27.10.13

Uma noite destas

Não me levanto, não vou à janela, não ligo a luz... Imóvel, oiço as vozes que se apoderam de mim e que falam por mim. 
Uma noites destas, já sobre o amanhecer, percorria as galerias da escola à procura da sala de aula - não consigo decorar o horário: muda todos os anos, tal como os alunos, há 39 anos!- quando surge o ministro da educação a explicar-me que se me atraso, se não cumpro as metas, se não acerto o passo pelos desejos dos meninos e dos papás, o melhor é aproveitar o bónus e rescindir o contrato... Ainda pensei E depois de consumido o bónus, o que é que me acontece, mas, adivinhando a minha perplexidade, o ministro acrescentou: - Queria subsídio de desemprego? Queria pré-reforma? Não seja calaceiro!
Já não sei se imóvel, se espreitando para dentro das salas, ouvi-me discorrer longamente sobre os muitos ministros e secretários da educação que tive que suportar, sobre as múltiplas escolas que percorri à procura da sala de aula, sobre os milhares de alunos a que procurei melhorar a voz, sobre os professores desassossegados que encontrei... e continuei numa ladainha interminável até abrir os olhos e compreender que à minha frente estava um fiscal das finanças a querer eliminar-me da lista dos assalariados, da lista dos desempregados, da lista dos aposentados...
Não me levanto, não vou à janela, não ligo a luz... Imóvel, já não oiço as vozes, mas, desesperado, continuo a percorrer as galerias, espreito as salas e lá dentro, no lugar dos alunos, o vazio... 

26.10.13

Que se lixe...

Que se lixe...
Eis uma expressão cuja força ilocutória é perturbante!
Na verdade, esta locução exprime despreocupação ou indiferença.

Quando analisamos a força ilocutória do enunciado Que se lixe a troika..., percebemos que a primeira parte (as 4 sílabas métricas) é um pouco lenta, monótona e preguiçosa, sem convicção; só depois a entoação se eleva ao pronunciar troi-ka, residindo nela a força...
Como palavra de ordem, o enunciado Que se lixe a troika, em vez de corporizar o combate, acaba por ser a expressão do desencanto de quem, ainda, ousa proferi-lo...

Talvez seja esse o motivo das vozes e dos ritmos plangentes que ecoaram com o cair da tarde...






25.10.13

O meu contributo

A atual Escola Secundária de Camões está alojada num edifício com mais de 100 anos, projetado pelo arquiteto Ventura Terra no período de transição da Monarquia para a República. Construção quase lacustre, tendo em conta os múltiplos arroios que correm para o Tejo, e que jaz sobre terrenos, em parte arenosos. Esta singularidade deveria trazer a quem se ocupa dos problemas de segurança particular atenção.
Como, infelizmente, quem fotografa ou filma o estado de degradação de paredes, empenas, salas, janelas, galerias, campos, não se interroga sobre os alicerces, o público continua a ignorar a verdadeira extensão do problema.
E porque há um problema, o Diretor, depois de todas as diligências efetuadas junto dos governantes nacionais e locais, para que este fosse resolvido, decidiu  promover uma GRANDE GALA no Coliseu dos Recreios.
Esta iniciativa só terá sucesso se, pelo seu impacto, for capaz, de uma vez por todas, levar as autoridades, que têm o dever de zelar por pessoas e bens, a agir, garantindo a segurança, preservando o património e melhorando as condições de trabalho de quem continua a zelar, a administrar, a ensinar e a aprender neste centenário edifício, verdadeiro símbolo das «grandezas e misérias dos príncipes de Portugal», citando o supranumerário Aquilino Ribeiro, também ele professor desta instituição, e cuja lição está expressa em todos os seus livros: Alcança quem não cansa. 

PS. Quem quiser associar-se à iniciativa deve consultar http://escamoes-web.sharepoint.com/Pages/default.aspx



   

24.10.13

A construção da opinião

Na minha opinião ou opinião pessoal são sintagmas nominais frequentes, mas que nada acrescentam à compreensão das estratégias comunicacionais.
No presente, a opinião é objeto de construção que, na maioria dos casos, gera comportamentos emocionais, adesões irracionais.
Por exemplo, numa simples apresentação de listas a uma associação de estudantes, a  decisão resulta da injeção de um conjunto de estímulos acrobáticos e ruidosos.
Ao contrário do que muitos defendem,  a opinião atual é esvaziada de qualquer juízo de valor. 
Numa eleição, as ideologias, suportadas pelos grupos económicos e financeiros e das suas extensões mediáticas e partidárias, injetam nas mentes fracas poderosos estímulos que as convencem de que as suas escolhas são racionais e livres...
Na verdade, raramente a opinião se revela capaz de identificar o problema e, sobretudo, de discriminar as soluções apresentadas de modo a fazer a escolha mais vantajosa para o conjunto da sociedade.
Sim, porque, na história da construção da opinião, o critério que, outrora, validava a decisão era o bem comum.
Presentemente, não há jovem que não tenha a sua opinião, embora não consiga explicar a sua origem.

23.10.13

Entretanto, a chuva verdasca as vidraças

Sorrisos cúmplices passam altivos de um saber efémero. As palavras de ontem perdem-se em abundantes gestos de surpresa e arrastam-se em círculos de pedra.
Os testemunhos viciados respondem a um guião engenhoso ou, talvez, manhoso! As cadeiras esfíngicas registam a pose, apenas temendo o caruncho das novas vaidades...
A chuva, entretanto,verdasca as vidraças e amortalha o sol de verão, mas, infelizmente, não liberta a memória do tempo em que as cadeiras eram de pedra e resistiam ao caruncho, à pompa e à circunstância.

22.10.13

A escola, lugar de indisciplina e de depressão

Paulatinamente, o exercício da docência vai sendo condicionado e desvalorizado. 
Na formação, a pedagogia é substituída por uma didática definida por uma autoridade espúria. 
Na sala de aula, a parafernália imposta pelas editoras substitui o saber do professor, transformando-o numa fonte secundária, ignorada ou facilmente questionada pelo aluno desatento e desinteressado.
A desvalorização da função docente cria o clima propício à reivindicação de saberes não certificados, a não ser pela abscôndita superioridade social, cultural, política e, por vezes, profissional.
Em certas disciplinas,o professor mais não é do que um distribuidor de conteúdos dispersos por manuais, cadernos de exercícios vários, e quando isso acontece a sala de aula vira lugar de indisciplina.
A introdução de suportes diferentes dos apresentados pelas editoras torna-se suspeita. A avaliação, com recurso a testes não formatados pelo IAVE, é questionada por colegas, alunos e encarregados de educação.
A aplicação de conhecimentos em novas situações deixou de ser um objetivo. Procura-se, a todo o custo, evitar a surpresa, porque esta provoca estados depressivos... e a depressão é a explicação para todo e qualquer desajustamento... 
A articulação da escola com a comunidade é desejável, mas aquilo a que se assiste, neste domínio, é no mínimo perturbador, porque, presentemente, o país não tem qualquer projeto educativo fiável e duradouro.

21.10.13

Sem palavras…

Estou sem palavras desde o final da manhã quando um jovem mais atrevido me exigiu que o não avaliasse pelo sua cultura mas, sim, pelo sua competência linguística. A exigência não me deixou indiferente e expliquei-lhe que a língua e a cultura são indissociáveis. 
A explicação não terá surtido efeito, mas fiquei a pensar no meu passado como professor de didática de língua materna, quando exigia aos estagiários que planificassem, tendo em conta uma rede de conteúdos assim distribuídos: linguísticos, discursivos e culturais. E, por vezes, a rede era mais extensa!
Espero que esses professores não me tenham amaldiçoado por lhes ter exigido tal esmiuçamento! Se o fizeram, podem descansar, pois o vingador acabou de chegar…
(As imagens mostram dois espaços a que, no meu entendimento, a cultura não é alheia! Mas dizê-lo pra quê!? O melhor é continuar a falar e fechar os olhos e os ouvidos…)