(Santarém, 1941- Swakopmund,Namíbia, 2010)
Como agradecimento pela capacidade de escutar o outro, aqui colo algumas das minhas notas sobre as leituras que fui fazendo da obra deste ilustre contemporâneo (e, de certo modo, conterrãneo).
Infância em Moçâmedes. Foi regente agrícola.Vive e ensina[1] – professor de antropologia numa escola de arquitectura da Universidade de Luanda; e também de Coimbra. Antes de ser antropólogo, trabalhou como engenheiro técnico agrário. É cidadão angolano, embora tenha nascido em Portugal. Angola é o seu "lugar no mundo". " Sou angolano, vivo em Angola, sem família, sem etnia, sem enquadramento institucional que preencha todas as necessidades políticas e de cidadania e, sobretudo, sem ambição pessoal que se enquadre no quadro das ambições possíveis em Angola."[2] Após a independência de Angola, viveu em Londres, fez um curso de televisão e cinema, e realizou filmes em 16 mm que os Cahiers de Cinema elogiaram. As rodagens levam-no à antropologia (doutorando-se na parisiense École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Obra: Chão de Oferta (1972); A Decisão da Idade (1976); Exercícios de Crueldade (1978); Sinais misteriosos... já se vê (1979); Ondula Savana Branca (1982); Hábito da terra (1988); Como se o mundo não tivesse leste (1992); Ordem de Esquecimento (1998); Aviso à Navegação; Vou lá Visitar Pastores[3] (Cotovia, 1999); Observação Directa (2000); Actas da Maiaga (2003); As Paisagens Propícias (Cotovia, 2005)[4]; Desmedida (Cotovia, 2007)[5]
[1] - Aos 59 anos de idade.
[2] Opções / definições: Sobre o início da guerra, há 40 anos: "tinha 19 anos. Foi talvez o dia em que estive mais perto da morte. Estava no Quitexe e tinha começado a trabalhar como regente agrícola numa grande fazenda. Não morri porque cheguei três minutos tarde de mais ao posto administrativo onde fora buscar o correio. Foi uma situação tão extrema, que os horrores que se lhe seguiram não me deixaram dúvidas sobre o lado em que passaria a colocar-me daí para a frente. Por isso é que digo ser angolano por condição e não opção. (...) Estava do lado da razão de Angola." Sobre a literatura: "Em relação à produção literária, o que me interessa na escrita são os seus elementos detonativos. E a poesia militante é, quase sempre, conotativa e, muitas vezes (o que sempre a diminui!), demonstrativa. Mas pode de facto acontecer que através dela se produza, por diversas razões, conjunturais e não só, um tal grau de exaltação no leitor que lhe assegure o efeito de "revelação" sobre a "causa" que o poeta, independentemente da qualidade do poema, quis cantar e apoiar. Foi o que aconteceu comigo. Sobre o comprometimento da literatura: Sobre se a Angola independente e soberana nunca lhe causou "arrepios" que o levassem a pegar na pena, denotativa ou demonstrativamente, Ruy Duarte de Carvalho responde: Antes do "Vou lá Visitar Pastores", cujo terreno seria "a priori" o da escrita demonstrativa, mas onde, por um artifício literário, introduzi elementos de escrita criativa, eu já tinha escrito o " Aviso à navegação", dirigido a interventores, a políticos, a ONG, etc. ... Foi a minha resposta cívica, se quiser, feita em termos demonstrativos, sobre os mesmos kuvale (ou mucubais, como toda a gente lhes chama) e sobre as sociedades angolanas de economia doméstica em geral, para que técnicos e executores políticos pudessem servir-se do livro como instrumento de consulta. Está implícita em todo o livro a crítica ao poder, às práticas mais reprováveis dos poderes. Sobre o boi kuvale: " A raça dos bois kuvale corresponde a uma matriz dos bovinos de toda a África. São os sanga, descendentes em linha directa dos "Bos primogenitus", que dá o "Bos taurus" (bois sem bossa) e o "Bos indicus" (com bossa).
[3] - Sobre Angola (1999): "Estou a chamar a atenção para uma Angola que as pessoas não sabem que existe porque a actualidade de Angola é de tal forma confrangedora que as pessoas só se detêm nos aspectos catastróficos. A Angola de hoje é uma coisa geograficamente de tal forma insularizada e de difícil circulação que as pessoas acabam por se ocupar só de Luanda. Esquecem-se que Angola é vasta e tem Angolanos... lá no fim...! que por razões culturais, como é o caso dos Kuvale, ou por razões de actualidade político-militar, vivem em situações de grande isolamento, que reabilitaram sistemas de produção, de circulação económica que até implicam dispositivos de troca... (...) São estes processos que me interessam. À medida que o mundo cumpre a globalização, de que vocês tanto falam, há processos de insularização em curso, que desligam as pessoas mas ao mesmo tempo lhes garantem a sobrevivência. E são tão angolanos como os outros! E raramente são tidos em conta: quer pelos poderes nacionais quer pela chamada assistência humanitária, que normalmente não atende à especificidade das populações e, a coberto de uma acção que pressupõe um resultado positivo, introduz formas que se revelam negativas para as populações. Tudo isto acontece, tudo isto é referido aqui. Sobre o "mundo Kuvale": Toda a gente come, a redistribuição é um facto, há gente mais rica e gente mais pobre, mas do comportamento dos ricos consta a componente intrínseca de distribuir a sua riqueza. Entre estes pastores, há famílias que detêm milhares de cabeças de gado; há outras que detêm dezenas ou unidades. Mas, de uma maneira geral, todos acabam por comer da mesma maneira.Por todo o mundo os ricos ostentam a sua riqueza, não há acumulação que não vise exibir-se... No caso destas populações, a exibição da riqueza passa pela redistribuição, um homem é mais prestigiado quando alimenta mais gente, quando da riqueza pode extrair vantagem e destaque social através da sua capacidade de dar, não de acumular.Todos os anos os homens ricos matam pelo menos dois, três bois, que partilham com toda a vizinhança. Essa é a diferença fundamental! Enquanto os homens ricos de Luanda acumulam automóveis nos quintais, os homens ricos pastores que eu trato acumulam bois de que depois fazem beneficiar as pessoas que estão à volta.
Eu posso ter que sair de Angola, no dia em que sair fechei o escritório, não falarei mais de Angola. Angola não é uma coisa que a História destinou à extinção e de que nós sabemos tudo porque extraímos uma leitura. Não! Angola vive, pulsa, é maior do que as situações que lhe assistem. Era maior do que a condição colonial que lhe estava imposta, hoje é maior do que a situação de catástrofe que vive.
Dados biográficos: Conheço esta sociedade desde criança. O meu pai era português, de perto de Lisboa, foi para Angola com 30 anos. Eu ia com ele para o mato, caçar, foi aí que eu apanhei o vício do mato. Ainda ando a dormir nas pedras. Este é o livro que escrevi para me explicar a mim mesmo. Tinha 19 anos quando rebentou a revolta contra o poder colonial, vi de tudo, fui bombardeado, lutei pela independência e pela autonomia. Desde então que sei perfeitamente de que lado estou – do lado de Angola como país que ainda não desistiu.
Sobre a adopção de um estilo literário no discurso antropológico:"É verdade que a adopção de um estilo literário, ficcional, no discurso antropológico não é novidade. Já não o era quando Geertz e seus seguidores mais radicais, em Writing Cultures, assumiram a etnografia como uma forma de escrita e os antropólogos como um tipo de autores: Lévi Strauss nos seus "Tristes Trópicos", Michel Leiris e Georges Balandier nas suas "Áfricas" (para o primeiro "uma Afrique Fantôme", para o segundo uma "Afrique Ambigue") já o haviam feito, tentando escapar aos constrangimentos que o figurino de uma ciência moderna impunha à tradução difícil das realidades culturais (...) Mas, em "Vou lá Visitar Pastores", Ruy Duarte de Carvalho transcende tudo isto e todos eles: turistas, viajantes, ficcionistas e etnógrafos de caderno de campo em punho e diário no bolso. Ele consegue, aqui, o milagre de uma "antropologia doce". Uma antropologia que, sem qualquer ingenuidade, se reconhece e transcende recuperando formas discursivas que estiveram, afinal, na sua origem, para se impor em novo formato. O verdadeiro milagre reside na capacidade de imposição de um olhar antropológico ( subrepticiamente exclusivista, diga-se), sem fazer recurso evidente aos elaborados alicerces de uma ciência clássica - que apesar de tudo, está lá nos bastidores (nas entre-linhas, nas referências múltiplas e cruzadas, nas perspectivas poliédricas, no glossário, no post scriptum) - mas antes ressuscitando a sua vocação original mais universalista e humanista (...)
Testemunhos / Leituras: Nas palavras de José Eduardo Agualusa:"Vou lá Visitar Pastores" está organizado como se fosse uma conversa entre o narrador, Ruy Duarte, e um jornalista angolano do qual não se refere o nome (é Filipe Correia de Sá, ele próprio escritor, há anos a trabalhar nos serviços portugueses da BBC, em Londres), que combinou encontrar-se com o amigo para visitar o deserto. Filipe Correia de Sá não comparece ao encontro e Ruy Duarte deixa-lhe uma série de cassetes... – curioso artifício literário / de um discurso antropológico... " Vou Lá Visitar Pastores" – exploração epistolar de um percurso angolano em território Kuvale (1992-1997) Luís Carlos Patraquim: Observação Directa estabelece uma relação tanto com a obra "Vou lá visitar pastores" como com a obra anterior "Habito da Terra". Aqui, autor, tradutor, língua, recriam-se em jogo onde o legado da tradição oral se institui como instância decisiva, única e primeira razão produtora de sentidos, alavanca para a instauração de um ser-outro "no Texto, lugar de encontro"...Tudo neste livro se conjuga, confundindo-o: a mera notação de viandante ou de antropólogo viandante, o provérbio que se retraduz em derivação, a enumeração de pontos / temas de observação, a estruturação no sentido da complexidade que quer conotar territórios poéticos ainda em gestação, o registo de um retraduzido lirismo pastoril, hínico, salmódico, ritualístico, sincopado, a fragmentação quase como pose de olhar, uma encenação charadística, labiríntica, mas também plana que só os pastores, os que cantam a beleza da vaca e do carneiro e a pele da chana, lograrão saber.
[4] - Em entrevista, a propósito de Paisagens Propícias, Ruy Duarte de Carvalho defende uma tese que sempre me foi cara: »Poucos retêm que o último embate da guerra fria ( a batalha do Cuíto Canavale) foi em Angola, e que esta tem sido campo de batalha de muitas guerras que não têm a ver connosco: Afeganistão, independência da Namíbia, reflexo da luta armada no fim do apartheid na África do Sul…»
[5] - O livro narra uma viagem física e literária pelo rio S. Francisco ( ver referências brasileiras: Guimarães Rosa e Euclides da Cunha). Resulta de uma estadia de alguns meses no Brasil com intervalo para o autor regressar a Angola e voltar a cruzar o Atlântico.