Na verdade, o padre Bartolomeu Lourenço inventou o aeróstato, apresentando-o com sucesso, e para estupefação da corte de D. João V, no dia 8 de Agosto de 1709. E essa novidade foi decisiva não só para o desenvolvimento da aeronáutica mas, sobretudo, para a deslocação do ponto de vista na narrativa. ( Seria interessante, analisar o modo como a ciência e a tecnologia servem o projeto de escrita de José Saramago.)
Basta ver como Saramago, consciente do contributo daquele invento, nos faz viajar sobre Portugal no Memorial do Convento, capítulo XIX: «Muito melhor veríamos, e muito mais, se olhássemos de alto, por exemplo, pairando na máquina voadora sobre este lugar de Mafra (…) não há melhor miradouro que este onde estamos, não faríamos ideia da grandeza da obra se o padre Bartolomeu Lourenço não tivesse inventado a passarola». ( E toda a panorâmica aérea nos é dada, como se fosse um grande plano, num único período.)
No essencial, Saramago, ao deslocar da terra para o espaço aéreo o ponto de vista, constrói uma representação da excentricidade e megalomania reais a que o homem coevo da edificação do convento não teve acesso, o que sobrepõe de forma magistral o plano do discurso ao plano da história.
A leitura desta obra pressupõe, assim, o desenvolvimento da competência de análise da ideologia do narrador que, a cada passo, parodia a História oficial, seja do século XVIII seja do século XX.
PS: Se aqui registo estas palavras é porque considero que, nas nossas escolas, a leitura da obra de Saramago está a ser vítima de uma enorme mistificação que acabará por condenar o autor ao esquecimento. É só uma questão de tempo. Veja-se por onde andam Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Agustina Bessa Luís…
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