António Lobo Antunes, Que farei quando tudo arde? (2001)
Finalmente, conclui a leitura deste romance... De facto, agora que cheguei à página 637, sinto que deveria recomeçar a leitura, sobretudo, querendo dizer algumas palavras sobre a referida obra. Honestamente, talvez fosse melhor não o fazer, mas por respeito pelo meu velho amigo Sá de Miranda que, consciente das fraquezas do Amor e da Razão, decidiu trocar o Paço pela Arte. E por isso aqui o cito para que António Lobo Antunes compreenda que o Destino o afastou definitivamente do Paço, onde o senhor dava por nome Gil Vicente. (E nem a nova noiva lhe devolverá a Ilha para sempre perdida!)
Desarrezoado amor, dentro em meu peito,
tem guerra com a razão. Amor, que jaz
i já de muitos dias, manda e faz
tudo o que quer, a torto e a direito.
Não espera razões, tudo é despeito,
tudo soberba e força; faz, desfaz,
sem respeito nenhum; e quando em paz
cuidais que sois, então tudo é desfeito.
Doutra parte, a Razão tempos espia,
espia ocasiões de tarde em tarde,
que ajunta o tempo; em fim, vem o seu dia:
Então não tem lugar certo onde aguarde
Amor; trata treições, que não confia
nem dos seus. Que farei quando tudo arde?
Sá de Miranda
Quando o relativismo comportamental alastrava imperialmente, qual napalm, António Lobo Antunes decidiu mergulhar nos estilhaços de uma família desestruturada, retratando-a de forma fragmentada e, sobretudo, dando espaço a descontextualizadas, travestidas e sangrentas vozes, para sempre incapazes de se libertarem de iniciáticas cenas de traição e de despersonalização.
Fascinado por essa nova realidade, o autor arrasta o leitor para um espaço circular e de non-sense, criando um labirinto em que a palavra e a imagem se tornam no único fio redentor. Quem procura acção situada no tempo e no espaço, quem procura compreender as causas e os efeitos, quem, no limite, admite a peripécia como factor de complexidade ou de equívoco, bem pode desistir da leitura…, aqui tudo se traveste, tudo se intersecciona num permanente fascínio pela enumeração verbal, pela iteração verbal, pelo tom verbal, pelo ritmo verbal, pela imagem verbal, pela metáfora luminosa, como se as coisas (a realidade) se limitassem a flutuar em torno da voz do criador…
À sua maneira, A.L. Antunes dá, neste romance (?) a mesma resposta que Sá de Miranda: Quando tudo (as coisas, os padrões) entra em decadência, então, só a linguagem pode gerar novos possíveis narrativos. Apenas a arte nos pode redimir, principalmente se porética… E quando isso acontece, a leitura torna-se lenta e dolorosa…
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