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29.6.15

Ó gente impotente, feita de lama

O presidente da nossa apagada república, sempre que fala, deixa-me aborrecido e triste. Hoje, porém, senti-me envergonhado ao ouvi-lo referir-se às opções e à situação da Grécia.

Lembrei-me, entretanto, da sabedoria de Aristófanes e de Safo, na bela tradução de David Mourão-Ferreira:


Ó homens, cuja natureza é obscura,
ó homens semelhantes à raça das folhas,
ó gente impotente, feita de lama,
irmã gémea da sombra,
ó seres efémeros e sem asas,
ó mortais infortunados,
ó homens vagos como os sonhos
- volvei para nós a vossa atenção,
para nós que somos imortais e vivemos nos ares,
que nunca envelhecemos, que pairamos no éter
com pensamentos eternos
e colocamos, em tudo,
o segredo da perene juventude!

Aristófanes, As aves, trad. David Mourão-Ferreira

Quando arrefece o coração das pombas,
desfalecem, na sombra, as suas asas...

Safo, fragmento 42, trad. David Mourão-Ferreira 

25.6.15

Uma interrogação antiga

O que hoje aqui trago resulta de uma interrogação antiga: - Para quê insistir no conceito "união europeia"?
Sendo o território europeu constituído por partes, social, económica e culturalmente diferentes, o projeto de as (re)unir só faria sentido se a estratégia fosse de convergência. Ora, se observarmos a realidade europeia das últimas décadas, assistimos, pelo contrário, ao crescimento das desigualdades, tendo como principal ator o euro.
Quando olho para a realidade portuguesa, verifico que, em matéria de transportes, não estamos mais próximos do centro da Europa. Verifico que, em termos do desenvolvimento do tecido industrial e tecnológico, em vez de produzir, continuamos a importar... Verifico que, em termos culturais, a grande maioria dos portugueses tem, hoje, menos informação do que nos anos 60 do século passado.
Na verdade, por mais que procure, não encontro a identidade europeia que poderia justificar a convergência entre os territórios, a eliminação de fronteiras... De facto, aquilo a que assistimos é a criação de novas fronteiras, é a condenação dos mais pobres... Em particular daqueles cuja História é mais antiga e que contribuíram para a afirmação da Europa no mundo...

Claro que a vitimização de nada serve, porque, infelizmente, não somos capazes  de nos unirmos para definir um rumo de convergência europeia ou, no limite,  romper com a mentira europeia...
  

24.6.15

Seres imorais

«Pour entrer dans les songes de l' homme, if faut être un homme. Il faut être un ancêtre, être vu dans une perspective d'ancêtres, en transposant à peine des figures qui sont dans notre mémoire.»Gaston Bachelard, La Bible de Chagall, in Le Droit de Rêver.

Poder-se-á pensar que sonhar é uma das múltiplas formas de evasão, de voltar costas à realidade, no entanto, nada mais falso.
Neste tempo de crise, deparamos com dois problemas insolúveis. O primeiro resulta do sonho coletivo se basear na satisfação de desejos de curto prazo. O segundo tem origem na natureza dos decisores, que, de verdade, não são homens capazes de traçar um desígnio, de acordo com os valores que, ao longo dos tempos, orientaram as comunidades que, supostamente, deveriam guiar.

O problema dos decisores é que não têm memória dos acontecimentos e das figuras fundadoras das culturas e das organizações, reduzindo tudo à lei da oferta e da procura. E nessa voragem, o cidadão mais não faz do que responder a estímulos sabiamente ministrados por quem procura o enriquecimento célere e sem olhar a meios...
Esta é uma outra espécie de homens que nada tem a ver com a Bíblia de Chagall:

«Les êtres présentés par Chagall sont des êtres moraux, des exemplaires de vie morale.» op. cit.

Oiço as notícias da Grécia, de Bruxelas, de Portugal... e não consigo entender os sonhos dos homens, só descortino personagens sem moral que se movem em circuito fechado, preocupadas apenas com o vil metal...

23.6.15

Com tanta juventude sem futuro...

Escrever sobre a situação na Grécia é extremamente difícil, apesar de as notícias não faltarem. No entanto, a informação essencial não sofre qualquer alteração. A Grécia está cada vez mais endividada e uma parte dos gregos parece destinada a arcar com a despesa...
Só que, honestamente, não consigo avaliar qual é a parte sacrificada, pois as reportagens parecem sobrevoar as ilhas e os templos, sem descerem ao terreno, isto é, sem mostrarem quem beneficia com a crise e quem tudo perde.
A verdade é que, também, é difícil escrever sobre a situação em Portugal pelos mesmos motivos.

A informação é tutelada pelos grandes grupos financeiros e económicos, para quem os governos do Sul da Europa não passam de correias de transmissão. Poder-se-ia pensar que as redes sociais poderiam disponibilizar informação independente, mas tal não acontece. Nas redes sociais, não há informação.

Com tanta juventude sem futuro, creio que esta não está a saber aproveitar o saber e as redes sociais para construir uma rede de informação transnacional, que, liberta dos polvos que nos acorrentam, dê conta dos problemas e permita encontrar soluções em rede...

22.6.15

Trauma e recalcamento

Mais dia menos dia, o espaço fotografado, apesar do conjunto de símbolos que o constituem, nada significará para aqueles que, por formação, se veem convidados a ignorar o passado.
A sombra do esquecimento e do isolamento vai avançando de modo que, num futuro próximo, surgirá quem defenda que o desfasamento será resultado de um qualquer recalcamento por explicar. 
E o problema do recalcamento é que, apesar da eventual cura, o psicanalista, em regra, não explica a origem do trauma.
Acabo de confirmar esta ideia ao concluir a releitura de "Délire et rêves dans la "Gradiva" de Jensen", de Freud. Norbert Hanold, por motivo que não é explicado nem pelo novelista nem pelo psicanalista, esquece completamente Zoé Bertgang, amiga de infância, para, mais tarde, a redescobrir nas ruínas de Pompeia sob o fantasma de Gradiva... 

(...)

Infelizmente, a mim, ninguém me cura do trauma que é estar 6 horas, na rua de Entrecampos, à espera de uma explicação para a falta de comunicação entre o Centro Nacional de Pensões e a Caixa Geral de Aposentações. 
Acabei, no entanto, por perceber que o termo em moda é "divergências". O atraso resulta, afinal, de divergências entre o Centro Nacional de Pensões e o Centro Distrital da Segurança Social de Lisboa. Como o período em causa se situa entre 1974 e 2005, estas "divergências" parecem estar para durar...

   

20.6.15

Desatenção minha

Jardim da Estrela, Lisboa
É esta mania de ver tudo o que se passa à nossa volta que dá cabo do trabalho!
A desatenção é a principal causa da falta de produtividade, do aumento de acidentes de viação,  do fraco rendimento escolar. 
A situação parece estar a agravar-se! Vi escrito que 75% dos portugueses se preparam para votar no PSD / CDS...
Desatenção minha, que não encontro fundamento para tal intenção. A não ser a velha desatenção, sem esquecer que hoje não há um único órgão de comunicação (outrora, social) que não esteja ao serviço do Governo e da Presidência da República... E claro, a ausência de soluções concretas para os problemas que minam a sociedade portuguesa. Do centro esquerda à extrema esquerda, todos se propõem gerir o "bolo", mas ninguém deita as mãos à massa...

A continuarmos assim, só irão votar os que têm medo da TROIKA e os que se sentam à mesa do poder.

12.6.15

O estado da memória

Parece indiscutível que um dos indicadores do envelhecimento é a diminuição ou, até, a perda de certas memórias consolidadas, já que das efémeras se aceita a sua caducidade... Esse empobrecimento da memória resultará, por exemplo, de dietas desapropriadas, da qualidade do sono, de medicação agressiva,  ou de um excesso conflituoso e errático de informação ...
A explicação é, talvez, simplista, porque se as quatro causas apontadas estiverem corretas - dieta, sono, medicação, informação -, então o empobrecimento da memória começará a ocorrer muito mais cedo.
Basta olhar para os jovens, que por esta altura do ano se submetem a exames externos e internos, para perceber que boa parte do insucesso deve ser procurado fora da sala de aula. 
E na véspera dos exames, a situação agrava-se ainda mais...

O estilo de vida atual é a principal causa do envelhecimento precoce e, principalmente, do insucesso escolar dos nossos jovens e da inexistência de um modelo de crescimento e de desenvolvimento que transforme a sociedade em que nos vemos como reféns.

18.3.15

Nunca fomos tão felizes!

Há cada vez menos lugares que não se encontrem sob vigilância ativa ou passiva. Consequência: vivemos no tempo da encenação. Nem os narcisistas podem espreitar o espelho da imperfeição sem que uma sombra lhes perturbe o olhar...
Talvez a máscara pudesse ajudar a preservar a intimidade ou até a naturalidade, mas, nos dias vigilantes, o uso de máscara torna-nos suspeitos.
Por um tempo, a censura interna e externa ocupou-se da tarefa de nos colocar na ordem, e a ambição do homem passou a ser soltar-se, derrubar os muros duramente edificados...

Entretanto, por agora, somos extensões e carregamos próteses de redes que nos prometem que nunca mais estaremos sós. 
Tudo o que dizemos ou fazemos e até sonhamos está sob custódia 24 horas por dia, independentemente do lugar onde nos encontremos...
Nunca fomos tão felizes!