7.2.16

Inverno

A furgoneta estaciona em segunda fila, encobrindo o automóvel cuja porta à força de ranger me convenceu a oleá-la, socorrendo-me de um lubrificante multi-usos, no qual deposito mais fé do que na classe política... Diz a embalagem que «lubrifica e penetra, remove ferrugem e limpa metais, repele humidade do sistema eléctrico». Por um momento, chego a pensar que talvez pudesse aplicar este produto a mim próprio...
Enquanto cumpro a tarefa, procuro o dono da furgoneta e vejo-o do outro lado do muro a abrir e  a fechar contentores de lixo, sem que nada retire do interior - ato mecânico e aparentemente inútil. Entretanto, decido descer a rua, aproveitando para caminhar um pouco mais, apesar do cansaço das pernas e da leveza estomacal... 
A rua e as seguintes, quase vazias, deixam o vento à solta, afastando os mascarados da quadra, sem impedir que a natureza troque as voltas às estações: as aráceas (os jarros) florescem verticais, à sombra das sebes que cercam os prédios de doze andares que predominam na localidade, sem esquecer os cogumelos que se escondem nos troncos e nas redondezas das árvores.
Avanço no labirinto e verifico que, na quinta do Seminário, os trabalhadores «guardam o dia do Senhor», obrigando o bispo a pernoitar noutros aposentos - confesso que nunca por aqui vi o bispo do Senhor; ele é ainda mais raro do que os agentes de autoridade... Descubro, todavia, a furgoneta, desta vez bem estacionada, e no seu interior não um, mas dois respigadores de papel - o que é curioso é que hoje não é dia de recolha de papel... Mas eles sabem-no certamente!
E para terminar, que não a caminhada, vislumbro um placard NÃO DEIXE QUE O SEU CÃO SUJE OS NOSSOS JARDINS! Acabara de ver um a sujar a calçada... Contudo, o que me veio à cabeça foi NÃO DEIXE QUE OS POLÍTICOS SUJEM A SUA CONSCIÊNCIA!
Por exemplo, não deixe que, num tempo de decisões políticas precárias, o convençam a consumir mais, sobretudo, produtos importados, e com recurso ao crédito... 

6.2.16

O dinheiro quanto mais circula

«O dinheiro, quanto mais circula, mais quem não o tem vive de esperanças.» Italo Calvino, Marcovaldo (no Supermercado)...
Marcovaldo foi publicado, primeiro em 1958 e depois em 1963. É um romance realista fantástico, cujo autor deve ter inspirado muito escritor que anda por aí como inventor do realismo fantástico, mágico, animista...
Muitas das histórias que integram esta obra bem podiam integrar o «corpus» de leituras das nossas escolas, pois ajudariam a educar a sensibilidade.
(...)
Em 2016, quem não tem dinheiro não é ninguém. Talvez seja por isso que a maioria dos crimes tem como causa primeira o dinheiro. Os próprios governos, para se legitimarem, passaram a gerir as expectativas da população, prometendo-lhe, a qualquer custo, o vil metal... E aqueles, que deixaram de confiar na governação, recorrem a todos os expedientes para se apropriarem do eldorado, mesmo que por uns tempos possam ser alvo da atenção da justiça e dos cobiçosos. 

5.2.16

'Os animais docentes' e o escritor emplumado

No Saldanha Residence, em Lisboa, há uma livraria que coloca à venda livros a preço reduzido. Quase todos os dias por lá passo e observo a oferta, variada e, por vezes, de qualidade... Embora isto da qualidade seja subjetivo, como o prova o José Rodrigues dos Santos que se considera o melhor escritor português da atualidade...
Hoje, decidi comprar por três euros, o livro Entre Pássaro e Anjo, de João de Melo. Trata-se de uma colectânea de 10 contos, de que destaco, desde já "Os animais docentes"... 
Num ápice, li o conto, não só pelo registo autobiográfico, mas porque ele espelha fielmente o universo dos docentes e dos discentes da província portuguesa nos anos 70 e 80 - um mundo fechado, hierarquizado, preconceituoso e distante dos ventos que sopravam da Europa... De certo modo, este conto fez-me lembrar as viagens de camioneta para Mafra, por entre vendedores e aves de capoeira, sem esquecer a guerrilha local entre o PSD e o PCP, isto nos anos 70... Sintra chegou depois, mas já se sentiam os ares da capital, apesar das desconfianças e das suspeições. 
(...) Seja como for, não consigo compreender que ninguém diga, de viva voz, ao JRS que ele não é o Eça, nem o António Lobo Antunes, nem o Mário Cláudio, nem o Mário de Carvalho, nem o João de Melo, nem a Lídia Jorge, nem o João Tordo e outros tão vivos como ele, mas que não colocam a RTP ao seu serviço...
Um destes dias, o próprio candidata-se ao prémio Nobel da Literatura!

4.2.16

Noutras circunstâncias...

Às 14 horas, abro a porta da sala 19, e espero....
Vinte minutos mais tarde, chegam as 'assistentes' que depositam sobre as mesas a parafernália de filmagem. 
A formadora chega às 15h30 e, de imediato, manifesta a sua estranheza face às ausências... Ainda pergunta se alguém tem o número de telefone de K, X ou Y...
Os aprendizes (ou será aprendentes?) entram um a um, e só por volta das 15 horas é que se pode considerar que metade do grupo está presente, faltando precisamente os que têm o trabalho mais atrasado.
Entretanto, surge uma candidata que quer fazer parte da oficina, mas que acaba por confessar que às 15h15 tem aula... A formadora dissuade-a, apelando ao sentimento de frustração - afinal, a candidata, apenas estaria presente num período morto... Um pouco a despropósito chegou uma outra jovem que vinha pedir autorização para divulgar a existência desta oficina de cinema, com base na experiência adquirida, durante três anos, na Escola Marquesa de Alorna...
Finalmente, às 15h 30, os presentes saíram para fazer "planos" do Sol em torno da ESCamões. Mal aqueles saíram, chegaram  mais dois jovens que disseram desejar integrar o 'grupo'... e lá foram a correr atrás dos primeiros...

A falta de pontualidade e de explicação para a ausência têm  sido uma constante. De qualquer modo, hoje, quero crer que a publicação no JL da reportagem Aprender (com o) cinema, da autoria de Catarina Letria, terá tido influência nestas vontades serôdias de integrar a Oficina de Cinema...

(Enquanto eles se debatem com a luz, eu vou me debatendo com o relato da ocorrência que, noutras circunstâncias, designaria de 'incidente crítico'. Às 15h55, continuo à espera, embora, de momento, tudo pareça correr normalmente. Resta acrescentar que K, X e Y ainda não deram sinal de vida.)

3.2.16

Esboço de país

Embora de forma forçada, podemos 'apagar o quadro' e 'apagar a luz', mas não podemos apagar as contas por pagar. Em princípio, porque há quem esqueça completamente os calotes e nos faça pagar por conta...

Por outro lado, há ' artigos´ publicados e outros por publicar, mas, convém saber que artigos queremos comprar, quando entramos na loja, na mercearia ou no supermercado, caso contrário saímos de lá depenados. A novidade dos últimos anos é que, quando consultamos a Gramática, os  'artigos' foram secundarizados pelos determinantes...

Também há várias maneiras de fazer caldo verde, mas o que conta é o paladar do freguês...

De momento, nada mais tenho a acrescentar a não ser que nas farmácias há quem goste de inquirir o cliente sobre o destino do medicamento e os modos de o tomar, e quem se limite a vender o artigo, não se sentindo minimamente responsável se o doente acabar por se apagar...

Finalmente, sinto-me frustrado porque ainda não sei se o esboço de orçamento já agrada à comissão europeia e aos partidos da coligação, embora creia que já não somos mais do que um esboço de país, pronto a apagar-se ou a ser apagado...

E eu estou em consonância ( ou como diria um sabido, em ´conivência') com o estado da nação...

2.2.16

Meias de vidro

Ainda não acordara, e já, de forma repetida, tinha a sensação de que o carro fora roubado da garagem. Interdito, nem punha a hipótese de que não o parqueara na garagem. Apenas uma sensação de estranheza: Quem é que se ia dar ao trabalho de arrombar dois portões? 
A obsessão onírica só cessou quando a antena dois irrompeu no quarto com uma daquelas melodias que costumam deliciar quem se arrasta no tempo... 
Não se sabe se Freud teria alguma coisa a dizer sobre o sentido do roubo e do derrube dos portões. Provavelmente, falaria de uma pulsão sexual recalcada, ou, então, de um aviso: - se te roubarem o carro, não te queixes, pois preferes deixá-lo estacionado na rua a guardá-lo na garagem...
(...) 
As meias de vidro enrolaram-se de tal modo nos suportes do estendal da roupa que ele viu-se obrigado a subir ao parapeito da janela para as salvar. A acção foi demorada e não sem riscos: a janela de vidros duplos não abria completamente, o banco de plástico deu de si, desequilibrando o serviçal, a vassoura perdera a magia dos contos de antanho...
(...)
Pelo meio, uma atrapalhada e tímida aluna, proveniente do Brasil, que colocava a hipótese de trocar a Literatura Portuguesa pela Filosofia, na esperança de que esta última fosse mais acessível. Talvez, tenha confundido a parte com o todo, isto é, que a Literatura Portuguesa continue a ser escrita no português medievo, anterior a Pedro Álvares Cabral...
(...)
Finalmente, os meteorologistas do ar condicionado insistem em anunciar a chegada da Primavera, porque não necessitaram de salvar umas meias de vidro enfunadas pela nortada que ensandece os estendais...

1.2.16

Houve tempo em que comprava livros...

Houve tempo em que comprava livros, jornais e revistas. Fui deixando de os comprar à medida que tive que começar  a contar os tostões para pagar as dívidas alheias, sem esquecer a luz, o aquecimento e as comunicações... O que me não me impede de entrar em livrarias e percorrer-lhe os escaparates e as prateleiras, minuciosamente.
Ainda agora venho da Almedina (Atrium, Saldanha), impressionado com a profusão e o volume dos livros, mas revoltado porque não consegui vislumbrar a obra do amigo Silva Carvalho, autor.
Sim, do autor! Porque, para mim, um autor é quem é capaz de compor, de criar de dentro das palavras, e não, apenas, quem reproduz a realidade por demais sabida ou desinteressante...
Nas nossas livrarias, só é exposto quem está na ribalta, quem é flácido ou defunto recente.
(..)
E a propósito de autor, ando um pouco abalado com os cogumelos urbanos do Italo Calvino. Parece que, em Itália, os cogumelos germinam na Primavera... Aqui, em Lisboa e arredores, é fácil encontrá-los no Inverno, e não consta que deem origem a qualquer intoxicação alimentar, com direito a lavagem ao estômago... Sempre que os revejo, acastanhados ou esbranquiçados, estão destroçados, talvez porque nas cidades portuguesas não haja pobres. Só energúmenos!