8.11.13

Um funcionário público qualquer

Este texto é dedicado ao ministro que, na Assembleia da República, me tratou como «um funcionário público qualquer». A partir desta data, sempre que vir um agente da autoridade irei lembrar-me que o meu corpo não tem nada de especial e que a minha profissão, na atual república, é desprezível. 
(...)
Deveria poder aceder por uma de três portas. Mas não, só por uma, e de lado. O automobilista é assim mesmo, não respeita a lei da boa vizinhança. Não o faz por má vontade, porque esta não chega a ter tempo de se pronunciar: o automobilista espreita o lugar, arruma o carro e vira as costas sem olhar à esquerda ou à direita.
 
A porteira chega a horas: abre a porta que dá para o pátio das traseiras, enche de água um balde, mergulha o esfregão, e desaparece, deixando a vassoura apoiada na ombreira... Talvez me tivesse emprestado o comando que abre o portão que dá acesso à garagem! Só às 16h30 lhe vejo os olhos de quem por nunca os despegar do trabalho parece numa infindável viagem.  
 
Neste dia em que decidi libertar a autocaravana do recheio, percebi que a crise pode ser libertadora: liberta-nos de tudo o que fomos acumulando, deixando-nos as pernas mais pesadas e as expectativas goradas... 
 
(No início da frase, cheguei a escrever "minha autocaravana", mas desisti. Neste país, nada é nosso, sobretudo se a posse resultar de demorado e honesto trabalho.)
 
Quantos países ficam por visitar e, sobretudo, os lagos cimeiros, os campos de alfazema, as estepes russas e as chanas africanas...
Esta ideia do caminho que fica por percorrer deixa-me, hoje, uma dor difusa, mas aguda. E, principalmente, fica a certeza de que o esforço despendido é inútil. Ou talvez mais não seja do que a expressão do meu tempo, pois, neste caso, o único tempo que vivo é o meu...
 
Entretanto, sei que, hoje, houve greve! Mas não sei o que se passa para lá da rua que percorro da autocaravana à garagem, com uma breve deslocação à agência  da Caixa Geral de Depósitos, nos Olivais. Lá, as máquinas automáticas tinham secado! Penso, todavia, que o facto nada teria a ver com a greve: Simplesmente, os reformados e pensionistas acorreram ao banco, antes que o Governo lhes roubasse, em nome da crise, as parcas mensalidades...
Agora já só ligo a televisão na hora de adormecer. Até lá, estou a tentar perceber Os Anões de Harold Pinter. 
 

7.11.13

Que a onda já me leva

A onda não tem cor, mas basta vestir uma camisola para ganhar coloração. E quando um grupo veste a camisola,  refulge a cor mesmo sem convicção.
O grupo serpenteia em melopeia e a onda retrai-se em fímbrias de espanto...
Eu, cego e surdo, fico indistinto no aroma do fado...
 
Nada mais posso dizer que a onda já me leva
Que a onda já me leva
Indistinto no aroma do fado...

6.11.13

Um cemitério de palavras

Estou a preparar-me para passar o resto dos meus dias a dialogar com o passado.
Um passado quase milenar que me permitirá revisitar as campas de trovadores de partidas sem regresso e de jogos de sombras palacianas.
Um passado quase milenar de clérigos goliardos, de déspotas régios e de ordens devassas.
Um passado ao serviço de uma fé fundamentalista e argentária, de uma fé censória e inquisitorial.
Um passado de capitães aventureiros, mercenários, traficantes e... de abril...
... mas, agora, reparo que me enganei nas campas.
 
Coitado de mim que, impedido de dialogar com o presente, me enganei no cemitério. 

5.11.13

Metas curriculares de Português e educação literária

I - Aos quinze anos, em termos de educação literária, o jovem deve:

a) Ler textos literários portugueses dos séculos XII a XVI, de diferentes géneros.
b) Reconhecer os valores culturais, éticos e estéticos manifestados nos textos.
c) Contextualizar as obras e os textos literários: por exemplo, época, autor, movimento estético-literário (quando indicado no Programa). 
 
Não sei se aplauda o regresso ao passado! Já em 1970, era assim!
 
II - Ao ler o Programa e Metas Curriculares de Português, em discussão pública, fico com a sensação de que o interregno (1974-2013) se tornou insuportável!
 
... e nem vale a pena referir os autores rasurados, designadamente do séc. XX! Todos os que se tenham evidenciado pelo espírito crítico: Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguéis, Carlos de Oliveira, Miguel Torga, José Gomes Ferreira, O'Neill, Sophia, Al Berto... e todos os vivos, a começar pelo Lobo Antunes, Mário de Carvalho...
 
Em termos de educação literária, estamos entendidos!

4.11.13

Kant explica

Não entendendo o alarme noticioso que, na última semana, se instalou na comunicação social em torno de um casal mediático, decidi dar-lhe alguma atenção.
Inicialmente, o caso pareceu-me irrisório. No fundo, a desavença lembrava-me um reposição de uma novela de Camilo, entre uma burguesa balzaquiana e um velho da horta severo...
No entanto, a falta de decoro e o excesso de linguagem revelados em monólogos claramente encenados, acabaram por me conduzir a Kant... agora muito em moda na província política e filosófica portuguesa:
 
«De tudo  o que é possível conceber no mundo e, mesmo em geral, fora do mundo, há somente uma coisa que se pode considerar boa sem nenhuma reserva: uma boa vontade. A inteligência, a argúcia, o juízo e os talentos do espírito (...) são sem dúvida, coisas boas e desejáveis sob muitos aspetos; mas estes dons da natureza podem tornar-se extremamente maus e perniciosos, quando a vontade que se tem de usá-los, e cuja disposição própria se chama, por isso mesmo, carácter, não é boa.» Kant, Fundamentos da Metafísica dos Costumes.
 
Parece, assim, que a única coisa verdadeiramente boa sem nenhuma reserva - a boa vontade - anda muito arredia do carácter de certos portugueses, por muito inteligentes, argutos e talentosos que pareçam ser...
Nem sempre, a Filosofia é boa conselheira, mesmo se cultivada em Paris!

3.11.13

Ler a tristeza

Há anúncios sobre tudo, até sobre seguros. Mas não há seguros contra os riscos provocados pela leitura de um livro triste.
Os livros do meu país são tristes, todos! E querem que os jovens os leiam, eles que se acham alegres e sedutores.
Os mais obedientes ainda ousam iniciar a leitura, mas acabam por desistir porque não suportam a leitura de livres tão tristes. Alguns confessam a desistência, e, pesarosos, procuram uma explicação, mas a tristeza sufoca-lhes a palavra. São genuínos, estes jovens, chegando a ter pena do professor...
Há muito que não encontro um leitor que compreenda a tristeza que percorre os livros de Miranda, Camões, Bernardim, Vieira, Garrett, Herculano, Nobre, Cesário, Camilo, Pessanha,  Eça, Aquilino, Pessoa,  Brandão, Florbela, Almada, Miguéis, Sena, Rovisco, Belo, Agustina, Alberto, Saramago...
Há muito que não encontro um leitor que compreenda que a tristeza não é uma propriedade dos livros. A tristeza existe em nós, portugueses! Existe em nós desde que partimos... para a Índia.
A sorte destes jovens é que ainda não descobriram que, também, eles são portugueses!    

2.11.13

Ler a estranheza

A "rotina" é a expressão do hábito de seguir sempre o mesmo percurso. Na verdade, trata-se de uma  palavra proveniente da francesa "route". A estranheza inicial desapareceu completamente e pode afirmar -se que, de certo modo, amamos a rotina.Vem isto a propósito da motivação para a leitura, para a escolha de um livro pelos alunos do ensino secundário. 
Apesar do ministério da Educação ter definido um corpus de leitura, constituído por obras de referência, muitos alunos fogem dele como o diabo da cruz.
De preferência, não leem e caso sejam "obrigados", procuram obras cujo mínimo que delas se pode dizer é que são estranhas. Estranhas na língua, na distância temática, geográfica e até temporal. 
Em termos temáticos, a maior estranheza é que não equacionam qualquer problema. Em termos geográficos, raramente, a ação se situa na Europa. E quanto ao tempo, o preferido é o futuro e, por vezes, um passado tão inverosímil que chego a pensar que a humanidade já terá sido extinta...
E há ainda um aspecto que não devo ocultar: as obras escolhidas vêm rotuladas de "best-seller" e foram todas escritas em tempo recorde.
Para o caso de ainda haver por aí um jovem que procure uma obra estranha na língua, na distância temática, geográfica e até temporal, mas que o possa ajudar a conhecer melhor a adolescência no mundo rural, as raízes do Portugal provinciano e atual, a relação com a terra, a pujança da língua, a seriedade do trabalho do escritor, aconselho-o a ler Cinco Réis de Gente (1948), de Aquilino Ribeiro.