27.2.23

Uma sensação de desnorte

 

(Foto da Praça da Figueira. É pena que assim a tenham baptizado, pois anteriormente era conhecida como Praça da Erva, topónimo bem mais adequado aos dias de hoje...)

De vez em quando, atravesso a Baixa lisboeta e fico, sempre, com a mesma sensação: quase deserta, frequentada por turistas com pouco dinheiro e por vendedores de boteco ou de rua que esperam que os ajudem a salvar o dia, sem esquecer os que por ali preguiçam à espera nem eles sabem do quê.
E claro, há sempre obras erráticas. Não se vislumbra nenhum plano de intervenção global no espaço pombalino. Cada empreendedor intervém a seu belo prazer, indiferente ao passado e ao futuro daquele território. 
Fico, sempre, com a sensação de que o 'coração' da cidade está doente e que, aos poucos, vai definhando.
Apetece-me apontar o dedo ao  jurisconsulto João das Regras, dizendo-lhe que ele é o culpado desta pasmaceira, pois, ao legitimar a fundação da dinastia de Avis, alterou, de forma irremediável, o curso da História. No entanto, quem o conheceu diz que o homem era muito inteligente. Pelo menos, Fernão Lopes soube tomar partido da sua argumentação...  D. João I  soube recompensá-lo principescamente, tal como fez com Nuno Álvares. 
Não podia ser de outro modo! Ontem como hoje! 
Os professores, esses, podem esperar...

23.2.23

Do arrependimento

Passado o Carnaval, pensar-se-ia que o arrependimento começaria a imperar. Mas nada disso!
Não encontro notícia de alguém que se arrependa do que quer que seja. 
A litigação é uma forma de vida... 
Mesmo que o morto fique impedido de prolongar as disputas, os sobrevivos criam novos litígios, sempre à espreita do benefício...
Por isso o melhor é esquecer, de vez, a penitência...

21.2.23

Sobre o Carnaval

 

«A Igreja Católica inventou o Carnaval de três dias, seguido da Quaresma, para dar cabo d'As Maias demasiado primaveris e libertinas...»

Perante práticas pré-cristãs, a Igreja Católica promoveu alterações que permitissem ligar o período carnavalesco com a Quaresma. Uma prática penitencial preparatória da Páscoa, com jejum, começou a definir-se a partir de meados do século II; por volta do século IV, o período quaresmal caracterizava-se como tempo de penitência e renovação interior para toda a Igreja, por meio do jejum e da abstinência. Tertuliano, São Cipriano, São Clemente de Alexandria e o Papa Inocêncio II contestaram fortemente o carnaval, mas no ano 590 a Igreja Católica aprova que se realizem festejos que consistiam em desfiles e espectáculos de carácter cómico. No séc. XV, o Papa Paulo II contribuiu para a evolução do Carnaval, imprimindo uma mudança estética ao introduzir o baile de máscaras, quando permitiu que, em frente ao seu palácio, se realizasse o carnaval romano, com corridas de cavalos, carros alegóricos, corridas de corcundas, lançamento de ovos, água e farinha e outras manifestações populares. Sobre a origem da palavra carnaval não há unanimidade entre os estudiosos, mas as hipóteses “carne vale” (adeus carne) ou de “carne levamen” (supressão da carne) remetem para o início do período da Quaresma. A própria designação de entrudo, ainda muito utilizada, vem do latim ‘introitus’ e apresenta o significado de dar entrada, começo, em relação a um novo tempo litúrgico. Os católicos de todo o mundo começam na quarta-feira a viver o tempo da Quaresma, com a celebração das Cinzas, que são impostas sobre a sua cabeça durante a Missa.

17.2.23

À lereia

(Brasil) Lereia: conversa inútil, estéril, oca, sem nenhum resultado prático; conversa fiada, conversa mole; léria

Dando seguimento ao conceito, transcrevo o seguinte pedaço de prosa (ou naco, se preferirem) de João Guimarães Rosa, Primeiras estórias:

«À lereia, aquilo, que não se entendendo por carecido ou útil, antes talvez achassem em tudo ação de desconcernência, ar na cachimônia, tolice quase, a impura perfunctura.»

Dizem-me que o livro é extraordinário e eu, que nada compreendo do que se passa neste planeta, começo a pensar que é verdade. 
Desligo a televisão, o portátil, silencio o telemóvel, tento sossegar a gata, enganando-a com antecipação do jantar, o que significa que assim janta duas vezes, e sento-me a ler as Primeiras estórias. Faço-o demoradamente, procurando a sequência direta das palavras, interrogando-me sobre a minha ignorância lexical ou, em alternativa, sobre a arte combinatória de João Guimarães Rosa. 
E curiosamente, se nada compreendo do que se passa no planeta, pouco entendo da estória que me é ofertada, o que me faz pensar nos tempos de incompreensão em que o corpo e o sangue de cristo se elevavam perante os meus olhos como promessa de comunhão redentora...
Há, no entanto, na estória NADA E A NOSSA CONDIÇÃO, uma frase cujo o significado não me é indiferente:

«- Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos- e - baixos? Não haverá para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?» E ele, com muito caso, no devagar da resposta, suave a voz: - «Faz de conta, minha filha... Faz de conta...»

16.2.23

Saber relacionar Eça de Queirós com Cesário Verde

O primeiro é mais velho, vive mais tempo, integra a geração de 70, com passagem obrigatória por Coimbra, mas com a foz no coração de Lisboa e, finalmente, figura, com distinção nos Vencidos da Vida. 
O segundo, nascido em 1855, em Lisboa, vem a falecer 31 anos mais tarde, sem glória pública... De Coimbra nada diz, mas não gosta nem de monárquicos nem de socialistas (?)... Figura nos manuais escolares depois do primeiro, apesar deste, por exemplo, só ter publicado Os Maias em 1888, um ano após a morte do poeta...
Ambos leram Baudelaire, Flaubert, Taine, Proudhon e Zola, isto sem falar dos ultrarromânticos. Num determinado momento, ambos confluíram numa escrita de tipo impressionista, ainda marcada pelo parnasianismo e chegaram mesmo a envolver-se com o simbolismo...
      Pode dizer-se, que sendo homens do seu tempo, não poderiam fugir a um destino comum de influências...
       Sobra-me, no entanto, uma dúvida. E é dúvida porque, num país de tantos escritores, leitores e críticos, já alguém dever ter apresentado uma tese sobre uma questão muito simples: Terá Eça lido Cesário? De forma ainda mais clara: Terá o autor de OS MAIAS lido O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL, de Cesário?
        Haverá algum testemunho desta ocorrência?
        Pessoalmente, estou convencido que, tendo o poema de Cesário sido publicado em 1880, a propósito da celebração do tricentenário de morte de Camões, Eça terá tido acesso ao poema, o terá guardado, pelo menos na memória, e o aproveitou, em particular, na redação do último capítulo de Os MAIAS:
       Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brasões eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Aliança conservava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lajedo; batedores de chapéu à faia fustigavam as pilecas; três varinas de canastra à cabeça, meneavam os quadris fortes e ágeis na plena luz…
       Carlos da Maia e João da Ega percorrem o mesmo espaço urbano do Sentimento..., exprimem, também, eles um sentimento ainda mais desolador e decadente do que Cesário. Sintomaticamente, os pensamentos destas personagens incidem nos mesmos alvos:
      "Duas igrejas, num saudoso largo... / E os sinos dum tanger monástico e devoto / Um épico doutrora ascende, num pilar/ E num cardume negro, hercúleas (...) / correndo com firmeza, assomam as varinas /  (...) Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas."
        Muito eu gostaria de saber se entre os papéis de Eça não haverá um recorte de O Sentimento dum Ocidental! Talvez o professor doutor Carlos Reis me possa esclarecer...

   MCG /autor

12.2.23

Sem pergunta nem resposta

Deixo a Palavra a quem a sofreu

Sou pedra ou movimento? Que serei?

Alguém responderá. Mas quem? Ou quando?

Estou assim entretanto. O meu modo de ser

é todo este não ser possível perguntar e responder

Sou uma enorme dúvida estendida da cabeça aos pés

Nem sei já se nasci ou quando ou se morri

Não sou todo este ser que finalmente de si mesmo se cansou

E abro muitas bocas. Quem à minha volta?

Nunca estive mais perto de ninguém

                                                                    Ruy Belo (1932-1978)

8.2.23

As lembranças


«As lembranças são outras distâncias.» João Guimarães Rosa, Fatalidade.

Tempos houve que quis compreender o 'tempo'. Aos poucos fui percebendo que o escopo era insensato. Por mais que esticasse o fio, ia-lhe perdendo o curso como se a memória me abandonasse...
Afinal, o fio começou cedo a quebrar-se, a toldar-se... Talvez seja por isso que as estórias ainda persistem...
Infelizmente, já não as consigo armar, mas quero assegurar que de tal não retiro qualquer proveito... e também não iludo ninguém.

4.2.23

Crescem em qualquer lugar

 

Crescem em qualquer lugar, indiferentes às ameaças. 
Um destes dias serão arrancadas pela raiz para dar lugar a uma nova urbanização...
A sorte delas depende da preguiça autárquica, embora as mãos já comecem a mover-se na direção dos fundos imobiliários... e estes, sem tempo para deixar crescer as plantas, já começaram a fazer promessas irrecusáveis...
No lugar delas, o parque verde está assegurado com bancos corridos para que os pombos se possam empoleirar... 
E no centro, um palco com púlpito para que todos possamos reclamar.

Nas próximas eleições, os fundos não irão faltar.