3.3.15

Passos previsto por Marco Aurélio

« Os factos consequentes têm sempre com os precedentes um laço de afinidade. E não é como uma série de membros isolados, que teriam somente um carácter de necessidade; é um encadeamento lógico e, tal como os seres estão ordenados harmoniosamente, assim os acontecimentos manifestam não uma simples sucessão, mas ainda uma admirável afinidade.» Marco Aurélio, Pensamentos Para Mim Próprio, Livro IV, 45.

Passos não leu Marco Aurélio, mas é um homem sério que age sempre de acordo com o grau de conhecimento que tem em cada momento. Paga o que deve, mesmo se a dívida tiver prescrito, e por isso somos governados por um homem que não é perfeito, mas dorme como um justo.
A Igreja de Passos sabe que até Jesus Cristo hesitou antes de cumprir a vontade do Senhor e, como tal, mantém-se fiel à espera da ressurreição.
Aleluia!  

2.3.15

Pierrot que nunca ninguém soube que houve

1893-1970
Ontem, fui visitar a exposição ALMADA NEGREIROS - Pierrot que nunca ninguém soube que houve -, no Museu de Eletricidade. 
Apesar de os quadros mais importantes se encontrarem no Museu de Arte Moderna (FCG), a exposição dá conta de um percurso nem sempre conhecido e, sobretudo, do falso lado ingénuo do autor multifacetado, cujo saber crítico e pluridisciplinar é posto em relevo no acervo apresentado. Um estudioso incontornável do "fazer" do outro e, ao mesmo tempo, criador de uma obra singular que, apesar de modernista, não descurava a tradição portuguesa e europeia.
Pena é que, em nome de um cânone reducionista, a sua obra esteja cada vez mais esquecida, nomeadamente nas nossas escolas!

A exposição está aberta ao público até 29 de Março de 2015. A não perder! A entrada é gratuita.

1.3.15

De que tem mais medo?

«Tornou Blimunda a perguntar, De que tem mais medo, padre Bartolomeu Lourenço, do que poderá vir a acontecer, ou do que está acontecendo...» José Saramago, Memorial do Convento, 16ª edição, pág.192

Na verdade, o futuro não me pode amedrontar. Só o presente, receio, pois subo e desço e mais não sinto do que mediocridade, do que perversidade...
Se fosse à pesca, talvez pudesse sentar-me, em equilíbrio instável, e esperar que a tainha mordesse o isco... 

28.2.15

Falsas vítimas

«... a própria vítima deseja activamente o crime de que será vítima para que, como mártir, possa entrar no Paraíso e enviar o criminoso para o Inferno, onde arderá.» Fethi Beslama, La psychanalyse à l'épreuve de L'Islam, Paris, Aubier, 2002

Não é só Caim que deseja a morte, pois Abel participa ativamente nesse desejo, provocando Caim para que este o mate, para que também ele se liberte dos seus pecados. (Slavoj Zizek, Uma Vista de Olhos aos Arquivos do Islão)

É neste jogo que a Humanidade se deixou encerrar ao não ter resolvido o problema das linhagens, nascido da esterilidade de Sarai, esposa de Abraão, e da impulsividade da escrava Agar, que deu à luz Ismael, filho de Abraão.
A fixação nesse longínquo passado continua a assombrar os nossos dias... Ou, pelo menos, é pretexto para justificar, em nome de Alá / Jeová, as ideologias que só aparentemente são rivais, já que a morte de uma traria consigo a morte da outra...  

27.2.15

Tema adiado

Como ser justo poderia ser o tema deste apontamento. 
No entanto, o rei ordenou que se construísse um convento como agradecimento pela gravidez da rainha, e o romancista decide inventar um amor bestial, liberto de qualquer convenção e de qualquer precaução...
O rei, garanhão público, sentia-se humilhado pela esterilidade da austríaca...e esta, afogada em percevejos reais, só ao confessor poderia dizer a verdadeira causa do desconchavo - o que a História estabeleceu, devido ao segredo da confissão, acabou por não transpirar para a história dos fracassos originais... A culpa é do romancista e de mais ninguém!
Quanto a mim, José Saramago foi injusto com a rainha, sempre cercada pelo cunhado, de seu nome Francisco, famoso marialva caçador de marujos...
E acima de tudo, José Saramago foi injusto com o maneta e com a caçadora de almas moribundas que, sem cortesia, se amavam em qualquer esteira ou monte de palha, sem que daí resultasse qualquer prole, a única riqueza dos pobres... E nem se pode acusá-los de não terem construído qualquer engenhoca: ambos trabalharam na construção da passarola, sem esquecer que Baltasar se cansou a empurrar a carreta... E como recompensa, Blimunda esgota-se como peregrina e o maneta apaga-se no fogo da Inquisição... ao lado de «um que fazia comédias de bonifrates e se chamava António José da Silva» que tanto deliciavam sua majestade D. João V, o Magnânimo...

Em conclusão, mesmo para escrever este apontamento, em que o tema foi adiado, foi necessário ter, um dia, lido o Memorial do Convento. Por mais que digam o contrário, ser justo exige que se seja capaz de distinguir o leitor do charlatão...

26.2.15

Livres de senhores

«O universalismo de uma sociedade liberal ocidental não reside no facto de os seus valores (direitos humanos, etc.) serem universais no sentido de se aplicarem a TODAS as culturas, mas num sentido muito mais radical: isto é, nessa sociedade os indivíduos relacionam-se consigo próprios como "universais", participam diretamente na dimensão universal, contornando a sua posição social particular.» Slavoj Zizek, O Islão é Charlie?, editora Objetiva, fev. 2015

Quem procura uma sociedade livre de senhores só pode incomodar! 
Uma sociedade feita de indivíduos que se relacionam como "universais" e não como extensões de culturas, subordinadas a valores religiosos ou laicos, é o que parece defender o filósofo esloveno, Slavoj Zizek...

A leitura da última reflexão deste filósofo é da maior atualidade, até pela sua natureza provocatória. Na perspetiva de Slavoj Zizek, a Filosofia não existe para dar respostas, mas sim para fazer as perguntas certas. 

25.2.15

Se pouco mais sou...

Não muito longe, há quem perfure e martele de forma descontinuada! Não digo que tal aconteça todos os dias, mas o batuque tende a ecoar sempre que alguém vem, a título cada vez menos definitivo, instalar-se num dos apartamentos vizinhos.
O Destino assim terá determinado e eu não possa fazer mais do que cumprir... Afinal, de que serve o meu desejo de calma se pouco mais sou do que «pedra na orla do canteiro"!
Impedido de desafiar o Fado, aceito, resigno-me e abdico estoicamente de qualquer gesto mais abrupto.
O problema é que o ruído não chega apenas ao entardecer. A (minha) Sorte dita que, logo pela manhã, eu inicie a via sacra do rumor. Assim é ao longo do dia até que a perfuradora e o martelo, de forma descontinuada, completem o ciclo. E mesmo quando adormeço, os meus sonhos misturam jovens estridentes com o martelar de sirenes apressadas...
Que pena que a Fortuna não tenha determinado que eu seja apenas uma «pedra na orla do canteiro"!