22.8.13

A cabeça


Quando a cabeça já nos confunde, exigimos ao corpo um esforço mais: privamo-lo da gordura, do açúcar e do álcool, e obrigamo-lo a caminhar… E subimos e descemos, ao sol e à chuva, de dia e de noite, em passo lento ou acelerado, no bosque ou à beira-mar…
E subitamente uma voz interior convida-nos a penetrar no abismo, a desistir da caminhada, a não regressar ao ponto de partida porque, na verdade, esse ponto ficou irremediavelmente para trás.
As viagens são sem regresso! Por enquanto, vão ficando de fora as que se limitam a gerar espaço, mesmo que o tempo as dissolva…

21.8.13

Cadernos de notas e agendas

Quando procuramos elaborar um balanço, ou melhor, quando nos solicitam um balanço e a memória não ajuda, regressamos às agendas e aos cadernos de notas ou de tarefas.
Se ainda os tivermos à mão e não nos faltar a coragem de os decifrar, iremos pouco a pouco descobrir que o que foi pensado para nos ajudar a agendar o presente e o futuro é, afinal, um repositório de acontecimentos passados da mais desvairada natureza.
Aos nossos olhos, surgem os nossos doentes e os nossos mortos, as nossas viagens e as nossas despesas, detalhadas até à ausência de sentido. Despesas que, frequentemente, nos são impostas por sonhos e devaneios familiares, sem omitir as crescentes obrigações fiscais e os cortes reiterados nos rendimentos...
Numa outra perspetiva, estes registos indicam-nos onde estivemos ou, pelo menos, deveríamos ter estado. E este dever não era nosso, era nos imposto pela profissão, pelos cargos que desempenhámos.
E de repente, surge a dúvida: Se num certo ano, estive envolvido em tantas tarefas, qual terá sido a qualidade do trabalho desenvolvido?
Nesta perspetiva, o caderno de notas é claro e, ao mesmo tempo, enigmático. Quem ali se inscreve viveu um ano múltiplo, isto é, um ano em que a dispersão foi a regra, imposta pela solicitação alheia. E o mais grave é que, no caderno de notas, nada existe que diga qual das tarefas era a mais importante: se cuidar da mãe, se cuidar da esposa, se cuidar da filha ou do filho, se cuidar dos alunos, se cuidar dos colegas, se estar presente a toda a hora, se ser um funcionário zeloso...
Desta leitura resulta, no entanto, uma lição: a minha próxima agenda vai ser constituída por folhas soltas e, de preferência, em branco...
 
Muitos não conseguem impedir-se de ter a impressão que é o tempo que passa, quando, na realidade, o sentimento de passagem refere-se ao curso da sua própria vida. (registado no caderno de notas 2012)
   

20.8.13

A verdade do papiro e da pedra

Creio que  se pode viver sem ler! Na verdade, durante muito tempo, o mundo singrou sem manuscritos. Não havia necessidade de registar ou de procurar a verdade em qualquer pedra ou códice, porque, simplesmente, ela não existia.
A verdade foi uma invenção de faraós avarentos e megalómanos que aproveitaram o papiro que o Nilo lhes ofertava. Diga-se, para que não se desvirtue o curso da história, que o povo hebraico, não querendo ficar para trás, enviou o pobre Moisés ao cimo do Sinai registar a lei (verdade) de Jeová nas tábuas de pedra que a montanha lhe ofertava.
Em nome da verdade, se ceifaram muitas vidas, de tal modo que foi necessário registar e justificar a sua eliminação.
E como funcionamos em circuito fechado, alguns homens consagraram o seu tempo aos Livros de Horas, orando pelas vítimas dos faraós avarentos e sequiosos de glória e de eternidade...
E assim continuamos, aqui como na Síria, na Líbia, no Iraque, no México, na Colômbia, no Congo ou no Egito! Tudo em nome de uma verdade que nenhum Livro consegue legitimar..
Com uma pequeníssima diferença: voltámos a viver e a morrer sem precisar de ler!

E porque a leitura, que a muitos importa, já não se ocupa da maçadora e punitiva verdade, mas, sim, da fantasia - esse lugar situado entre a verdade e a mentira - CARUMA está pronta a libertar-se das hiperligações que desprezam a leitura... e a escrita. CARUMA passa a ser um lugar de passagem ou, se se preferir um lugar de errância... 
 

19.8.13

Na sombra de Fausto

A decisão de ler, quando não se é académico ou investigador literário, resulta de circunstâncias que não controlamos. Há quem pense que a idade é um fator decisivo - talvez haja um tempo certo para ler determinadas obras... Talvez, seja necessária uma certa maturidade! Mas como é que se chega à maturidade sem ter lido o que mais importante foi escrito para o entendimento da natureza humana?
Enquanto leitor, o mito do "Fausto" não me era estranho e, normalmente, surgia na mesma página, na mesma esquina, de outro famoso mito ocidental - "D. Juan".
Em termos de padrões de cultura, o Fausto do pacto com o diabo era me familiar desde o berço - uma figura pouco recomendável que ousava infringir a todo o momento a condição humana, desrespeitando a vontade divina.
Na literatura e na filosofia, habituei-me a encontrar certos paladinos do «super-homem», designadamente, na cultura alemã, o que se de início me seduzia, com o conhecimento dos "efeitos" da ideologia subjacente e da consequente prática política, acabou por me afastar de uma abordagem sistematizada da obra de Goethe, o que hoje lastimo...
Neste agosto, não resisti a fazer duas leituras da obra em causa, tal é a intensidade (e por vezes, a leveza) do pensamento dilemático de cada personagem e, sobretudo, porque a religiosidade imanente não consegue estabelecer fronteiras nítidas entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo.
Na visão romântica alemã, o verdadeiro mundo estava plasmado no Cristianismo - um lugar em que Deus desafiava Mefistófeles para que pusesse à  prova a criatura humana ( Fausto) e em que o Diabo não desgostava do exercício, pois, afinal, lhe permitia entrar em territórios de fantasia que lhe estavam vedados - o universo greco-romano - porque anteriores à refundação da chamada civilização ocidental.
Ler o Fausto é, para mim, uma viagem às zonas mais ocultas do cérebro humano, mas é também revisitar os mitos que fundam a minha personalidade.
   

18.8.13

O nosso Fausto

Não sei se será aceitável misturar o Fausto de Goethe, tragédia escrita ao longo de uma vida, e com antecedentes ilustres que remontam, pelo menos, aos séculos XV e XVI, com os títeres que nos desgovernam neste século XXI.
Na verdade, o doutor Fausto, cansado da ineficácia da ciência e da alquimia, por ação de uma inebriante poção licorosa preparada por uma bruxa, a mando  do criado-e-senhor Mefistófeles, passou «a ver em cada mulher uma Helena», no caso particular uma Margarida que, depois de seduzida e rejeitada, qual Eurídice, resiste a sair da masmorra em que se encontra à espera do juízo final.
No caso português, creio que o argumento será um pouco diferente: cansado do amor e da manta rota (que diacho!), o nosso Fausto terá negociado com Mefistófeles o regresso à escola, à procura da poção mágica que lhe permita ganhar as eleições - todas as eleições!
Será por isso que acabo de ouvir que, entre Agosto e Setembro, o nosso Fausto fará no mínimo três «rentrées». Começou no calçadão do Pontal, vai passar pela Universidade de Verão de Castelo de Vide (?) e quanto à 3ª «rentrée», não sei bem, mas sei que já em 2012, ele também se tinha deslocado à universidade sénior da Portela...

Este não será o momento para me queixar, mas também não entendo a preferência pela palavra «rentrée» num país que despreza oficialmente o ensino das línguas estrangeiras, e, sobretudo, a aprendizagem do francês. Pelo desempenho que já lhe ouvir, o nosso Fausto, mal sabe ler a língua de Molière e de Racine.
Finalmente, é preciso ser muito cábula e lento para no mesmo ano letivo fazer três «rentrées». Melhor seria que o nosso Fausto tivesse seguido o exemplo do doutor Fausto... Pelo menos, acabaríamos livres de Mefistófeles!  

Estertor

Nas festas de Viana, as servas da Senhora da Agonia  exibem milhões em ouro. Noutras procissões, os andores carregam cachos de euros, a ver quem dá mais. Por perto, os incêndios consomem bombeiros, matas e veículos... Os candidatos a autarcas, aos milhares, procuram um lugar ao sol, derretendo milhões de euros numa campanha inútil...
Entretanto, o subemprego cresceu 139% nos salários abaixo dos 310 €. No IC1, morreram, em 24 horas, 9 pessoas em ultrapassagens proibidas - ao lado, na autoestrada, escasseiam os veículos.
Por seu turno, o Governo de casino aposta mais de 4.000 milhões na banca do Tribunal Constitucional. O próprio presidente da república, em vez de promulgar ou vetar, arrisca na mesma banca. Hábitos antigos! 
 
Lá fora, mais de 100.000 pessoas já morreram na guerra da Síria. No Egito, numa semana, registaram-se 700 mortos, e a procissão nem ao adro chegou.
 

17.8.13

O povo ébrio

Hoje é sábado, e o país continua em festa!
Com um pouco de crédito e de espírito e muito de deixa-andar, o povo percorre as romarias, os festivais e as praias fluviais... O povo vive contente e sem preocupações...
Claro que a Troika vai avisando que só regressa depois de o Tribunal Constitucional legitimar os despedimentos desse mesmo povo que agora vai bailando...
E como a festa é demasiado ruidosa, o povo ébrio vai liquidando o próprio sangue num golfejo de notas soltas...
 
(Antes de ontem, fora dia santo; ontem, um santo dia; amanhã, pouco interessa.)