23.2.12

«Numa rua perto (…) Não correu mais sangue.»



«(…) esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados.» José Saramago, Memorial do Convento, pág. 56, 16ª edição

22.2.12

Um tempo pobre…

Ao lado, um casebre em degradação no casco da vila. Por detrás, as muralhas, parte delas, em ruínas…

O arco, abandonado à sorte da natureza, esconde-se, envergonhado da nossa inépcia.

É essa inépcia que explica o nosso cativeiro!

20.2.12

São mil os passos perdidos…


«Al fin y al cabo, al recordarse, no hay persona que no se encuentre consigo mesma.» Jorge Luis Borges, El Otro, El Libro de Arena.


No que me diz respeito, o princípio não se aplica, pois, por mais que me esforce, não consigo lembrar-me das onze mil virgens mártires às mãos dos Hunos, nem vejo por que motivo alguém se lembrou de as enterrar na igreja do franciscano Santo António, em Alcácer do Sal.

E quanto a Átila (385-453), rei dos Hunos, também já esqueci a sua crueldade que, ainda antes de ter nascido, teria degolado Úrsula, na cidade de Colónia, no dia 21 de outubro de 383. O mais interessante é que nesta cidade, uma igreja guarda o túmulo de Santa Úrsula e das suas onze companheiras.

Sempre que recordo o passado, acabo por me desencontrar e, simultaneamente, perceber que a escrita é um lugar de perdição. Neste caso, são mil os passos perdidos… ou talvez, uma dúzia de virgens perdidas!

19.2.12

Embora não pareça…


Embora não pareça, o aprumo de nada lhe serve: os ramos murcharam e as pinhas secaram.
Em torno, o verde ainda desponta, mas a seca não perdoa.
Longe dos caminhos, continuam a desfilar as máscaras, indiferentes ao incêndio que alastra.

18.2.12

Ao entardecer…

O arame farpado bloqueou-me a voragem…

Entretanto, concluo a leitura da enciclopédia ficcional de Roberto Bolaño, A Literatura nazi nas américas,  e fico a pensar na excentricidade, na megalomania, na violência e na irracionalidade daqueles monstros que povoam o continente americano, e cujas raízes ora se escondem ora se revelam na europa…

E claro, o plágio é tão comum que, a páginas tantas (125), acabei por chocar com «o Pessoa bizarro das Caraíbas», cuja morte o encontrou «a trabalhar na obra póstuma dos seus heterónimos.» ( Max von Hauptmann)

(De facto, Roberto Bolaño convida-nos à voragem do entardecer!)

17.2.12

Os monstros…

Os sinais da doença que mina a sociedade portuguesa estão escancarados nas páginas dos jornais e nas televisões. Parece que, repentinamente, os monstros ganharam visibilidade sem qualquer justificação.

Ninguém arrisca uma explicação, ninguém assume a responsabilidade! No entanto, basta entrar numa sala de aula, do ensino elementar ao superior, para perceber que a cultura dominante é laxista: conversas laterais, posturas incorretas, palavras indelicadas, unhas a ser pintadas, lábios secos a necessitar de bâton de cieiro, telemóveis ligados, gorros que escondem headphones; trabalhos por fazer, desinteresse pelas matérias, permanente desatenção, manuais fechados ou esquecidos nos cacifos; falta de respeito por colegas, funcionários e professores. Frequentemente, na sala ao lado, o ruído é tão ensurdecedor … que as palavras que sobram revelam uma fonte anónima e dolorosa.

Claro que há quem defenda que tudo se resolve recorrendo à motivação, de preferência infantil ou, em alternativa, boçal. Talvez, o Carnaval ajude a libertar os demónios!

Com mais de um milhão de desempregados é criminoso manter  esta cultura escolar, sobretudo, porque ela  só gera mais desemprego, mais crime e mais monstros… E estes não necessitam de chegar a adultos para começar a destruir!

E também não necessitamos de governança porque esta procura o pacto: isto é, estar de bem com Deus e com o Diabo!

11.2.12

Citação e paródia

Gustavo Borda (Guatemala, 1954-Los Angeles, 2016) respondeu um dia a quem lhe reprovava a inclinação germânica: «Fizeram-me tantas crueldades, cuspiram-me tanto, enganaram-me tantas vezes que a única maneira de continuar a viver e continuar a escrever era transferir-me em espírito para um sítio ideal…» Ora, na paródia do chileno Roberto Bolaño, esse lugar ideal é a Alemanha nazi.
Se cito, aqui, A Literatura nazi nas Américas, ed. Quetzal, é porque  o complexo de inferioridade portuguesa cresce à medida que o  número  de políticos e comentadores germanófilos aumenta. Os sinais da bota estão por todo o lado… e da democracia à ditadura vai um passo por enquanto enluvado…
A paródia recria os sinais, invertendo-os, mas não os faz desaparecer. Rimos, mas apetece chorar! A comédia alegra-nos, mas o que nos espera é a tragédia.
Roberto Bolaño (1953-2003) viveu exilado desde o início da ditadura de Pinochet, primeiro no México, depois nos Estados Unidos, para, finalmente, se instalar em Espanha. Internacionaliza-se com Os Detetives Selvagens, obra marcada pelo romance Paradiso do cubano Jose Lezama Lima. Em 1996, publica Literatura Nazi en America, novela escrita como se fosse um dicionário de autores admiradores e defensores do nazismo… As criaturas impressionam pelo seu realismo e respetiva loucura!
Para compreender este tipo de escrita (paródia) vale a pena ler: Vidas Imaginárias de Marcel Schwob; Spoon River Anthology de Edgar Lee Masters; Manual de Zoologia Fantástica de Borges ou A História Universal da Infâmia, também, de Borges.
As criaturas de Bolaño são mesmo infames porque vivem connosco e nós não as vemos e por isso vale a pena seguir o destino das personagens saídas do inferno do nosso destrambelhamento… da nossa inferioridade.