18.12.14

Não imaginemos...

«Não imaginemos o sentido como uma relação oculta que o espírito estabelece entre uma palavra e uma coisa, nem que esta relação contém a totalidade dos usos de uma palavra, tal como se poderia dizer que a semente contém a árvore.»Ludwig Wittgenstein, O Livro Azul.
  1. 'Imaginar' só acontece quando a mente combina imagens, isto é, estabelece relações, não entre objetos (físicos), mas entre as representações mentais que deles fazemos. Se no procedimento existe mistério não sei! De qualquer modo, submetemo-nos à convenção para que a sociabilidade não se perca.  
  2. Não sei o que seria da Religião e da Poesia se, de repente, o 'oculto' desaparecesse. O Simbolismo extinto e substituído pelo USO...  a descrição imperaria até à náusea absoluta! Toda a iconografia abolida!
  3. Dar forma à totalidade dos usos mataria qualquer relação. Nem sequer as metonímias sobreviveriam!
  4. Por este andar, afirmar que a semente contém a árvore não faz qualquer sentido, nem em potência...
  5. Condenar Sócrates por corromper a juventude não faz sentido, pois o Tribunal não conseguiu identificar as vítimas. Que se saiba, nenhuma apresentou pessoalmente queixa!
  6. Chegado à última página do Livro Azul, estou por perceber a razão do adjetivo. Será que o caderno do filósofo era 'azul'? Ou o livro só era 'azul' para ele por uma qualquer relação oculta que me escapa? E ainda me falta ler o Livro Castanho!

16.12.14

O olho periférico

Do lado direito, quatro jovens conversam animadamente, indiferentes ao esforço daqueles que, num último esforço, procuram recuperar o tempo perdido.
Do lado esquerdo, outro jovem dorme descaradamente, depois de uma breve incursão por um descarnado "amor de perdição"...
Ao centro, o grupo dos mais interessados, apesar de alguns se manterem distantes como se algo os obrigasse a estar presentes. Em certos momentos, o silêncio surge, não por milagre, mas por respeito à veemência discursiva do apresentador...
Hoje, por um momento, Os Demónios de Dostoievski saíram da penumbra. Traziam com eles todos os fantasmas nietzschianos...   

( Na realidade, do século XIX pouco resta consciente, apesar de vencidos pelo mais brutal que há na filosofia alemã.)

15.12.14

Sempre a adiar...

«O sentido que tem para nós uma expressão é caracterizado pelo uso que dela fazemos.» Ludwig Wittgenstein, O LIVRO AZUL.

Quando alguém afirma "há um prazo para a tarefa", espera-se que o interlocutor compreenda o sentido de «prazo», o associe à gramática do tempo, não se deixando cair «na última hora»... «Deixar tudo para a última hora», para além de revelar falta de brio, mostra o uso incorreto do termo, como se a fronteira se tivesse diluído no éter.
Na véspera do último dia de aulas do primeiro período, continuo a receber trabalhos de «última hora». Os seus autores esperam, assim, melhorar a classificação que, por definição, deve corresponder ao resultado da avaliação contínua.
Por este andar, irão gastar a vida sem chegar a compreender o sentido do «prazo». Sempre a adiar até que o prazo se esgote definitivamente... 


   

14.12.14

A cor da miséria

Desfeita a rotunda, subi na direção da vivenda em ruínas no centro de um terreno que, por vezes, me desperta o instinto agrário, se tal existe... Desta vez, apenas confirmei que o prédio ainda continua à venda, pois a minha atenção desviou-se para um desconjuntado número de indivíduos imóveis. Estavam defronte do Centro Cristão da Cidade, de costas voltadas para a Casa de Repouso das Irmãs...
Não me parece que este grupo esperasse pelo momento de reflexão bíblica promovida pelo Pr. Mário Rui, mentor de uma congregação do Centro Cristão Vida Abundante. Cada um daqueles indivíduos, de idade compreendida entre os trinta e os 50 anos, estava em silêncio e tinha em comum o castanho sujo e pálido...
Do outro lado da rua, adjacente à Casa da Cidade, sobre uma mesa com cerca de dois metros, eram visíveis caixas fechadas. Não muitas! Algumas senhoras sorridentes cercavam a mesa como se o banquete estivesse pronto a ser servido...
E eu passei,  pensando que a estatística governamental se deve ter esquecido daqueles homens ali parados à espera...

13.12.14

O frio súbito

O frio súbito nas costas, no ventre, no pescoço, nos pés não decorre da temperatura ambiente. Quanto maior é o agasalho, maior é o estado de algidez local. 
O pânico instala-se e o discurso torna-se incoerente e cruel. A memória parece ausentar-se e os gestos desenvolvem movimentos que lembram ritos litúrgicos.
Torna-se necessário repensar as possíveis causas do arrefecimento corporal e, sobretudo, procurar o sentido da correlação com o processo mental... Aparentemente, é a mente que é afetada pela hipotermia.

De momento, a perturbação parece diminuir... No entanto, as rotinas continuam redundantes.

12.12.14

Uma imagem é uma imagem

«... O sentido em que dizemos que uma imagem é uma imagem, é determinado pelo modo como a comparamos com a realidade.» Ludwig Wittgenstein, O Livro Azul.

Há quem tudo faça pela imagem. Pode ser uma imagem de beleza, de harmonia, de qualidade, por junto ou em separado. Uma beleza postiça, uma harmonia martelada, uma qualidade herdada...
Em vez de compararmos a imagem com a realidade, preferimos fantasiar a realidade. A época de Natal é, por excelência, o tempo da imagem...
            ... o tempo em que se esconde a violência, o insucesso, a pobreza, a doença, a injustiça... E o melhor é não falar mais disso!  
                                                         Ignoremos o modo!

10.12.14

Os humanos são grandes caçadores no desenho de Jorge Castanho


«Não sei se o desenhador, Jorge Castanho, vive fascinado pelo bestiário medieval, parece-me, no entanto, que ele foge do peso dos homens...» 

Há tempos ousei rabiscar meia dúzia de ideias sobre os desenhos expostos no CAM, sugerindo que este investigador não teria como principal fonte os bestiários medievais, no sentido em que se inspiraria em textos e ilustrações imaginários.
(...)
Hoje, ao relembrar METAMORFOSE de Franz KAFKA, senti que este autor poderá ter tido alguma influência no modo como o Jorge lê a realidade... Uma realidade espumosa em que o ser humano se deixa facilmente afectar pela imagem.

Quero com isto dizer que os pavões se deslumbram de tal modo com as próprias penas que não se apercebem quão injustos podem ser quando a informação transmitida é parcial e, escandalosamente, omissa. Não querendo incorrer no mesmo erro, aqui confesso que a fotografia de Jorge Castanho e da sua criatura imaginada é do poeta António Souto.

E como não quero dizer mais do que o necessário, vou vestir a pele de HOCHIGAN:

« Descartes refere que os macacos podiam falar se quisessem, mas que resolveram guardar silêncio para que os não obrigassem a trabalhar. Os Bosquímanos da África do Sul acreditam que houve um tempo em que todos os animais podiam falar. Hochigan incomodava os animais e um dia desapareceu e levou consigo esse dom.»   Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, O Livro dos Seres Imaginários.

Para terminar este monólogo, vale a pena assinalar que O LIVRO DOS SERES IMAGINÁRIOS contém a descrição de cento e dezasseis monstros que povoaram as mitologias e as religiões... o que me leva acrescentar que, também, não devemos descurar os monstros gerados pela Literatura e, sobretudo, os que nos circundam... Portanto, a matéria para entreter o lápis do Jorge Castanho é abundante e vária.
E já agora acrescento uns esclarecedores versos de Porfírio da Silva, da sua obra Poética, MONSTROS ANTIGOS:

Os humanos são grandes caçadores.
O animal mais fácil de ferir é o amigo.
É o que se chega mais perto:
aninha-se nas sombras frescas
à espera de uma ceia de palavras
e aí fica ao alcance das pedras.
(...)