16.12.06

A paratormona...

Depois da juvenil caça aos gambozinos passei a dedicar-me à descoberta da paratormona. Conheço-a mal, mas os seus efeitos sinto-os bem. Percorre-me o corpo numa voragem intensa e um pouco desorientada... Apesar de tudo, passei a considerá-la - a paratormona - uma nova companheira extremamente exigente: detesta que eu a esqueça, que eu me distraia...
Uma companheira um pouco paradoxal: ao mesmo tempo que ocupa o espaço, absorve-o, criando o vazio...

11.12.06

A encenação espanhola do arrependimento...


É a terceira vez que tento publicar um breve comentário não sobre a Igreja de La Preciosa Sangre, em Cárceres, mas sobre a monumentalidade da arquitectura civil e religiosa na Espanha do passado e do presente. Sempre que percorri o casco de algumas cidades espanholas (Toledo, Madrid, Burgos, Barcelona, Sevilha, Ávila, Segóvia, Cárceres) fiquei com a impressão de que os espanhóis têm uma enorme necessidade de expor a força e a crueldade erigindo fortalezas e catedrais. 
Esta necessidade não é forçosamente do soberano (do estado), é, sobretudo, a afirmação dos "senhores" da conquista - ibérica, europeia ou das américas. Senhores ciosos de afirmarem a sua superioridade perante os vizinhos e que, para efeito, edificam palácios e catedrais lado a lado, transformando o espaço num labirinto de ruas e ruelas, lutando pelos cumes numa clara projeção para os céus… O movimento é sempre ascensional, originando cogumelos de edifícios cuja funcionalidade nos escapa… porque a grandeza, afinal, é simbólica…
Mesmo a associação da grandeza ao poder nem sempre é linear, porque, mais do que expressão de riqueza poderia muito bem tratar-se de uma forma de catarse. Mas não, tudo é encenação, diria pública, não fosse a redundância... O arrependimento da conquista, do sangue derramado, transforma-se em espectáculo em que sangrador e sangrado podem caminhar lado a lado, fugindo ao exame de consciência que a nudez e a elevação das catedrais góticas acabaria por exigir.
Por isso os espanhóis preferem ao despojamento a ostentação, ao isolamento a multidão, à sobriedade a opulência, à linha o volume..., preferem tudo o que os afaste da assunção da responsabilidade, em nome da ocupação do espaço, da encenação do arrependimento...
A encenação da culpa é um sinal dos tempos de que quase todas as cidades espanholas dão testemunho... E paga-se para assistir ao espectáculo!
PS: Os dois anteriores comentários eram bem diferentes destes. Mostravam que o Barroco não foi mais do que o produto de uma contra reforma jesuítica que encenava a morte num retábulo roubado aos ameríndios! Mostrava ainda que o barroco nunca foi português nem brasileiro... era simplesmente a expressão da grandeza espanhola na Europa, contra a Europa da Reforma. Felizmente que estes comentários se perderam! 
MCG

1.12.06

A linearidade do orçamento...

O orçamento é (ou deve ser) linear.
Inicialmente, o orçamento não era mais do que um instrumento de execução de um projecto... No entanto, à medida que fomos ficando sem projecto, o orçamento tornou-se no grande acontecimento legitimador da governação e da oposição.
Governo e oposição sonham com o orçamento para poderem definir as respectivas estratégias de consolidação ou de luta pelo poder, pelo poder de gerir o orçamento de estado, como se o país se reduzisse à captura de receitas e à sua redistribuição pelas clientelas...
Se quisessemos construir um projecto nacional, ibérico, europeu, lusófono deveríamos tornar obrigatória, em todas as escolas, a leitura do(s) orçamento(s). Hoje, para o cidadão comum é tão importante interpretar o orçamento como falar inglês.
As aulas de substituição deveriam ter como único tema: o orçamento - pessoal, familiar, plurifamiliar, autárquico, regional, nacional, ibérico... global.
Afinal, o que é que pode haver de mais importante do que o orçamento? Só em Portugal, gastamos dois meses a debatê-lo, anaforicamente (contributo da TLEBS)...
Por causa do orçamento, em 1955, Max Ophuls (1902-1957) sofreu um enorme rombo: o filme Lola Montès naufragou nos baixios da crítica cinematográfica e de costumes. Nem a beleza de Martine Carol (1920-1967) seduziu os espectadores. A encenação luxuriante da ideia de que na vida tudo é movimento, mas que o carrossel pára quando menos se espera só mais tarde foi entendida por um mundo ávido de protagonismo, que, no entanto apenas valoriza o movimento.
Ora, em 1955, Max Ophuls cometera um pequeno crime: rompera com as narrativas lineares. E o orçamento ressentiu-se...
Hoje, nas nossas escolas, a linearidade poderá dar um corpo a um projecto de idiotia colectiva se apostarmos com mais convicção na leitura do orçamento..., (com a ajuda da TLEBS chegaremos lá...)
Sabe-se, embora ninguém o diga, que a TLEBS foi inventada, não pelo Max Ophuls, mas por um grupo de linguístas que descobriu como viver durante o resto da vida à mesa do orçamento.
PS: o orçamento perdeu a maiúscula que originalmente o anunciava.

24.11.06

A memória dos rios...

Se a memória não me atraiçoa, estudei em Tomar entre 1971 e 1973. Em 71/72, a chuva caía com abundância. Lembro-me porque, para chegar ao Liceu, percorria de madrugada, numa motorizada CASAL, cerca de 15 Km. Invariavelmente, às 8 horas, chegava ao largo da estação de caminho de ferro, onde se situavam os "anexos" do Liceu. E nesses "anexos", a intempérie obrigava-nos frequentemente a abrir os guardas-chuvas. Para mim, não havia nada de extraordinário: essa chuva que caía sobre mim no percurso e na escola era bem vinda. Se há alguma coisa que eu prefiro na natureza é, concerteza, a chuva... mais do que a própria água. A água só me fascina sob a forma de corrente tumultuosa. A água parada dos paúis (pessoanos ou não), dos lagos, do próprio oceano, enerva-me!
Antes de conhecer o Nabão, já conhecia o Tejo. Habituara-me a contemplá-lo das scalabitanas Portas do Sol. No entanto, só o procurava em tempo de cheias, quando banhava os pés da ribeirinha Santa Iria. O caudal alargava-se de tal modo que conseguia visualizá-lo, para lá de Almeirim e de Alpiarça, a subir o desconhecido Terreiro do Paço. A ideia de uma capital flutuante seduzia-me, dava sentido ao Portugal das caravelas.
Hoje, quando vejo imagens das cheias do Nabão, sinto uma leve frustração. Nos anos 70, as cheias do Nabão, se comparadas com as do Tejo, eram insignificantes: invadiam duas ruas, ameaçavam um outro café... mas nunca me impediram de cumprir a rotina diária: percorrer 30 Km (ida e volta); abrir o guarda-chuva na sala de aula; assistir às aulas com uma sensação de déjà vu; ler o Diário de Lisboa no café Central(?); pedir as obras de Jean-Paul Sartre na Biblioteca local... para me poder aproximar um pouco de Paris e perceber que o Sena parisiense me causaria náusea.
Hoje não vi nem o Tejo nem o Nabão, vi imagens do Nabão e do Tejo, o que não é a mesma coisa: a sucessão de imagens instantâneas destrói a força da corrente que os meus olhos procuram e, sobretudo, que os meus ouvidos poderiam escutar - e sem essa percepção total, sinto-me desligado do fluxo universal.
Desiludido, continuo sem compreender que haja defensores da construção de barragens que estanquem os caudais... que imobilizem as águas. Se conhecessem os rios, não lhes ocupavam os leitos, deixavam-nos acordar suavemente, deixavam-nos correr orgulhosamente para o grande Oceano.
PS: Já naquele tempo tinha a sensação de que a Literatura maltratava os rios. Eram demasiado românticos, faltava-lhes corrente... à excepção do riacho de Bernardim, tumultuoso, que arrastava a indefesa ave para um mar sem fim... E vou ficar por aqui, porque, em mim, começam a jorrar arroios subterrâneos...

20.11.06

Um futuro de servidão...

Vi-me, hoje, obrigado a cancelar uma ida ao teatro. Um teste impede que os "meus" alunos possam ver a peça "Galileu", na véspera do dia da "Cultura Científica". Segundo argumentaram, precisam de se deitar cedo. O que pensará o velho Galileu deste bom senso em criaturas tão juvenis?
Sem querer imiscuir-me em assunto tão melindroso, creio, no entanto, que os problemas equacionados por Bertolt Brecht os poderiam ajudar a raciocinar e a compreender que a razão soçobra facilmente perante o fanatismo dogmático - religioso ou escolástico.
Esta forma tão ajuizada de estar anuncia um futuro de servidão.
(...) O exame que começou por ser de consciência, exigindo a autoridade do director espiritual, aferrolha, hoje, o livre arbítrio, decidindo mecanicamente do destino de cada jovem que ousa olhar o futuro... enquanto Galileu fica no sótão a espreitar o movimento dos astros...
(Cancelar uma ida ao teatro é uma actividade que dá sentido ao funcionário que elimina o desperdício...)

18.11.06

As tentações do funcionário...

Vi, hoje, no S. Jorge, Tatana, Portugal, 2005, 12', 35mm, Ficção. Realização: João Ribeiro; Argumento: João Ribeiro, Mia Couto.
Sinopse: Adaptado de um conto tradicional Makonde, esta é a história de uma velha e de seu neto, Sábado, criança de 12 anos que ela educa desde a morte do pai, quando Sábado tinha apenas 3 anos. Graças a um poder oculto, a velha guarda na cabeça os seus familiares mortos que, de quando em quando, saem cá para fora fazendo uma grande festa em jeito de cerimónia. Este facto não pode ser descoberto por pessoas que não sejam da família, pois isso faria com que os mortos não encontrassem o caminho de regresso acabando por ficar ao abandono e provocando a morte da velha.
Uma narrativa pedagógica que visa preservar os laços do presente (do jovem Sábado) com o passado, como se o primeiro se tornasse inviável sem o segundo (os antepassados - dos ancestrais aos mais próximos, como o pai e os tios, residentes no poço do quintal). A família continua a ser no imaginário moçambicano o motor da vida.
E de Moçambique passei à Africa do Sul e vi a Carmen de Bizet, em versão de Mark Dornford-May. (Este realizador já anteriormente filmara O Filho do Homem, mostrando-nos Jesus como um negro revolucionário.) M.D.-M. transpõs a ópera para um bairro de lata da actual República Sul Africana. Filme falado e cantado em xhosa (língua da África Austral falada por aproximadamente 8 milhões de locutores sul africanos).
Este filme vale, sobretudo, pela interpretação musical de Khayelitsha (a Carmen) e pela vitalidade das personagens femininas. Os homens, marialvas e machistas, acabam por desempenhar o papel dos fracos.
Na cena festiva e carnavalesca do abate do boi, cheguei a pensar que a Carmen da Sevilhana tourada, afinal, teria raízes na África austral.
PS: Estou sem perceber por que motivo se encontravam na sala 2 ou 3 turmas de alunos do 2º ciclo. Bateram palmas a despropósito; entraram e saíram da sala; correram.... e os professores, alheados do que que se passava, talvez estivessem a praticar para funcionários nesta tarde de Sábado.

17.11.06

De cidadão a funcionário...

Há uns anos atrás, parecia que ao Estado pouco mais restava do que a recolha de impostos e a sua redistribuição pelas várias clientelas que, entretanto, se tinham formado. A Nação deixara de poder fazer a guerra e, sobretudo, deixara de poder fazer moeda. Alienara as restantes funções, entregando-as a Bruxelas. A Igreja católica cedera o lugar a várias seitas mais ruidosas.
O Bloco Central, mascarado de alternância democrática, ocupava todas as funções de Estado, tornando-se no verdadeiro beneficiário da integração na União Europeia. O clientelismo instalou-se, desarmando a iniciativa, o traballho e a aprendizagem.
Afastaram-se e substituiram-se os quadros técnicos existentes por correias de transmissão dos partidos; as corporações aumentaram as suas regalias, desinteressando-se completamente dos princípios da justiça e da solidariedade; e a vaidade exposta nos mass media tornou-se no critério electivo dos governantes...
Progressivamente, um Estado, que vira reduzidas as suas funções, transformava-se num Estado cuja função principal era distribuir os fundos europeus e, que incapaz de controlar a rapina, acabou por se deixar atolar no compadrio, no nepotismo e no amiguismo.
Hoje, esse mesmo Estado, em nome da reposição de uma mítica e salazarista ordem nas finanças públicas, decidiu que a regeneração das instituições passe a ser feita por decreto de personagens cinzentas, nunca escrutinadas, mas que me fazem recordar os militantes maoístas que, cegamente, seguiam o Grande Timoneiro.
E bem sabemos que para o Grande Timoneiro, só a ruptura pode levar à Revolução cultural. E em nome do Partido, o cidadão deve ceder o lugar ao funcionário eficiente que combata o desperdício.
No que me diz respeito, como, obedientemente, tenho vindo a aderir ao novo conceito de 'funcionário', começo a não ter tempo para reflectir, para ler e para escrever... O discurso instrucional ocupa-me todo o tempo...
E ao escrever cada vez menos neste blog, estou a combater o desperdício...