17.6.06

Poderia dizer-te...

Poderia dizer-te, qual Marco Polo dos tempos modernos, que a chuva ameaçou cair sobre a cidade, mas isso tu sabes: não passou de uma ameaça...
Poderia dizer-te como é ficar em vez de partir, mas isso tu sabes: são mais as vezes que ficas do que partes...
Poderia dizer-te que o cansaço tomou conta dos corpos, mas tu sabes que isso não é totalmente verdade: há sempre uma buzina, uma bandeira que esvoaça nas avenidas da cidade...; há sempre «uma bola branca em cima da cabeça /Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...»
Poderia dizer-te que a Gabriela Llansol publicou novo romance destinado aos 'legentes', que não aos leitores - "Amigo e Amiga. Curso de Silêncio 2004" -, que Mário Ventura Henriques nos deixou, desgostoso da implosão da sua amada Tróia, que David Ferreira não compreende por que motivo o seu saudoso pai - David Mourão Ferreira - foi sendo esquecido ao longo dos últimos dez anos, que Mário Cláudio está convencido que, com o seu 'Camilo Broca', está a prestar um grande serviço à Literatura, transformando o Camilo Castelo Branco numa «caixa de ressonância», talvez num tam-tam... Mas isso tu não queres saber! De que serve sabê-lo? Nem sequer será assunto do exame de Português do próximo dia dezanove! A única coisa que talvez te pudesse interessar seriam as respostas, desde que não fosses obrigado a elaborar as perguntas...
Poderia dizer-te que voltei a ver 'Notorious" (1946) de Alfred Hitchcock, mas isso só serve para me mostrar que a minha memória só se concentra em pormenores, como os da 'chave', da 'adega' e da 'garrafa'. Que mistério é que estes signos poderão esconder-me? Não sei, nem tu podes saber.
Hoje, quero, no entanto, dizer-te que ainda não esqueci o A. Cosme da primeira metade dos anos 80. Hoje, quero, dizer-te que não posso esquecer o grito de dor que me deixou na caixa do correio, em Agosto de 1985:
Não sei ao que me disponho
Nesta angústia que me enlaça;
O tempo é só o que a alma passa
E eu só quero viver outro sonho.
Já não sei mais amar esta vida
Nem defender o que ela me oferece;
Minh'alma mora num corpo que arrefece
Favorecendo esta mágoa tão sentida.
Sou uma substância inerte em peso
Cujas qualidades se perderam na viela
Onde supus uma luz, a mais bela,
Mas que escureceu meu coração indefeso.
Já nem sei bem o que é sofrer;
Acabo por não ter o que me enlaça
E, cadáver rejeitado só de massa,
Esqueço a fonte que me fez viver.
Poderia dizer-te que só, hoje, tive coragem para abrir a caixa do correio, mas isso tu preferes que não seja totalmente verdade...

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