24.8.06

Em vez da dúvida e da descrença...

«O saber em geral não se reduz à ciência, nem mesmo ao conhecimento. (...) O saber é aquilo que torna qualquer pessoa capaz de proferir "bons" enunciados denotativos, mas também "bons" enunciados prescritivos, "bons" enunciados avaliativos...»Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna
Sempre que o regresso à escola se aproxima, desponta a dúvida: Que sei eu que valha a pena partilhar? À medida que os anos passam, essa dúvida é cada vez mais forte: De que lhes poderá servir o meu saber?
Por outro lado, quando os conteúdos culturais são banidos dos programas e substituídos por meras rotinas, a descrença avoluma-se, porque, ao pôr-se em causa o conhecimento, abre-se a porta ao declíneo do ser, à morte do saber...
Ora, ao regressar à escola, em vez da dúvida e da descrença, seria bom que o fizesse com a convicção necessária a tornar qualquer pessoa capaz de proferir "bons" enunciados...
O que me vai obrigar a falar menos e a ouvir mais...

23.8.06

Os diferentes rumos do cinema

Miami Vice, de Michael Mann, EUA, 2006 Sonhar com Xangai, de Wang Xiaoshuai, China, 2006
(Salas Monumental e King. Na primeira, a aposta é na publicidade e na intoxicação sonora. Na segunda, a publicidade é discreta e o registo sonoro moderado.)
Miami Vice parece não ser mais do que a expressão sofisticada de um mundo onde o único valor é o dinheiro. No entanto, Michael Mann deixa no espectador uma certa simpatia pelos traficantes, deslocando o mal dos cartéis de droga regionais para um inimigo global de rosto árabe. No essencial, é esse o objectivo: mostrar que o novo inimigo dos EUA é filho de Bin Laden.
Por sua vez, Sonhar com Xangai retrata-nos a China interior dos anos 80, onde o Partido Comunista determina a vida dos miltantes, tal como o marido determina a vida da mulher ou o pai determina a vida da filha.
Porém, o filme não é tão linear como se poderia pensar: alguns militantes revelam desejos capitalistas ( querem regressar a Xangai, contrariando a política oficial); a relação entre marido e mulher pode ser autoritária ou tolerante ( dois casais, dois modelos comportamentais); o modelo educativo também pode ser fechado ou aberto...
No essencial, Wang Xiaoshuai não se deixa seduzir pelos estereótipos, porque as filhas dos dois casais que protagonizam a "estória" acabam por sucumbir a uma "força" que reduz a nada os padrões educativos.
De qualquer modo, um dos prevericadores acaba por ser executado, pois o Partido determina que esse é o castigo para os violadores.
Estes dois filmes acabam por mostrar que, na China, o cinema procura libertar-se da ideologia dominante e que, pelo contrário, nos EUA, o cinema está cada vez mais comprometido com a política republicana.

20.8.06

O que o Meco pode ocultar...

 
Enquanto a natureza se expõe, imperturbável, tu viajas, com os amigos, lentamente, de Zagreb a Paris, na expectativa de lá chegares a tempo de celebrares os teus 23 anos. E, nós, na expectativa de que assim seja. Embora a paragem em Grenoble tenha retardado esse propósito, acabaste, felizmente, por chegar a Paris ao fim da tarde deste domingo, para ti, inesquecível e, para nós, de ansiedade... E para trás, vão ficando o Rio da Prata, o Cabo Espichel, Vila Nogueira de Azeitão …, involuntariamente visitados pelo Kafka que adorava Berlim e detestava Viena e, para quem, ironicamente, bastava um quarto e uma dieta vegetariana...

As dissonâncias no MECO

 
Rio da Prata. Vá lá saber-se porquê? Praia célebre, de difícil acesso. Reserva naturista. O Nú masculino predomina, mesmo que a beleza dos efebos esteja arredia. Esses passam, vestidos, curiosos, provavelmente a identificar as presas... Há, por ali, cachos de uvas ritualmente lavados nas águas oceânicas ..., a lembrar cenas da Grécia antiga ou da Roma dissoluta. (Estive 2 horas nesta reserva, a observar de soslaio a natureza humana e a ler os Diários de Kafka e fiquei com pena de não ser Kafka para descrever as dissonâncias que se colavam ao areal e, a espaços, invadiam o mar...)

Cabo Espichel

 
Longe da terra, perto do mar, à semelhança do Cabo S. Vicente ou do Cabo Raso. Se no passado os conseguimos dobrar, hoje, não sabemos o que fazer com eles. Triste sina! 

Santuário de Nossa Senhora (Cabo Espichel)

Apesar da igreja ter sido restaurada, os edifícios laterais, à falta de romeiros, estão ao abandono num dos cenários portugueses de céu-e-mar mais fascinantes. A ideia de preservar a beleza, a todo o custo, acaba por inviabilizar a manutenção do património histórico e desertificar um território que poderia ser uma fonte de riqueza.

17.8.06

A hipoteca

Quando o tempo começa a escassear, insistimos em olhar para trás, procurando ansiosamente uma explicação para as fragilidades do presente.
Um meio inculto, uma família analfabeta, o caciquismo ignóbil, um pai ausente, uma mãe autoritária, uma avó fantasmática... tudo nos serve para justificar os projectos inacabados, as relações fracassadas...
Passamos a preferir às incertezas do presente e aos medos do futuro as certezas (re)construídas do passado. Damos a vida por elas - as certezas -, hipotecando definitivamente o pouco tempo que nos resta...
Estranhamente, abdicamos de viver... e nem sequer o fazemos como forma de preparar uma outra aurora, essa, sim, primaveril e gloriosa!