3.2.18

Fico a olhá-la...

Uma flor desabrocha no canteiro. E isso basta!

A luz baça não a ameaça. E eu também não... fico a olhá-la, sem qualquer intenção...
De súbito, uma velhinha, outrora ilustre, avança alquebrada, dois pesados sacos de compras dependurados dos frágeis braços. Parece que vai soçobrar, mas não: avança, sem conseguir levantar a cabeça, mas segura de que vai chegar a casa... e, talvez, ainda a pensar nas próximas eleições autárquicas.
Quem sabe? O sonho de ser Presidente da Câmara acompanha-a de há muito... E eu fico a olhá-la, sem qualquer ação.
PS. Pelo que acabo de apurar, a velha senhora já tem 82 anos. Maria Geni Veloso das Neves.

2.2.18

Ainda a chama

"Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida  ainda não é finda.
O frio morto em cinzas ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda."
 Fernando Pessoa, O Desejado (excerto)

ainda a chama, mesmo que o frio a sufoque...
e o vento que tudo espalha, num gesto de fervor...
nos acorde do torpor... das notícias

sempre as mesmas
cinzas nossas
de todas as eras
onde até o desejo fenece...

1.2.18

Encrencado

Interrompo a tarefa como medida profilática - preventiva. Hesito entre a variante europeia e a brasileira. Sim, porque o OA de 1990 permite-me escrever "profilático" com e sem /c/...; só que a opção exige que assuma uma variante e que me liberte da norma-padrão, sebastianista...
A tarefa é de rotina, mas exasperante, porque os jovens insistem em não responder às perguntas, um pouco como os croissants da Padaria Portuguesa que se estão borrifando para as expectativas dos clientes...
Só que a notícia sobre a dívida pública de 2017 - 242,6 mil milhões - gera ainda maior desânimo, pois abre a janela para uma outra: Em 2019, não haverá aumentos para a Função Pública...
O que, afinal, se compreende, pois, por mais que se insista, as famigeradas "reformas estruturais" continuam por fazer... a começar por, cedo, aprendermos a não responder às perguntas...

31.1.18

Por um toque de inveja

«Le double est devenu une image d'épouvante dela même façon que les dieux deviennent des démons après que leur religion s'est écroulé.» ( Heine, Les dieux en exil)

Confesso que ler Freud me diverte, sobretudo desde que me apercebi que o psicanalista era um grande leitor e percebia imenso de literatura.
Ao ler o ensaio L'inquiétante étrangeté, dei com algo em que nunca pensara: afinal, os demónios não passam de deuses caídos em desgraça. Por outras palavras, abandonados pelos seus crentes...
(Creio que já mo tinham explicado, mas eu não percebera, nem sei se a interpretação seria a mesma.)
A verdade é que, para mim, o Bem era a outra face do Mal; ou seria ao contrário? Os deuses e os demónios, indissociáveis, senhoreavam o universo numa competição sem limites, em que nós nos arrogávamos o direito de os imitar, convictos  de que um dia lhes ocuparíamos o lugar...

No essencial, os deuses de ontem, venerados e bajulados, transformaram-se por um toque de inveja humana nos demónios que nos entram pelos olhos e pelos ouvidos e que nenhum exorcista conseguirá extinguir... 

30.1.18

Sine lege

O sistema está blindado.
De modo a estancar o alarme, o peixe-miúdo fica detido; o graúdo, a estas horas, já deve ter zarpado... E se não o fizer, é porque a malha não foi feita para ele.

Não sei se consigo abarcar a extensão da corrupção; fica-me, no entanto, a ideia de que este polvo é intratável.

E depois o que impressiona é o aparato. Sem ele o que seria de nós?

28.1.18

O mito, figura de esperança

Apesar de ser domingo, vejo-me confrontado com sucessivos disparates. Por exemplo, alguém me diz que D. Sebastião é, para Fernando Pessoa, um mito reabilitado...
O que tenho procurado explicar é simples, creio: Fernando Pessoa, dando sequência ao trabalho doutrinário de uma série de ilustres sebastianistas, transforma, em MENSAGEM, a figura histórica que mais contribuiu para a ruína da Pátria, num mito, isto é, numa figura de esperança, tal como fez com muitas outras personagens históricas, essas, sim, bem mais positivas...
No essencial, o que interessa entender é que todo o mito é uma figura de esperança. Ou será que, no género épico, os mitos são tratados de modo diferente?

Bem sei que há por aí quem afirme que a dívida portuguesa é mítica. Só que não estamos a falar do mesmo. Pelo menos, no que me diz respeito, não sou sebastianista, pois não acredito que algum dos atuais heróis venha a ser mitificado... 

26.1.18

a palavra vazia

a palavra solta
cai sem amparo...

a palavra presa
murmura no silêncio

sem amparo
a palavra ainda escorre

arrependida a palavra
definha no silêncio

vazia a palavra...