4.11.06

O pressuposto

Figura em que deduzimos existir um enunciado implícito anterior ao enunciado explícito. Este processo, geralmente, esconde uma forma de manipulação mais ou menos subtil. De modo a celebrar os seus cinquenta anos, a Fundação Calouste Gulbenkian (1956-2006) está a promover o ciclo Como o cinema era belo. A ideia é meritória, os bilhetes são baratos (2,50 €), mas o público, pelo menos pela amostra, já passa maioritariamente dos 50…, respirando, só por si, alguma nostalgia. A amostra a que me refiro (re)visitou hoje o filme de Jacques Tourneur Stars in my Crown ( Estrelas da Minha Coroa), produzido nos Estados Unidos, em 1949. Trata-se de um filme em que um implacável ex-combatente se torna pastor pacifista capaz de converter o mais empedernido ateu; um filme em que o médico e o pastor, após terem exacerbado o conflito entre o corpo e a alma, acabam por se aliar; um filme em que o ambicioso e racista americano branco, capaz de enforcar o negro por um pedaço de minério, acaba por se deixar convencer pela argúcia do pastor. Em 1949/50, nos Estados Unidos, apesar de nem tudo ser belo, o bem acaba sempre por vencer o mal. E o cinema cumpria, assim, a missão de nos convencer que nem a doença, nem o ateísmo, nem o racismo poderiam jamais sair vencedores… Como o cinema era belo! No entanto, não deixa de ser estranho que, em 2006, se possa reiterar a ideia dessa beleza imaculada do cinema de meados do séc. XX. Como justificar a luta de um homem como Martin Luther King, assassinado em 1968? Bem sei que há quem defenda a estética como uma categoria independente da ética ou da ideologia! De qualquer modo, sobra o pressuposto que poderemos enunciar do seguinte modo: O cinema deixou de ser belo ou Hoje, o cinema é grotesco. O que me leva a pensar que o ciclo Como o cinema era belo manipula, de facto, o espectador, levando-o a acreditar que o presente é grotesco, ao contrário do passado que seria inevitavelmente sublime… ( Os espectadores de 4 de Novembro de 2006 bateram palmas, algumas tímidas.) A nostalgia das origens emerge das entranhas da Fundação…, que se arrisca a tornar-se numa categoria estética desfasada da grotesca realidade, em que a palavra ou o ícone não bastam para resolver os conflitos.

Sem comentários:

Enviar um comentário