4.12.19

(Des)contextualizando

«Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse esperança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem normal, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político.» Bernardo Soares, Livro do Desassossego

A geração de Fernando Pessoa / Bernardo Soares, nascida no final dos anos 80 do século XIX e entrada na vida adulta na segunda década do séc., é aqui retratada como se tivesse sido empurrada para um beco sem saída… O retrato parece acertado…
No entanto, eu, que nasci na década de 50 do século passado, ao ler este fragmento de Bernardo Soares, vejo-me a pensar que a minha geração, do ponto de vista religioso, era descrente; do ponto de vista doméstico,  vivia à deriva. E quanto ao rumo político, parte da minha geração vivia na completa ignorância, formatada numa ideologia aviltante…
A verdade é que a angústia e o desassossego cresciam no esplendor do existencialismo e, sobretudo, nos campos rubros de papoilas povoados por orquestras anestesiantes, idolatradas como se os deuses tivessem descido à terra.
(…)
E hoje, por onde é que andam a religião, a moral e a ideologia? Há quem as veja nas mesquitas, nos areópagos, nos cais. Em cascatas ou em fiapos…

3.12.19

Gretado

Sinto-me gretado!
Dito deste modo, até parece que sou mais um dos fãs da jovem Greta. Compreendo o espírito da sua cruzada, mas nunca fui adepto de causas fraturantes…
Todos sabemos que a maioria das populações nada pode fazer para combater as causas das alterações climáticas nem mesmo para assegurar a sua própria sobrevivência. 
As decisões fundamentais têm de ser tomadas por meia dúzia de nações que há muito contribuem para o atual estado de coisas e que insistem que não há qualquer problema.
Como diria Bernardo Soares: «Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe.» 
E é esta a história da Humanidade. Raramente, os inteligentes conseguiram alterar o rumo traçado pelos estúpidos.

2.12.19

Capas

É isso, o povo gosta de capas!
O povo capado satisfaz-se com capas…
Outrora, também gostava do suco, do tutano, da seiva.
(…)
Por mim, não sei do que gosto, mas sei do que não gosto - de capas, de máscaras.
Bem sei que elas dão jeito para sairmos janotas, pobres idiotas.

1.12.19

Abre-se a Serra

Alvados, Gruta
Abre-se a Serra e do interior jorram formas múltiplas capazes de nos fazer sonhar com outras vidas, silenciosas e milenares…
Apenas sonhar, porque o tempo nos falta para lhes acompanhar o movimento e a linguagem. Sim, porque a Serra fala uma língua particular diferente, por exemplo, da do mar.
À superfície, no entanto, o vento continua a soprar e o trovão a ribombar, lembrando-nos quão pequenos somos se não nos recolhermos a meditar.
Para quê, pode alguém perguntar… Talvez para que a alma possa voltar a vibrar antes que o corpo nos falte, de vez.
O resto, a própria pátria, não passa de ilusão. 


30.11.19

A desproporção esmaga

Gruta de Alvados
Por aqui o tempo é desumano, arruma-nos a vida em menos de um centímetro…
Vista, deste modo, a desproporção esmaga, mas, na realidade, quem nos põe em sentido é a Natureza, essa criadora insaciável que já deve andar farta de nós.
No entanto, continuamos absortos nas nossas vaidades, nos nossos interesses, sem perceber que quem tudo tem a perder é a humanidade.
Na Serra d'Aire, a Natureza é um livro aberto da sua Arte e da nossa imbecilidade. Não esqueçamos que a Serra d'Aire é um aquífero insubstituível.
Esperemos que por aqui não haja lítio...

29.11.19

Mesmo sem carpinteiro

Igreja de São Pedro, Porto de Mós
Ainda estamos em novembro, mas o presépio já está em construção... Mesmo sem carpinteiro! 
Já lá vai o tempo em que não bastava o Espírito Santo… Nem era aceitável que pusessem em causa o papel do homem, mesmo que se tratasse de um José ludibriado...
Quanto ao Espírito Santo, disfarçado de pomba, tem feito a vida negra a crentes e descrentes, e não há quem lhe quebre a asa.
Por mim, já que a veneração pelo burrinho e pela vaquinha não diminui, creio que o melhor seria não esquecer a pomba branca, colocando-a sobre o alpendre que necessariamente abrigará  a castíssima Maria e o menino que, a esta hora, já estará arrependido de ter permitido que lhe chamassem Jesus…

28.11.19

Do erro se faz culto...

Residence - Saldanha

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo Deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
                 Fernando Pessoa

Se tudo é oculto, para quê tanto barulho?
Se tudo é oculto, para quê tanto brilho?
(Do erro se faz culto...)