Estou naquela fase em que oiço vozes ininteligíveis capazes de destruir qualquer templo… com ou sem comunhão, esse ritual de disfarçada antropofagia prenunciadora de morte sem ressurreição. Sei, agora, que há anos que não oiço a voz inconformada do Silva Carvalho – uma voz, por vezes, claustrofóbica, mas que procurava o silêncio das paredes para sair daquele corpo pesado e libertar-se em extensas pautas brancas; uma voz capaz de combater o estereótipo com outro estereótipo. Não lhe ouço a voz nem lhe percorro as pautas silenciosas que em vão se me oferecem, como se o compositor não passasse dum excêntrico capaz de percorrer continentes à procura de uma razão outrora perdida…
E fora dessa razão, as pautas libertaram-se das amarras e impõem-me que as percorra, tão sozinho como o Poeta desavindo com a convenção e a tradição do Ocidente:
Que resta do pensamento? Penso que sinto
o poema como se fosse a realidade de onde brotou,
penso que me sinto como se a realidade que sou
não fosse oriunda de nenhuma realidade,
penso que pensar é um mundo à parte do mundo
onde se vive como parte ou partícula
dita tantas vezes insignificante. Que resta
pois de mim quando nenhum rosto sai ou entra
na imagem que de mim se desfaz enquanto perfaço
palavra a palavra, sentido a sentido, o poema?
Ser é não estar, é passar como o tempo passa
sem que a passagem seja presenciada pelo tempo.
É repetir mil vezes a pergunta fatídica
para que a resposta não possa ser figurada.
Silva Carvalho, (29/6/1992) extracto de Os Factos do Pensamento ou a Terrível Figura do Impensável, Crítica das Representações, Brasília Editora, Porto
PS: Talvez pudesse ter optado por escrever um lacónico e-mail! E o Silva Carvalho (não confundir com o Armando), lê-lo-ia pensando: «este gajo não leu nada do que lhe ofereci!» E teria razão, e é pena, porque esta voz acabará por se levantar dum chão que nunca calcou, por escorrer das paredes nocturnas em pleno meio-dia…