22.5.15

E eu não sorri na cave do IMT...

«Evite as filas de espera e utilize o prazo que a lei lhe concede, procedendo à revalidação da sua carta durante os 6 meses que antecedem o dia em que completa as idades obrigatórias. E tenha em atenção que o documento não pode ser renovado com mais de seis meses de antecedência.
Se deixar passar o prazo de renovação corre o risco de multa por circular com a carta de condução caducada. Após 2 anos sem que tenha revalidado a carta, terá de efectuar uma prova prática caso pretenda obter novo título de condução.» Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I.P.)

Em 21 de Maio de 2014, fui ao ACP e tratei do processo de renovação da carta de condução, 6 meses antes do prazo se esgotar. Cumpri todas as formalidades, paguei 85 euros, e fiquei à espera...
Entretanto, fui renovando a licença de condução até hoje, inclusive, data em que o ACP me recomendou que o melhor seria deslocar-me à Elias Garcia, nº 103, Lisboa, informando que ia da parte deles, ACP... Para tirar uma fotografia... Fiquei a pensar que já tinha uma fotografia no cartão de cidadão e se ela não seria válida para o IMT.

Na posse de tal informação, desloquei-me à Elias Garcia, dei a informação ao rececionista que, por sua vez, me entregou um papelinho com o seguinte dizer: F176. E apontou-me a cave a que devia dirigir-me. Desci, a cave estava repleta de FFFFs. Olhei à volta e percebi que o rebanho estava ali todo para o mesmo; a única saída seria ser proprietário de uma senha verde ou, então, B, D, T...

Verifiquei a hora: 13 horas; o mostrador de senhas estava desligado; uma ovelha informou-me que tinham acabado de chamar o F103... Decidi esperar. De tempos a tempos, uma ou outra velha exaltava-se, porque as fotografias estariam a sair muito lentamente; haveria até problemas com as assinaturas. Lembrava-me novamente do cartão de cidadão.

Finalmente, às 15 h 20, o F176 foi chamado. A suposta fotógrafa pediu-me desculpa por se estar a rir de um chinês que acabara de sair. Tinha-lhe pedido que sorrisse, e ele nada. Disparou a máquina, e ele desatou a rir... Entretanto, perguntou-me se era portador de B.I. ou cartão de cidadão. Puxei da carteira, e entreguei-lhe o documento. Pediu-me para assinar sobre uma superfície vítrea, o que fiz de me imediato e, desta vez, perguntou-me se eu gostava da fotografia do C.C. Acenei que, por mim, tudo bem.

A senhora voltou a sorrir e disse-me que, dentro de duas semanas, receberei a carta de condução em casa. Eram 15 h 24!

E eu não sorri! Também não pedi o Livro de Reclamações até porque ele não se encontrava naquela Cave.

21.5.15

Desfasado da vida

Gradiva
(...) «la démarche de Gradiva, telle que l'avait reproduite l'artiste, était-elle conforme à la vie?» Jensen, Gradiva

Norbert Hanold, fascinado por uma escultura, artisticamente mediana, batiza-a de Gradiva, em honra de Marte Gradivus, o deus da guerra avançando para o combate...
O que lhe interessa não é a vulgaridade da figura feminina, apesar de a imaginar de estirpe nobre, mas o movimento dos pés e, particularmente, comprovar se o movimento representado está conforme ao movimento dos pés de uma mulher real...

Há 40 anos li esta obra, no âmbito da cadeira de Literatura e Psicanálise. Como a maioria dos estudantes da época, fascinado pelas teses freudianas, que tudo explicavam, li de rajada a novela de Jensen, e, agora, percebo que dessa leitura nada ficou, a não ser, talvez, pulsões contraditórias que faziam bem ao ego e matavam definitivamente a alma.

Tal como Norbert Hanold, sinto que a arte  continua desfasada da vida, só que eu já desisti de procurar a conformidade entre ambas...
Doravante, vou seguir o esforço do arqueólogo, sabendo, de antemão, que o único prazer está em não trocar os pés... 

20.5.15

O lado obscuro da vida

Quero escrever  atos "subversivos" e começo por hesitar; paro em 'sub', indeciso quanto à sequência, ainda avanço para 'vers', mas algo me faz estancar: a imagem parece não corresponder à ordem mental, um pouco como se o cérebro desse uma ordem e a mão não soubesse como cumpri-la; numa fração de segundo que, no contexto, se assemelha a uma eternidade, corrijo e escrevo "revolucionários"...
Grande parte do grupo mantém o silêncio, talvez por compaixão; há, no entanto, um ou dois sorrisos espontâneos, rasteiros, daqueles que não perdoam...   

Vivemos num interminável ajuste de contas em que deixámos de ser capazes de dar valor à compaixão e apenas amplificamos o ruído em que, por vezes, somos obrigados a mergulhar...

Esse é o lado obscuro da vida, aquele que nos faz desistir como trapos atirados para bem longe. E o queixume de nada serve, porque já não compreendemos o valor dos 'atos subversivos'...

19.5.15

O Meu Irmão, um romance negro

« E é assim o interior de Portugal: uma imensa mulher feia e viúva fechada à janela do primeiro andar de uma velha casa, esperando sair à rua numa ocasião importante como o enterro do doente que nunca conheceu mas em relação ao qual sente alguma afinidade porque vivia na terra ao lado.» Afonso Reis Cabral, O Meu Irmão, pág. 265, Prémio Leya 2014

O leitor não escapa a um sentimento de tristeza. A incapacidade do irmão mais velho de compreender e aceitar o único verdadeiro prazer de Miguel - estar com Luciana - cresce até a um ponto em que a sanidade mental se esfuma por inteiro, tornando-se inseparável da violência que elimina o único objeto do desejo...
A patologia, neste romance, acaba por ser marca não de Miguel, de Luciana ou de Quim, mas, sim, de quem se considera "normal". 
Parece que este romance  procura exorcizar o lado obscuro do Portugal esclarecido, senhor do seu destino, mas não o consegue, porque a cegueira é o seu pecado original, seja no Tojal, no Porto ou em Lisboa...
Talvez por isso, o Eusebiozinho queirosiano tenha aflorado na página 279:

«As irmãs entregaram-mo semanas depois. Entraram na casa que eu alugara no Porto com ele pela mão, porém ligeiramente atrás como o Euzebiozinho nas saias da mamã.»

PS. Apesar de tudo, em Portugal, nem todas as mulheres são feias e, sobretudo, gordas. Este estereótipo parece-me excessivo.


   

18.5.15

Como é que nos deixamos enganar?

Como diria o Vicente (Felizmente, Há Luar!, de Luís Sttau Monteiro): «É simples: digo-lhes metade da verdade. Sonham com o Gomes Freire? Lembro-lhes que o Gomes Freire é general e falo-lhes da guerra. Haverá alguém que se não lembre da guerra? A vida tem sido uma guerra atrás de outra... Odeiam os Franceses e os Ingleses? Chamo estrangeirado ao Gomes Freire... // O que não lhe digo é que se ele não fosse estrangeirado era... era como os outros... era mais um senhor do Rossio...»

Olho as capas dos jornais, hoje, vermelhas, amanhã azuis ou verdes, tanto faz, e parece que o país entrou em delírio: um clube bicampeão, super juiz caça mil milhões, a Irina traída dezenas de vezes, professores contra a entrega de escolas às câmaras, o governo quer saber se a Azul cumpre regras, BASTA de Almada, digo, de Costa, o do PS, Fátima dá alento ao povo português, líder skinhead pensa em novo partido político...

E ainda há aquela notícia de que o presidente do conselho científico do IAVE critica o Crato. Acordou agora! Quantos meses faltam para as legislativas?
Apesar de tudo, o Vicente tinha mais carácter do que esta súcia que nos informa, do que esta súcia que nos avalia, do que esta súcia que nos governa... 

17.5.15

Henrique Neto na TSF

Não sei se o homem tem alguma falha de carácter, critério, para mim, fundamental para avaliar as palavras e os atos de quem se propõe gerir a res publica, no entanto, pelas respostas que deu durante a entrevista, parece-me ser um português genuíno, para quem, a questão essencial é a visão estratégica assente na produção de riqueza e consequente criação de emprego.
Por outro lado, das suas palavras depreendi que as direções partidárias (e não só!) afastam todos aqueles que, pela sua idoneidade e experiência empresarial ou outra, lhes podem fazer sombra...
Não é a primeira vez que dou atenção às palavras de Henrique Neto, mas, hoje, confirmei aquilo que anda longe de ser praticado: o debate político deve assentar no compromisso escrito quer de quem questiona quer de quem tem obrigação de responder. E se compreendi bem, os governantes dos últimos 20 anos não sabem escrever, pois não respondem por escrito às interpelações...
Ou, em alternativa menos simpática, temos sido governados por homens sem carácter que, quando recorrem ao texto escrito, mais não debitam do que o que lhes foi escrito pelos assessores... aliás, também, o fazem quando, com recurso ao teleponto, discursam nas capelinhas...  

16.5.15

Freud mudou de prateleira

Apercebo-me agora quanto me irrita que o Freud tenha mudado de prateleira. Durante anos, esteve à mão, apesar de com o tempo ter caído fora do olhar. Passou a ser citado de cor, para mais tarde deixar de estar presente nas palavras que iam suportando o discurso... A leitura de Freud fora longa, durara cerca de dois anos, ora em francês ora em espanhol...
E Freud é apenas um entre as centenas que mudaram de lugar e jazem num recanto da parede do fundo, como se esta sala se tivesse transformado num cemitério de autores...
Nada do que acabo de anotar teria surgido se a minha mente não estivesse submetida ao princípio da CENSURA. Continuo sem saber lidar com a proibição de fazer perguntas, isto é, de dar sequência ao DIÁLOGO, e apesar de tudo, o Platão mora mais perto; bastam alguns passos para que Sócrates possa sair da prateleira e dar a volta à sala, deslumbrando os interlocutores, sempre prontos a colocarem-lhe as perguntas adequadas...
Por outro lado, as reticências também começam a aborrecer-me; parecem pressupor que, do lado de lá, está alguém capaz de reconstituir o fluxo dialogístico, e não assinalar um qualquer modo de pausa de escrevente cansado; já sem falar no ponto e vírgula que se vai instalando só para  impedir que eu desate a transcrever frases outrora sublinhadas:
  • « Selon le proverbe antique, les favoris des Dieux sont ceux auxquels ils font quitter la terre à la fleur de leur âge
  • «Nous dirions que c'est en gage d'un prochain retour que Gradiva a oublié ici son carnet car nous prétendons qu'on nous oublie rien sans un mobile secret ou un motif caché.»  
Ao citar Freud, Délire et Rêves dans la grande "Gradiva" de Jensen, mais não faço do que suspender a preguiça que me impedia de me empoleirar no canto da sala; como faltou o escadote, saltou para aqui a vaidade não consumada de poder ter sido escolhido pelos Deuses ou o desejo secreto de ainda conseguir voltar a ler o que, entretanto, já esqueci...
(...)
Freud e Platão, colocados involuntariamente longe um do outro, só estão aqui porque continuo a braços com a leitura de O MEU IRMÃO e, sobretudo, com uma questão que estou proibido de fazer: Será que Afonso Reis Cabral começou a desconfiar que o papel que atribuíra ao narrador ganhou tal autonomia que, enquanto Autor, se viu desapossado da narrativa, vendo-se assim na necessidade de introduzir um segundo narrador que controlasse o primeiro? Isto é, o Autor é, afinal, um Censor!