12.8.13

Sem o Anjo que nos afaste da queda...

O Senhor para Mefistófeles: « Todo o homem que caminha pode perder-se.» (Goethe, 1749-1832)
 
Acantonados no espírito da Reforma, habituámo-nos a ver o Senhor como a representação do supremo Bem que combateria perpetuamente o Mal. 
A cada ser competiria, assim, percorrer o caminho da Luz, fugindo permanentemente das Trevas, isto é, evitando perder-se ou evitando qualquer pacto com Mefistófeles. No entanto, na lição de Goethe, o Senhor dá plena liberdade a Mefistófeles para que este possa induzir Fausto em tentação. 
 
Estranhar-se-á este apontamento, mas ele tem uma razão antiga. De todas as vezes que me "cruzei" com o João da Ega n'Os Maias, ficou-me a dúvida sobre o satanismo queirosiano ilustrado pelo Mefistófeles que animava os bailes de máscaras ...
 
E nesse aspeto, o Eça europeu nunca se libertou da imagem do demónio que formatava a alma lusa... 
Eça reduzia tudo à caricatura, tal como nós, hoje, o que nos torna incapazes de caminhar sem o Anjo que nos afaste da queda... 

11.8.13

Inquietação

«A inquietação enfeita-se sempre com máscaras novas: tão depressa é  uma casa, um pátio, como uma mulher ou uma criança, ou ainda o fogo, a água, um punhal, um veneno... Trememos diante de tudo o que não nos atingirá, e choramos incessantemente pelo que não perdemos!» Goethe, Fausto.
 
Eu gostava de subscrever plenamente esta "conclusão" de Fausto, mas a ideia do "ornamento" e da "máscara" faz-me pensar num qualquer desvio histriónico comportamental. Infelizmente, a inquietação tem uma origem menos encenada.
Basta pensar naquele pai que, perante a inevitabilidade da morte, não deixará de se sentir inquieto (atormentado) quanto ao futuro do jovem filho, sobretudo quando a sociedade se revela madrasta.
Basta pensar naqueles a quem a morte não surpreende de forma súbita e que por isso têm tempo para sofrer em silêncio a precariedade da vida dos que lhes são próximos. Quando essa precaridade anda de braço dado com a ingenuidade de uns e a malvadez de outros, a inquietação não desarma e mina as almas e os corpos...
Basta pensar na mentira continuada que nos governa, essa, sim, enfeitada e sempre com novas máscaras, para que o tempo seja desse tipo de inquietação que mata lentamente...
Podemos disfarçar com o sol e a praia, a música e o teatro, o cinema e a ciência, mas na inquietação a música é apenas um tique-taque acelerado, a ciência não traz cura nem pão, a imagem não passa de ilusão, a praia deserta e o sol eclipsa... 

10.8.13

O Ano Sabático (João Tordo)

« Não é tarefa fácil construirmos a nossa própria identidade confiando apenas nas nossas intuições e pressentimentos, mas é também pouca a segurança que poderemos extrair de uma identidade autoconstruída que não seja confirmada por um poder mais forte e mais duradouro do que o seu construtor solitário.» Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada, pág. 278.
 
João Tordo publicou no início deste ano o romance O Ano Sabático. Considerando que o autor nasceu em 1975, não deixa de ser uma experiência temporã. No entanto, esta escolha tem explicação académica. Formado em Filosofia, João Tordo procura responder à velha questão: Quem sou eu? Já Fernando Pessoa construíra toda uma obra a responder à mesmíssima pergunta. Temos, assim, que o romance é a resposta à eterna questão.
Uma resposta triste, pois a ideia de incompletude que persegue Hugo (na 1ª parte) e Luís Stockman (na 2ª parte) faz destas personagens "seres" descompensados, pois a cada momento se sentem "roubados", procurando, um, de forma alienada, e o outro, de forma racional, "encontrar" o quid que os limita.
Esta apropriação do "eu" pelo "outro" (do mesmo sexo, mesmo que haja ainda um "outro" do sexo feminino) é, afinal, a matéria de que o romance se alimenta, e leva à aniquilação de "ambos", o primeiro, de modo prosaico num sótão da baixa lisboeta e o segundo, de modo mais poético numa tempestade de neve nas ruas de Montreal (Québec).
A alusão ao "outro" feminino serve apenas para lançar a ideia de que neste romance, embora "as mulheres" não surjam como acontece na tradição literária e filosófica da "misoginia grega", este outro acaba por não ser essencial para a resolução da resposta à questão identitária - irmã, mãe, amantes, terapeutas, todas elas desempenham papéis periféricos...
Do meu ponto de vista, o mais interessante é que a obsessão do "eu" pelo "outro" acaba por matar a capacidade criadora de Hugo e de Luís Stockman: o 1º porque se sente roubado por uma "sombra real", o segundo, porque, para adiar o reencontro com  a "parte em falta", desiste da composição musical... até que:
«Quando a neve já era tanta que nada se via excepto o branco, tudo branco, o mundo uma composição em branco, Stockman sentiu a alegria de uma perda irreparável e soube que era demasiado tarde para voltar atrás.» (João Tordo, O Ano Sabático, pág. 205)
No essencial, estamos perante um romance bem construído, cujo fio condutor desloca a atenção do leitor para as condicionantes da criação musical, mas que bem pode ser lido como se todo ele fosse o resultado de um verdadeiro ano sabático dedicado aos escolhos que a escrita levanta ao escritor.

9.8.13

Urbano Tavares Rodrigues (1923 - 2013)

Sempre que alguém me fala de Urbano Tavares Rodrigues, sorrio por instantes.
Sorrio da sua bondade, da sua leveza, da sua crença na fraternidade e na solidariedade, e, sobretudo, do modo como continua a alimentar essa Instituição que poderia ser a Literatura, se esta não tivesse sido colonizada por uma casta de sacerdotes que, pouco a pouco, nos afastam do gosto da leitura...
Pode não ser verdade, mas, para mim, Urbano Tavares Rodrigues é um homem naïf que nunca me pediu nada, e que os deuses decidiram premiar, deixando-o ficar um pouco mais para que o sorriso não vire esgar. Caruma, 4.11.2008)
 

8.8.13

O que é (pouco) natural...

«O que é natural estende-se a toda a natureza, mas o produto da arte ocupa apenas um espaço limitado.» (Goethe, Fausto)

Se observarmos a foto 2, verificaremos que o artista, apesar do acrobático movimento, quase que não é visto pelos circundantes. Estes, alinhados, esperam um brinde, qualquer coisa do género. Por mais que insistamos em arrancar o homem à natureza, lá, no fundo, ele procura sempre um benefício, uma recompensa... 

7.8.13

Preocupação

A PREOCUPAÇÃO ( diante da casa de um rico): - Vós minhas irmãs ( a FOME, a DÍVIDA, a ANGÚSTIA) nada podeis e nada ousais. Só a preocupação pode deslizar pelo buraco da fechadura. Goethe, Fausto (adaptado).
 
Na realidade, não sei se a Preocupação consegue incomodar um rico. É um universo que não frequento! Sei, todavia, que os ricos (e os seus servos) estão a gizar um caminho em que, por mais que tentemos esquecer os problemas, viveremos em permanente preocupação dia e noite.
E essa permanência da preocupação, constantemente alimentada pela comunicação social, acabará por nos impedir de dar um passo, de sonhar, de dormir.
Por este caminho, acabaremos expulsos da categoria de contribuintes e de consumidores, deixando objetivamente de contar...
Vai ser necessário que a  Preocupação destes novos párias comece a deslizar pelo buraco da fechadura de quem nos desgoverna... 
 

6.8.13

Vivamos alegremente!

« A ação transporta-se para uma corte imperial da Idade Média. (...) O general queixa-se das tropas e dos oficiais que reclamam  os soldos em atraso, e ameaçam a tranquilidade do país. O tesoureiro responde-lhe que os cofres estão vazios, que cada qual vive para si, e que a riqueza do império foi devorada pelas guerras e pelas divisões dos partidos políticos. (...) No entanto o astrólogo fez observar que o Carnaval estava próximo, e que convinha passá-lo com alegria. Bastava ter fé no futuro e fazer uma última exibição de luxo e abundância pública.» Goethe, Fausto, Fausto na Corte do Imperador.
 
Por maior que seja a tragédia, há situações e comportamentos que se repetem: o presidente da república, o primeiro ministro, os deputados, os banqueiros, os tribunais, todos de férias! Simultaneamente, os mefistófeles engendram as extorsões que irão impor ao país...
 
« A partir de quarta-feira de Cinzas... - decretou o imperador - começaremos o nosso trabalho! Até lá vivamos alegremente!» Goethe, op.cit.