3.9.07

Setembro, ao postigo…

O ano lectivo começa mal: no regresso, os professores fazem fila para preencher manualmente impressos que irão ocupar, durante horas, um ou dois funcionários que zelosamente introduzirão os dados em programas informáticos estanques. Lembra aqueles cronistas que sempre que lhes cabia narrar a história dos seus "senhores" recuavam a Adão e Eva… Afinal, para que servem os milhares de computadores espalhados por todo o país? Por outro lado, o próprio preenchimento dos formulários parece exigir um manual de instruções… Será, assim, tão difícil a um licenciado preencher o NIF, o NIB, o nº da ADSE, confirmar a morada, declarar se de um ano para o outro há alterações?

E quanto ao resto, o indizível…

Numas escolas, a actividade lectiva começa a 10 noutras a 17, dando expressão à autonomia organizativa de que usufruem. Os professores e os candidatos a professores manifestam-se um pouco por todo o país contra a ausência de emprego. Os responsáveis governativos descartam responsabilidades: a culpa é da reduzida taxa de natalidade, do abandono escolar precoce.

No entanto, parece estranho que um país que gasta milhões de euros com o envio de militares para os Balcãs, para o Líbano, para o Afeganistão, para Timor, não consiga traçar uma política de cooperação, por exemplo, com Angola ou com Moçambique que dê escoamento aos milhares de jovens (e não só) que, terminado o curso superior se encontram à deriva e à mercê de um patronato sem escrúpulos, sobrecarregando as famílias, já de si cada vez mais pobres. É estranho que este país não aposte na formação linguística dos milhões de emigrantes que se encontram espalhados um pouco por todo o mundo, como se a promoção escolar pudesse ser um obstáculo ao bom desempenho laboral do típico emigrante português: pau-para-toda-a-obra.

Qualquer sociedade que seja incapaz de gerar trabalho abre as portas à delinquência, à violência e, consequentemente, entra num processo de aniquilamento.

Ainda nem todas as portas estão fechadas, no entanto é preciso pensar a política de outro modo. A acção política deve dirigir-se à totalidade, alicerçar-se nas portas que o passado abriu e perspectivar-se em termos de futuro e não apenas de presente.

 

 

2.9.07

Em Setembro…

Sétimo mês do calendário romano. Para mim, há muito que Setembro é o primeiro…

Mais uma vez, volto à escola na expectativa de encontrar jovens sedentos de saber ou que, pelo menos, eu seja capaz de os motivar. Sei que alguns têm objectivos definidos e que procuram alcançá-los a qualquer preço. Sei, também, que muitos outros vêem na escola um tempo imposto e inútil e, por isso, cedo mostram o seu desinteresse, de forma passiva ou activa: os mais activos são os mais inconformados e rapidamente se tornam indisciplinados. (Diria que a indisciplina, ao contrário do que muitos pensam, é gerada pela própria escola, pelo próprio sistema educativo. No limite, todos os sistemas procuram disciplinar, normalizar, fazer obedecer, e, para o efeito, geram normas que convidam ao desvio, à delinquência.) Sei, ainda, que são raros os que se apresentam disponíveis para aprender sem exigir contrapartidas.

Neste contexto, confesso que me sinto cansado, pois, pela 33ª vez, o sistema me convida a fazer de conta que é possível modificar a heterogeneidade de atitudes sem alterar minimamente os objectivos, os programas, as técnicas de avaliação; convida-me a fingir que se eu for um "bom" professor, qualquer insucesso volverá sucesso; convida-me a aceitar que o fracasso dos meus alunos é o meu fracasso. Todavia, ao normalizar-me, o sistema convida-me à indisciplina (ou à desistência?) …

E quando chega Setembro, sinto que os muros se elevam e começo a ouvir, cada vez mais perto, o poema de Fernando Pessoa:

 

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

 

Um mar onde bóiam lentos

Fragmentos de um mar de além…

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

13.09.1933

 

31.8.07

A propósito do Dr. Vasco de Campos

Rita Campos

   

Muito obrigado pelo esclarecimento. A sua explicação sobre a génese e os objectivos da SPDA é oportuna e valiosa, pois muitos dos actos do ser humano devem ser vistos numa perspectiva altruísta e não apenas ideológica, no sentido restrito do termo.

Sou lisboeta de passagem: raros são os pinheiros que sobrevivem na capital e da "caruma" quase que já não há rasto.

   

29.8.07

As contas de Alberto de Lacerda (1928-2007)

A REDE

O que eu sustento, o que eu não invento, o que eu prometo,

o que as palavras e as praias perpetuam

na alegria verde do amor,

devolve-me as estradas e o princípio,

o alegre princípio!

 

A fauna dilacerada refugiada no verso,

o silêncio de pedra das horas perdidas,

deixam outra vez aquela distância

onde encontro o palácio dos meus sete anos

e as portas monumentais ultrapassadas

só pela infância mortal duma beleza mortal

como Londres à tarde nos finais de Novembro.

 

O que sustento, o que eu descubro e não invento,

o que eu repito exaltadíssimo,

lembra às vezes a rede potente

que se desfaz, só na aparência,

para os que esperam duma forma errada,

para os que nunca se sentaram no meio da estrada,

para os que nunca sorriem por acaso,

e não se destroem num ritual preciso

igual às vozes puras da meia noite do mar.

 

O que eu sustento, o que eu não invento, o que eu prometo

é a alegria límpida das lisas

planícies de certas visões insuportáveis de luz.

O que eu prometo é o que eu vi, testemunha e nada mais.

Eu canto o que existiu e existirá, glória suprema

Dos deuses e não minha.

                Londres, 11-1-54

 

(O poema é de Alberto Lacerda; os sublinhados são meus)

 

Nem Ideia, nem Luz nem Ideal

nem Compromisso nem Infância

a Pátria é uma quimera

a Vida uma ilusão.

O que eu prometo é o que eu vi, testemunha e nada mais.

    

 

26.8.07

As estantes brancas e vazias

Ocupavam quase todas as divisões do duplex da Ferreira Lapa.

Uma mesa branca recusava abandonar o centro de um gabinete de leitura. Não se sabe como entrou, se foi construída ali. Era impossível fazê-la passar pela porta. Mesmo desmontá-la revelou-se uma tarefa insuportável.

Nas estantes jaziam ainda alguns pacotes de livros enviados pelas editoras, sobretudo, francesas.

Aquele espaço, um pouco kafkiano, exigia ao ocupante algumas capacidades circenses.

EPC, vítima de doença extremamente debilitante, mudara-se. Mas "o personagem" ficara. Sei que ainda voltou para recuperar o correio. Subiu lenta e teimosamente até ao 3º andar. E quando lhe abriram a porta, só pediu uma cadeira para descansar daquela ousadia. E lá esteve a explicar, entusiasmado, a sua vida, os seus livros, como se aquela fosse a última vez…

E era. As estantes, essas, vão ficar brancas e vazias…

 

 

24.8.07

A lei...

A lei de Deus (do soberano, do príncipe) é despótica, mas há quem diga que é amor!

A norma é dor! não quer saber do amor.

Ultimamente, perdemos a noção da diferença: a norma vestiu a pele da lei. Novas leis convidam-nos diariamente a engrossar o campo da delinquência. A lei gera o espectro da ilegalidade, aumenta a desigualdade.

E sob o rosto do legislador, espreita o amor do soberano que nos esconde que «é mais prudente reconhecer que a lei é feita para alguns e se aplica a outros (…); que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um dos seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem.» Michel Foucault, Vigiar e Punir, 1977

E por outro lado, tal como Foucault receava, os juízes demitem-se cada vez mais de julgar, e a comunicação social (?) não hesita em apropriar-se do espectáculo da investigação, vulgarizando-a até que a prova se dilua no cepticismo dos espectadores…

22.8.07

Vasco de Campos

A D. Isabel, minha hospedeira, deu dois murros na porta do meu quarto, e gritou para dentro:
«Estão ali a chamá-lo para ir assistir a um parto, na Serra».
Levanto-me estremunhado, visto-me à pressa, e espreito por uma fresta da janela.
Amanhecia.
E dum céu cinzento e calmo, peneirava-se uma chuva miudinha, de molha parvos.
Abro a porta da rua.
Um recoveiro com um macho albardado seguro pela arreata, elucida-me:
— «É para ir tirar uma criança à Ti Maria Farrapeira, lá na Serra...».
Há quanto tempo está em trabalho de parto? Inquiri.
«Trabalho... Trabalho... Há quinze dias que não faz nada. Desde que lhe deram as dores».
Assim se inicia o livro "SERRA! Caminhos de um médico" de Vasco de Campos, ed. Moura Pinto
Sobre este médico (e escritor) nada sabia até chegar à Ponte das Três Entradas. (Como não gosto de pontas soltas, aqui deixo algum trabalho de férias.)Ao olhar para uma placa, na entrada do camping, percebi que o homem se revia no pequeno Alva, que por ali fluía. Entretanto, ao deslocar-me a Avô, verifiquei que o Centro Cultural, também, tinha como patrono Vasco de Campos. Por outro lado descobri que o município de Oliveira do Hospital não só lhe atribuiu e requalificou uma praça na sede do concelho, como lá lhe colocou, em 2006, o busto.
(… Entretanto, vou pensando no exemplo da Escola Secundária de Oliveira do Hospital a cuja BIBLIOTECA ESCOLAR foi dado o nome de Dr. VASCO De CAMPOS… e naquelas escolas por onde passaram e se formaram tantos ilustres escritores, embora alguns tenham dificuldade em aceitá-lo... E não entendo a amplitude do anonimato…)
E não me sai da cabeça aquele taxista que me explicou que, noutros tempos, quando o médico Vasco de Campos residia em Avô ou, mais tarde, na Ponte das Três Entradas, ele era uma figura insubstituível naqueles vales e montes, sobretudo nos invernos rigorosos, cavalgando o macho para acudir a um parto, a uma pneumonia, a uma tuberculose, indiferente à riqueza ou à pobreza do paciente. E que muitas vezes para além de nada cobrar ainda mandava pagar a conta na farmácia. No entanto, o tom utilizado pelo taxista ao referir “noutros tempos” lançou-me numa obscura reflexão sobre a relação do médico com a comunidade local… Apesar de se adivinhar na voz do taxista a gratidão de quem também beneficiara do zelo do médico, via-se que algo o preocupava, como se o imobilismo local também fosse da responsabilidade do ilustre médico, poeta e pioneiro agrónomo e turístico.
(Num outro registo, ia ouvindo, na rádio que, em Agosto, em Pedrógão Grande, só havia um médico de serviço.)
PS: A minha obscura reflexão desanuviou-se um pouco quando li o seguinte: A Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô (SDPA) está a comemorar as bodas de ouro. Fundada oficialmente no primeiro dia de Maio de 1957 pelo médico e escritor Vasco de Campos. Parece, no entanto, que a Sociedade de Defesa e Propaganda de Avô evoluiu pois “neste meio século de existência a SDPA tem-se vindo a revelar como a principal alavanca do desenvolvimento da vila de Avô, sobretudo nos domínios da cultura e da acção social. Impulsionadora do Centro Cultural Vasco de Campos, em 19 de Junho de 1993, a SDPA – uma instituição de utilidade pública - tem-se concentrado ultimamente na área da acção social. Em 2004 inaugurou um lar de idosos na antiga e histórica vila, hoje frequentado por cerca de 40 utentes. Presidida pelo presidente da Junta de Freguesia local, Aristides Gonçalves, a SDPA possui ainda um ATL, frequentado por 26 crianças, e é a entidade gestora da ilha fluvial do Picoto – um dos mais belos espaços de veraneio do concelho de Oliveira do Hospital. A instituição, que é hoje o maior empregador local, prepara-se agora para construir o primeiro Lar de Acamados do concelho. Trata-se de um investimento de cerca de um milhão de euros – com capacidade para 22 utentes – que a SDPA espera inaugurar num espaço de dois anos. O novo edifício, com uma área de cerca de 800 metros quadrados, será um prolongamento do actual lar, passando a serem comuns os serviços aos utentes. Presente na cerimónia dos 50 anos da instituição avoense, o presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, Mário Alves, comprometeu-se a apoiar o novo desígnio da SDPA, pois conforme considerou a SDPA "tem estado na primeira linha da cultura e acção social no concelho".
A descoberta desta SDP lança-me outro desafio: quantas SDP terão sido criadas durante o Estado Novo? E Onde? E o que é feito dessas “sociedades”?