« Não é tarefa fácil construirmos a nossa própria identidade confiando apenas nas nossas intuições e pressentimentos, mas é também pouca a segurança que poderemos extrair de uma identidade autoconstruída que não seja confirmada por um poder mais forte e mais duradouro do que o seu construtor solitário.» Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada, pág. 278.
João Tordo publicou no início deste ano o romance O Ano Sabático. Considerando que o autor nasceu em 1975, não deixa de ser uma experiência temporã. No entanto, esta escolha tem explicação académica. Formado em Filosofia, João Tordo procura responder à velha questão: Quem sou eu? Já Fernando Pessoa construíra toda uma obra a responder à mesmíssima pergunta. Temos, assim, que o romance é a resposta à eterna questão.
Uma resposta triste, pois a ideia de incompletude que persegue Hugo (na 1ª parte) e Luís Stockman (na 2ª parte) faz destas personagens "seres" descompensados, pois a cada momento se sentem "roubados", procurando, um, de forma alienada, e o outro, de forma racional, "encontrar" o quid que os limita.
Esta apropriação do "eu" pelo "outro" (do mesmo sexo, mesmo que haja ainda um "outro" do sexo feminino) é, afinal, a matéria de que o romance se alimenta, e leva à aniquilação de "ambos", o primeiro, de modo prosaico num sótão da baixa lisboeta e o segundo, de modo mais poético numa tempestade de neve nas ruas de Montreal (Québec).
A alusão ao "outro" feminino serve apenas para lançar a ideia de que neste romance, embora "as mulheres" não surjam como acontece na tradição literária e filosófica da "misoginia grega", este outro acaba por não ser essencial para a resolução da resposta à questão identitária - irmã, mãe, amantes, terapeutas, todas elas desempenham papéis periféricos...
Do meu ponto de vista, o mais interessante é que a obsessão do "eu" pelo "outro" acaba por matar a capacidade criadora de Hugo e de Luís Stockman: o 1º porque se sente roubado por uma "sombra real", o segundo, porque, para adiar o reencontro com a "parte em falta", desiste da composição musical... até que:
«Quando a neve já era tanta que nada se via excepto o branco, tudo branco, o mundo uma composição em branco, Stockman sentiu a alegria de uma perda irreparável e soube que era demasiado tarde para voltar atrás.» (João Tordo, O Ano Sabático, pág. 205)
No essencial, estamos perante um romance bem construído, cujo fio condutor desloca a atenção do leitor para as condicionantes da criação musical, mas que bem pode ser lido como se todo ele fosse o resultado de um verdadeiro ano sabático dedicado aos escolhos que a escrita levanta ao escritor.
Estou a realizar um trabalho de interpretação e análise de texto sobre esta obra e devo confessar que a sua visão é subtil e inteligente. A obra literária de João Tordo, remete-nos sim para temas vistos e revistos, pois tudo é imitação, no entanto "imita" de um modo esplêndido, onde a proposta literária está presente através de chaves discretas que também me deleitam desvendar...
ResponderEliminar