
Talvez por essa razão, o filme "Le Havre" recrie a situação dos emigrantes clandestinos e dos refugiados neste início do século XXI, mas com ecos comportamentais e icónicos do tempo da proliferação dos "campos de concentração" e do modo como as populações davam, ou não, proteção a quem era perseguido ou se via obrigado a fugir...
... Só que o desconhecimento dos lugares e dos tempos acaba por limitar a compreensão de obras cinematográficas, como a de Kaurismaki. Preferimos acreditar que as nossas "leituras" são capazes de dar conta do que, entretanto, vai acontecendo na "Jungle" europeia... 

26.1.16

Os calotes da campanha eleitoral

Em matéria de despesas da campanha eleitoral, sete candidatos não têm direito a qualquer subvenção estatal.
O Vitorino revelou-se senhor de muito tino, pois não terá gasto um cêntimo. O Edgar, apesar de não ser "engraçadinho", o Partido paga-lhe as despesas. O Morais, senhor de enorme moralidade, decidiu recorrer ao amigos do "face" para que estes lhe paguem a extravagância. O Neto já não tem idade para se queixar. Do Ferreira, não sei o que diga, mas terá património suficiente... O Jorge pouco mais terá gasto que uma ou duas avenças. E quanto à Maria Roseira, são rosas meu senhor... os seiscentos mil euros que terá gasto... Nem nunca D. Dinis chegou a saber! Porém, desterrou a rainha Isabel para Alenquer. Neste caso, desconfio que a quinta de Sintra acabará por mudar de mãos...

Quanto aos restantes, ratos de cidade, calaram-se bem calados, não vá o trovador tratá-los como, outrora, João Garcia de Guilhade fez a Dom Foam:


Dom Foam disse que partir queria
quanto lhi derom e o que havia.
E dixi-lh'eu, que o bem conhocia:
  "Castanhas eixidas, e velhas per souto".

E disso-m'el, quando falava migo:
- Ajudar quero senhor e amigo.
E dixi-lh'eu: - Ess'é o verv'antigo:
       "Castanhas saídas, e velhas per souto".

E disso-m'el: - Estender quer'eu mão
e quer'andar já custos'e loução.
E dixi-lh'eu: - Esso, ai Dom Foão:
       "Castanhas saídas, e velhas per souto".

25.1.16

Ao entardecer

Tudo começa acelerar, o frio alterna com o calor, o suor invisível entranha-se na pele depois de um longo banho catártico. 
Os santos de ontem caem em desgraça, e a salvação passa a estar do outro lado do telefone - qualquer resposta, que diga sim à imediatez, serve...
Ao entardecer, os argumentos perderam qualquer força. Só o silêncio e a obediência...
(...)
E quando os dias são de chuva, mesmo que a temperatura suba, tudo acelera ainda mais... e depois há o vento, quente ou frio, um demónio à solta...
(...)
Espero que ninguém pense que estou a referir-me ao "entardecer" de Cesário Verde. Há, de qualquer modo, a soturnidade da vida eivada de loucura, por vezes, pouco benigna.