11.10.13

O valor primordial

Tudo vale a pena se a alma não é pequena... (Fernando Pessoa) Nada vale a pena se o valor primordial não for a defesa da vida: - Já que prezas em tanta quantidade / O desprezo da vida que devia / De ser sempre estimada... (Camões)

Em 23 de Janeiro de 1992, um velho conde decidiu partir para os mares de Timor e da Indonésia, porque: «A nossa soberania ainda não acabou. Esta é a última possível missão de soberania (...): o de tentar dar àquele  nosso território e sua nação a independência.» (Fernando Campos, O Sonho)

Soltos vão os parágrafos, mas o que os liga não são os articuladores do discurso, mas um valor: a defesa da vida, da nossa vida, da vida daqueles por quem somos responsáveis, da assunção plena da vida.
Na verdade, quem merece o prémio Nobel da paz são os anciãos que, desde os primórdios da Grécia, clamam contra a vaidade, contra a ambição, contra a guerra santa, contra a cobiça - motores da ação humana. 
Na cultura portuguesa, ninguém melhor do que Camões deu voz a esse clamor, ainda hoje incompreendido. O seu Velho, circunstancialmente (ou será obliquamente?) do Restelo, lança a acusação, e, apenas cede na proximidade: Deixas criar às portas o inimigo, / Por ires buscar outro de tão longe...
Mas este Velho nada tem a ver com com a Reforma e a Contra-Reforma que se digladiavam na procura de uma hegemonia que, a cada passo, desprezava a vida.
De nada serve cotejar a vida e a obra do Poeta com o ensinamento do Velho. Camões pela educação que recebera, pela experiência que o calejou, pelo «fraudulento gosto» que o cercava, arrancou o Velho das entranhas e colocou-o naquela e em todas as partidas em que a Morte parte clandestinamente.

10.10.13

Em tempos de assincronia

Em tempos, aprendi que havia uma psicologia de grupo, que havia técnicas capazes de ajudar a sobrepor o interesse coletivo ao individual.
Tendo gasto a vida a participar em grupos, acabo por concluir que esse objetivo raramente é atingido. Isto é, cada elemento age por conta própria, não se preocupando sequer em acompanhar o curso da ação ou da palavra.
Em certos casos, a falta de sincronismo é tal que A se sobrepõe a B e, por sua vez, C se encavalita nos anteriores tornando a situação caótica e ininteligível.   
Em qualquer grupo, do governo ao parlamento, passando pelas reuniões de família, de condóminos, pela sala de aula ou por todo o tipo de ações de formação, o que vemos e ouvimos é um desencontro total...
Infelizmente, parece que só quando o grupo é monolítico é que é possível alimentar uma expetativa positiva. Mas nesses casos, o grupo obedece à batuta, ao pingalim,  ao batuque, à ordem unida...

9.10.13

Pilriteiro

Nem sempre é a mais nobre, mas para tudo há uma razão. Se me despegasse do enunciado, poderia nele encontrar uma catáfora mas, à terminologia dos jogos sintácticos, prefiro a sabedoria da cantiga popular:

Pilriteiro, dás pilritos
Por que não dás coisa boa?
Cada qual dá o que tem,
Conforme a sua pessoa.

MCG

8.10.13

A Língua e a Gramática

Quando a língua é reduzida a um código, o professor mais não é do que um repetidor de regras que o aluno deve conhecer para obter sucesso no exame final.
Deste modo, a escola perde a sua dimensão pedagógica e formativa e facilmente acabará substituída por um qualquer centro de instrução, cuja taxa de sucesso será medida pelo número de aprovações no referido exame.
A Gramática passa a protagonista, tal como acontecia no sistema de ensino construído pelo Estado Novo. Só que, apesar de tudo, aquele regime valorizava a leitura e, principalmente, a aprendizagem do léxico que considerava vector fundamental da argumentação e, por inerência, da retórica em que a ideologia nacionalista se apoiava.
Deste ponto de vista, vamos assistindo a um empobrecimento lexical assustador que compromete a interpretação de qualquer texto.
Hoje, a visão utilitarista da língua reduz a visão do mundo do falante e destrói as pontes que lhe permitiriam circular entre o passado e o presente. Isto é, esta visão mata a cultura e inviabiliza o presente e o futuro, pois o pensamento torna-se redundante e inócuo.


7.10.13

O caldo entornado

Em tempos de pobreza, entornar o caldo é sinal não só de falta de cortesia mas, sobretudo, de desprezo pelo trabalho alheio! 
Já o meu falecido pai, pouco satisfeito com o curso dos acontecimentos, tinha o hábito de ameaçar: - Ou comes o que tens à frente ou temos o caldo entornado!
Perante esta modalidade deôntica, com valor de obrigação e inevitável tabefe (eufemismo!), eu punha-me a pau e comia tudo. Tudo, também porque sempre gostei de caldo (verde, galinha...).
Ao fim de tantos anos, já perdoei a violência do discurso e do gesto, porque, cedo, compreendi que a culpa era do curso dos acontecimentos.

Ora, nos últimos dias, voltei a sentir-me sob ameaça! Uma ameaça inesperada, porque vinda de um homem tão importante como o presidente Durão Barroso: - Se o Tribunal Constitucional não fechar os olhos às diatribes do governo, teremos o caldo entornado!

Como está na moda a aplicação retrospetiva de medidas, também eu deveria poder rever as classificações dos meus alunos de 1975-78, isto é, entornar o caldo àqueles jovens do MRPP que me entravam na sala de aula aos gritos recusando ler Os Esteiros, A Abelha na Chuva, Os Gaibéus (dos sequazes do «Barreirinhas Cunhal»!) ou até Os Lusíadas
A rapaziada é a mesma só que mais gorda, mais velha e néscia!

6.10.13

Um domingo pardo!

Um domingo pardo!
De notícias não tomei nota que a televisão só dá conta da prosápia de quem nos desgoverna.
Às voltas com  "coelho" e coalho"*, sem entender o processo fonológico, como se nesta triste língua fosse possível tal evolução. Eu, sem compreender que relação estabelecer entre "coelho" e "coágulo", quando, de súbito, descobri que um coelho pode ser o coágulo que nos causa fatal apoplexia.
Esta minha fragilidade linguística foi, por seu turno, causa de ter passado uma parte do dia a sujeitar-me às exigências de comerciantes digitais (Porto editora e Microsoft, respetivamente) que para uma aplicação exigem um browser (Google Chrome) e para outras um outro (Internet Explorer), e que impõem ao utilizador, para que possa aceder a um produto, que aniquile o inimigo...
No meio desta azáfama, ainda tive que me perder no novo Dicionário Terminológico que é um verdadeiro alfobre de preciosismos e que os nossos autodidatas seguem à risca, lembrando aqueles escolásticos que durante séculos nos encheram o bucho de fantásticos silogismos...

* Com tudo isto, acabei por perceber que neste país preferimos o exemplo da dissimilação fonológica (ou será dissimulação), criando a cada passo equívocos com que nos vamos entretendo.

5.10.13

Perdão fiscal até ao Natal

Perdão fiscal até ao Natal!
Vale a pena não pagar a tempo e horas. Vale a pena deixar afundar a Segurança Social! Vale a pena colocar o dinheiro em paraísos fiscais!
Porque há sempre um governo magnânimo, cristianíssimo, pronto a perdoar. E já nem é preciso esperar pelo arrependimento quaresmal. De outubro a dezembro, o infrator sabe que não irá preso, não pagará juros e, provavelmente, terá desconto...
Diz o governo que com esta medida irá arrecadar 600 milhões de euros! E quanto arrecadaria se deixasse prender os infratores e não lhes perdoasse a demora?
Deste modo se entende por que motivo certos feriados foram extintos - 5 de outubro e 1 de dezembro. A sua manutenção ainda poderia criar algum sobressalto patriótico que atirasse para as masmorras o cristianíssimo governo e os seus compinchas.
 
Até já o anti-masoch camarada presidente quer celebrar os valores de Abril! E percebe-se porquê!  "Valor" é um daqueles termos polissémicos que encheu os bolsos dos compinchas de várias gerações.