2.5.15

A educação do gosto

«A tarefa do artista é convencer-nos de que isto poderia acontecer. A coerência interna e a plausibilidade tornam-se mais importantes do que a correção referencial.» James Wood, A Mecânica da Ficção, pág. 253, editor Quetzal

Preocupa-me esta renovada tendência em querer educar o gosto literário das crianças e dos adolescentes deste país. 
Ao longo da História, a instrução, essencial ao crescimento humano, foi sendo metamorfoseada em educação, acabando quase sempre ao serviço de programas doutrinários ou ideológicos estabelecidos pelos grupos dominantes ou que, paulatinamente, preparavam o acesso ao poder. Raramente, a educação inverteu o «statu quo». 
Sob a capa de valores civilizacionais, religiosos, artísticos, nacionalistas, internacionalistas ou simplesmente patrimoniais, os programadores educativos não resistem a condicionar a emoção humana...

Felizmente, as fontes do gosto desmultiplicam-se a cada dia que passa, tornando obsoleto qualquer tipo de programa.

Por mais que a Autoridade e a Referência se confundam, o que acabamos por aprender é que a coerência interna e a plausibilidade escapam a qualquer programador, pois, por natureza, se apresenta como gestor de almas alheias...


1.5.15

Eu não sou viral

Concluo hoje que não sou viral, ou seja tudo o que digo ou escrevo não se espalha como se fosse um vírus. 
Ontem, referi-me ao problema colocado por quem procura evitar a especialização dos jovens, determinando, no entanto, que devem saber ler e escrever "textos complexos"... e já antes me referira à estreia do filme Uma Rapariga da Sua Idade... Entretanto, pedira a uns tantos jovens que opinassem, por escrito, sobre o provérbio "Do trabalho e da experiência, aprendeu o homem a ciência". 

E estou satisfeito por não ser viral, pois cedo conclui que se o fosse estaria a ser infantil e que o estado de infantilidade parece ser o verdadeiro desiderato de quem nos 'programa'... Na verdade, o provérbio, apesar de ser uma forma simples, revela-se um texto complexo... a maioria não chega a perceber nem o que é a ciência  nem que ela resulta da conjugação ativa do trabalho (criativo) com a experiência (vívida)....
Talvez por essa razão, voltei à Culturgest e tornei a ver o filme Uma Rapariga da Sua Idade, dando mais atenção à linguagem verbal e gestual dos protagonistas, o que me permitiu compreender a complexidade do texto "dramático"... Por outro lado, o Márcio Laranjeira, a Mariana Sampaio e o Alexander David, ao responderem às perguntas do público, revelaram que a autenticidade da obra (do tal texto complexo) resulta não só do trabalho e da experiência mas, sobretudo, da emoção que não se deixa capturar pelo simplismo imediato e populista...
Eu não sou viral porque fujo da gabarolice e sei que a simplicidade é inimiga da infantilidade.   

30.4.15

Complexidade e especialização

Como produto determinado e convencionado pela "inteligência portuguesa", e depois de alguns cálculos elementares para a minha idade, acabo de concluir que, apesar da escola exigir que os jovens saibam ler e produzir textos complexos, os devemos afastar de qualquer tipo de metalinguagem que implique especialização...
Pelas minhas contas, só, por volta dos 22 anos, o jovem estará apto a iniciar uma especialização (2º ciclo de Bolonha), mas sem que lhe seja exigido qualquer esforço de investigação - esta será parte integrante do 3º ciclo (de Bolonha, acrescentado), e deve concentrar-se na descoberta de novos lugares de migração que o possam acolher...
Entretanto, estou sem saber como será possível exigir que um adolescente aprenda a ler e a produzir um texto complexo...
Ainda resolvi procurar a definição de "complexo", mas desisto: afinal, o jovem só deve começar a aprender linguística, anatomia, química, psicologia, arte, bem mais tarde... Por enquanto, os rios ainda correm para o mar! Claro! Há sempre aqueles que correm para o mundo..., mas tal já implica especialização, investigação...

O verbete que se segue é para maiores de 22 anos. Ou será 23?

http://www.lexico.pt/complexo/
adj.
1. Diz-se do que possui ou engloba grande quantidade de elementos ou dimensões que, embora distintas, se encontram relacionadas entre si; que é complicado, de entendimento abstruso: uma situação complexa;
2. Que abarca, contém ou envolve numerosas questões, matérias ou coisas: uma matéria complexa;
3. Característica ou particularidade daquilo ou daquele que é intricado, difícil ou confuso: sistema ou técnica complexa;
4. Que não é claro ou percetível - que é obscuro ou impenetrável;
5. Diz-se do que pode ser avaliado ou observado de variadas perspetivas; que é multifacetado ou multiforme;
6. (Anatomia) Denominativo de todo e qualquer músculo par situado na área cervical na cabeça;
7. (Linguística) Referente ao vocábulo composto ou gerado por composição ou por derivação;
n.m.
8. Designação atribuída a um aglomerado de situações, eventos ou coisas que se encontram ligadas ou conectadas de algum modo entre si;
9. Estruturação ou conceção constituída por grande quantidade de componentes articulados ou concatenados que operam como um todo;
10. Designação de problema, perturbação ou inquietação (de cariz psicológica);
11. (Química) Denominação atribuída a composto químico em que é possível verificar a constituição de ligações de coordenação entre moléculas ou iões com átomos ou iões de metal;
12. (Psicologia) Aglomerado ou conjunto de pensamentos, sentimentos ou ímpetos interligados, normalmente de natureza inconsciente e com origem na infância, que representam parte constituinte da personalidade de uma pessoa, estabelecendo, às vezes, a sua forma de agir.
(Etm. do latim: complexu)
Sinónimo de Complexo
Sinónimos: abstruso, agregação, agrupamento, complicado, confuso, conjunto, difícil, dificuldade, inquietação, mesclado, misto, mistura, multifacetado, multíplice, obscuro e perturbação
Antónimo de Complexo
Antónimos: básico, claro, compreensível, descomplicado, desintrincado, fácil, incomplexo e natural

Uma Rapariga da Sua Idade, filme de Márcio Laranjeira

Estreou esta noite na Culturgest, a primeira longa metragem de Márcio Laranjeira - Uma Rapariga da Sua Idade
(No imediato, volta a ser possível ver este notável filme na próxima 6ª feira, 1 de maio, pelas 14h30 na Culturgest. A não perder!)

Ao contrário do sol queirosiano e turístico, neste Portugal, refundado em 2011, a luz é de cinza, e, quando chove, a água escorre por dentro, embora não elimine a sujidade que impregna o casario e as barracas de feira...
As pedras ausentes foram substituídas por limões cuja função é desestabilizar os incautos transeuntes - a imagem do limoeiro é recorrente, signo auto-irónico (?)
A agonia é apoteótica, dionisíaca não fosse a suspensão provocada pelo despertar da manhã e, sobretudo, pela presença dos gigantones...
As personagens vivem nessa suspensão, que, no caso português, é, afinal, a experiência de uma geração encurralada num determinismo atávico...

Trata-se de um filme que de Lisboa a Viana do Castelo, passando momentaneamente por Nova Yorque, nos dá conta da penumbra em que vegetamos, procurando uma explicação que nem a escadaria de S. Bento nem o fogo de artifício da Senhora da Agonia nos trazem... Até as singelas ovelhinhas fogem de nós!
Infelizmente, o realizador pode começar a pensar numa nova longa metragem, com mais cinza, mais non sense num caos superiormente organizado.
Estão de parabéns, o Márcio Laranjeira e toda a sua equipa. Resta saber se nós os merecemos!

28.4.15

Saramago explica o rapsodo que há na sua obra

15 de fevereiro de 1994

Regresso a um tema recorrente. Todas as características da minha técnica narrativa atual (eu preferiria dizer do meu estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isto significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor uma música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e confirmo (estrutura barroca, oratória circular, simetria de elementos), suponho que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música. Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o carácter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões “mínimas” de certa música contemporânea.

José Saramago, Cadernos de Lanzarote

Hoje, recorro a José Saramago para combater o argumento da ilegibilidade, por exemplo, de MEMORIAL DO CONVENTO.
Apesar do parágrafo ser curto, continuará a haver quem prefira nem OUVIR nem LER em VOZ ALTA.

No âmago da rejeição estará certamente o modo como na infância o contador / inventor de histórias foi substituído pelo leitor, matando definitivamente o NARRADOR ORAL - o rapsodo (poeta popular, ou cantor, que ia de cidade em cidade recitando poemas épicos).

27.4.15

O que me choca é esta coisa das datas

Eu também não ouvi o discurso do sr. Presidente no "seu último 25 de abril". Pareceu-me até, pelos ecos a que não pude escapar, que o discurso já tinha sido escrito a 24 de abril... No meu caso, esta minha insubordinação não é preocupante, já que não sou candidato ao que quer que seja (Andam por aí comentaristas à solta, em regra surdos, que, desta vez estão chocados!)

O que me choca é esta coisa das datas. Já não há data livre! Há sempre um santo, uma efeméride a celebrar. Já ninguém se preocupa com o presente e muito menos com o futuro. A alienação é tal que até já há quem não se importe de consumir droga para cavalo... 
Parece que em 2017, vem aí o Papa Francisco! Daqui até lá, vai ser um regabofe. Todos à espera da amnistia...

Por este andar, ainda vou aprender mandarim para que, quando os chineses tomarem conta disto, possa emigrar para a China!

26.4.15

O poço e a corda

O poço é pouco profundo; a nascente é sazonal - depende da chuva de inverno que a ribeira dispersa rapidamente. Em tempos idos, diz-se que as enguias eram frequentes e que quem as colhia se servia de folhas de figueira para melhor lhes controlar a viscosidade... Já não sei se algum dia as cheguei a ver...
Parece-me, hoje, que aquelas enguias seriam dos poucos recursos que ali cresceriam por altura da segunda guerra mundial. A fome era inevitável por culpa própria e alheia. A terra não produzia o suficiente para matar a fome daquelas gentes; os candongueiros vendiam para espanha e para alemanha os parcos produtos arrancados à terra seca; os ingleses encareciam as exportações; os alemães não cumpriam os acordos resultantes do fornecimento de volfrâmio; e os americanos, sôfregos, não queriam saber de compromissos nem alianças...
Desse tempo, sobra o poço sem enguias e quase sem água. Só as silvas o enriquecem; as figueiras estão cada vez mais desvalorizadas, nem a madeira aquece; as oliveiras resistem, como salazar resistia, e os portugueses continuam a resistir: cada vez mais pobres, submetidos à austeridade...
Como se sabe, quem cai no fundo poço, se, entretanto, não morrer afogado, precisa de uma corda e de quem a puxe.