8.1.20

Da instrução do remoto infante

Os Lusíadas, canto III, 6 …

Entre a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta setentrional do Sol luzente,
E aquela que por f ria se arreceia
Tanto, como a do meio por ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela parte do Arcturo e do Ocidente,
Com suas salsas ondas o Oceano,
E, pela Austral, o mar Mediterrano.

Da parte donde o dia vem nascendo,
Com Ásia se avizinha; mas o rio
Que dos montes Rifeios vai correndo,
Na alagoa Meótis, curvo o frio,
As divide: e o mar que, fero e horrendo,
Viu dos Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Tróia triunfante
Não vê mais que a memória o navegante.
(…)
Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,

Em cujo senhorio o glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A fortuna inquieta pôr-lhe noda,
Que lhe não tire o esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si cria.
(…)
"Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,

E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na ardente
África estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela então os Íncolas primeiros.

Fernando Pessoa

 O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.


5.1.20

O frio não apaga a luz da manhã

Jardim Guerra Junqueiro
O frio não apaga a luz da manhã nem faz esquecer o desassossego da viagem interminável de quem, num ímpeto solar, se lançou ao caminho do mar...
Os trabalhos dos dias de regresso nem seriam assim tantos, não fosse o incómodo da vida safada daqueles que desconhecem o compromisso, o respeito e a responsabilidade…
A safadeza colou-se de tal modo à pele que é cada vez mais difícil distinguir a ignorância da maldade, se não forem consanguíneas…
Não fosse essa inclinação atávica, a luz desta fria manhã colheria em nós o fruto destes cactos, mesmo que alguns espinhos continuassem na nossa memória…
Entretanto, na Rua dos Navegantes, as grades corridas. Por perto, João de Deus - a referência cada vez  mais esquecida!
(…)
Ah! Parece que a Sagres zarpou. Só volta em 2021... vai em busca do Encoberto… ainda a tempo de entronizar Sua Alteza.

3.1.20

O atraso como regra

A partida estava agendada para 6 horas da manhã de ontem, na estação rodoviária do Oriente. Ao certo, não se sabe qual é a empresa nem o local de embarque - minutos antes das 6, chegam dois autocarros da Ibercoach… Entretanto, o passageiro lá conseguiu perceber que faz parte da lista afortunada de viajantes com destino a França, Luxemburgo e Alemanha…
No controlo e no arrumo de bagagens a cabo do motorista, somem-se 50 minutos… passageiros há que chegam às 6:30, como se fosse habitual! 
Enfim, o autocarro nº 100 lá parte às 6:54...
A viagem é longa, a passageira esperava chegar a Hamburgo por volta das 24 horas de hoje, necessitando de estar em Frankfurt (como previsto) por volta das 18 horas… Mas não, vai perder a ligação. Vai ter de comprar outro bilhete. Talvez chegue amanhã, a Hamburgo, às 6 h da manhã!

1.1.20

O trabalho do leitor

«Um biógrafo não deve nunca elaborar e enfeitar, mas um leitor que faça o seu trabalho consegue formar, com base num punhado de pistas deixadas aqui e ali, um retrato completo do retratado e do que o rodeia. Dos nossos murmúrios, ele extrai uma voz; muitas vezes, mesmo se nada dizemos a esse respeito, vê nitidamente como era esse que estamos a retratar, e, sem uma palavra que o guie, adivinha precisamente o que lhe iria na cabeça. Ora, é mesmo para leitores assim que escrevemos, pelo que um tal leitor facilmente verá que Orlando era uma estranha mescla de estados de espírito…» Virginia Woolf, Orlando, pág. 55, cavalo de ferro, 2019

(Biografia. Retrato. Estado de espírito.)

Ao leitor, mais do que elaborar retratos, cumpre especificar e interpretar a incongruência dos estados de espírito gerados pelo apagamento da Memória, resultante da descontinuidade das vidas e da evolução tecnológica.
Um destes dias, a Orlando, pouco interessa se macho se fêmea, nada necessitará de fazer e, sobretudo, ver-se-á liberto da necessidade de pensar… talvez possa mergulhar na Natureza e por lá ficar até ser submerso.

31.12.19

45 anos de serviço público

Bem, estão concluídos 45 anos de serviço público. Ficam com quem os sofreu, porque o seu exercício nunca foi fácil, embora, por vezes, fosse gratificante… 
Ficam com quem os sofreu porque, demasiadas vezes, o sujeito de aprendizagem perdeu identidade para se transformar num objeto de ensino… 
Quando a Memória destes 45 anos se esbate, ao contrário de muitos outros que se orgulham de numerosos sucessos, resta um gosto amargo por não ter conseguido aplicar uma pedagogia diferenciada que libertasse cada aluno da formatação imposta pelo sistema educativo…
Resta um gosto amargo porque, ao longo destes 45 anos, os conteúdos foram perdendo significado, criando um tal vazio que poucos são, hoje, capazes de distinguir a verdade da mentira, como se a Ilusão nos bastasse…

30.12.19

A gaivota do 12º andar

Sobre o aparelho de ar condicionado do 12º andar, enquanto a gata dorme, a gaivota alimenta-se, sem perceber que está a ser observada…
Sem perceber? Esta certeza é capaz de ser exagerada… Afinal, o que sei eu da perceção das gaivotas…
E a Sammy continua a dormir, ela que espera horas pela visita de uma qualquer ave…
Por mim, vou continuar a leitura de Orlando, que já se encontra na fase fêmea, sem que eu compreenda como é que, à época, se passava de macho a fêmea com tamanha facilidade. 
Alquimia literária!
De qualquer modo, amanhã a gaivota regressará. A mesma? Macho? Fêmea?

29.12.19

Não há quem regule o trânsito

Os autocarros aproximam-se do terminal rodoviário na faixa que lhes foi destinada, no entanto ficam bloqueados. Ninguém parece preocupar-se.
Centenas de passageiros que optaram pelo transporte coletivo esperam impacientemente por terminar ou iniciar a viagem.
Não há um agente que regule o trânsito, que ponha cobro ao egoísmo de quem só pensa na sua comodidade…
A verdade é que dois ou três agentes na zona da Estação do Oriente seriam suficientes para tornar o trânsito mais fluido e para evitar o aumento da temperatura na zona - cerca de 2 graus.
E depois queixam-se das alterações climáticas, sem esquecer o estado depressivo em que vamos caindo…