27.5.15

Uma função sem objeto

GUARITA - s.f. Pequena casa, geralmente de madeira fixa ou móvel, desenvolvida para abrigar sentinelas, vigias, seguranças.Torre em que ficavam os sentinelas; torres situadas nos cantos de antigos fortes, desenvolvidas para dar proteção aos sentinelas.

Agora que penso nisso percebo que há mais guaritas do que eu pensava. Talvez, por comodismo, habituei-me, nos últimos anos, à inutilidade das guaritas dos quartéis. Raramente, lobrigo uma sentinela, mesmo se a chuva acontece copiosa. Nem sequer, os rejeitados da vida, ou de si próprios, se recolhem nessas torres esquecidas...
No entanto, à medida que os condomínios fechados e os parques de estacionamento se apoderam das ruas e do subsolo, as guaritas multiplicam-se, e nelas vislumbro seguranças no lugar dos sentinelas...
Porém, o que eu desconhecia é que nas escolas também existem guaritas: recantos donde se avistam os professores e os alunos que circulam nas galerias; ou simples cadeiras, das quais se enxerga a indisciplina das chegadas e partidas. 
Neste último caso, desconheço o estatuto destes "vigilantes" e, sobretudo, não sei a quem servem. Temo, contudo, que estejamos perante uma função sem objeto, em que a simples presença, e até ausência, justifica a existência da guarita...

26.5.15

Com o calor

Com o calor, tudo se torna mais moroso. Poder-se-ia pensar que a morosidade nos tornaria mais razoáveis, mas não.  
A irracionalidade cresce, a surdez aumenta, porém as vozes sobem de tom. Com o calor, acentuam-se os ajustes de contas...
Afinal, parece que passamos o ano à espera que o estio nos enlouqueça... 

25.5.15

O etnocaos na F.C.Gulbenkian

Outrora, chamavam-lhe miscelânea; hoje, há quem prefira falar de um novo estilo: o etnocaos. Talvez por isso me tenha deslocado no dia 23 de Maio à Gulbenkian, onde tive oportunidade de presenciar a empolgante exibição do grupo ucraniano DakhaBrakha, criado em 2004, no centro de arte contemporânea de Kiev DAKH, pelo diretor de teatro de vanguarda Vladysslav Troitsky...
A verdade é que durante o espetáculo, mal informado sobre a pretensão estética do DakhaBrakha, senti-me um pouco frustrado, pois os instrumentos, os ritmos e as vozes lançavam-me para outros territórios distantes da Ucrânia: África, Ásia... No entanto, o problema era meu: o público parecia delirar com a profusão de sonoridades e de efeitos vocálicos...
Quanto a mim, ao observar os instrumentos, dei comigo a pensar que o lusotropicalismo tinha feito a sua aparição em má hora, e que o anátema sobre a miscigenação era afinal uma invenção dos seguidores da Reforma, que combatiam os monopólios, mas não deixavam de armar as fronteiras... Talvez o etnoscaos cultural possa ser a nova solução global e, sobretudo, dar trabalho a uma nova geração de antropólogos...
(...)
Já que o caos parece estar instalado, o melhor é não esquecer que no dia 23 de Maio de 1179, o Papa Alexandre III emitiu a Bula Manifestis Probatum que reconhecia Portugal como um reino pelos serviços prestados à expansão da fronteira cristã...
Já lá vão 836 anos... de caos!


24.5.15

O RINOCERONTE na Escola Sec. de Camões

http://claleal.blogspot.pt/2011/11/
À medida que os rinocerontes se multiplicam, poucos são os homens que resistem!
Desta vez, a alegoria saiu das páginas do Rinoceronte (1960) de Eugène Ionesco (1909-1994), numa adaptação e encenação consistentes, com incidência nas personagens Berénger, Jean e Daisy.
O recurso ao intertexto (Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, e a imagens de situações contemporâneas de degradação do ser humano) permite iluminar o absurdo exposto por Ionesco.
Na Escola Secundária de Camões, as resistentes têm nome: Maria Clara Melo da Silva e Graça Gomes. Sem elas, o GTESC já estaria extinto há muito. A montante, o rio parece ter estagnado!
Em síntese, a peça denuncia o que está a ocorrer sob os nossos olhos, portas dentro... De parabéns, estão todos os que ousaram preparar e levar a cabo este espetáculo.

23.5.15

Carta a Luís Vaz de Camões

Prezado Camões,

Ultimamente, encarreguei uns tantos jovens de te escrever uma carta, no âmbito de uma homenagem a um poeta cujo patriotismo talvez tivesses apreciado - Vasco Graça Moura.
Estes jovens, em fase de conclusão dos estudos secundários, sentem-se um pouco constrangidos, mas lá vão cumprindo, mais por obrigação do que por gosto...

Bem sabes que pedir não custa, e por isso decidi  relembrar algum do tempo que contigo vivi. O primeiro grande trabalho "camoniano" foi me imposto por um professor de Português em terras do Ribatejo, em Almeirim, que tomara como missão obrigar os alunos a decorar, pelo menos, uns tantos sonetos, que ele diligentemente analisava, impondo-nos, também, a memorização da sua interpretação. O sucesso dependia, assim, da capacidade de memorização dos sonetos e da respetiva exegese. O meu resultado foi fraco, porque a minha memória, já testada nas aulas de botânica, sempre fora frágil... Se não compreendia, não memorizava; se compreendia, detestava o "ipsis verbis".
Um ou dois anos mais tarde, nas margens do Nabão, redescobri a beleza da memória, quando, certo dia, ouvi o professor Hernâni Cidade citar com propósito Os Lusíadas. Nesse dia, invejei-te; sobretudo, admirei aquele ilustre orador que, afinal, só solicitava o nosso entusiasmo para aquelas tuas sequências em que o homem luso derrubava os obstáculos e recebia "os beijos merecidos da verdade"...
À exceção destes dois professores, nunca mais encontrei pela frente nenhum verdadeiro entusiasta da tua excelsa obra. Claro que não esqueço, de os ler, António José Saraiva ou Jorge de Sena. Admirava-os porque nas palavras escritas pressentia a leitura rigorosa dos teus versos e, até, uma certa identificação na vida, como já acontecera, por exemplo, com Bocage. E essa admiração acabou por se estender ao Vasco Graça Moura, também ele um intérprete rigoroso dos teus desígnios...

De aluno a professor, acabei por me ver metido em trabalhos "camonianos". (Só os meus alunos saberão dizer se estive à altura da missão.) Posso, no entanto, confessar-te que um dia me senti bastante defraudado quando um ilustre camonista, especializado nas capas e nas ilustrações das tuas obras, deu ordens para que a cadeira de Estudos Camonianos se tornasse obrigatória, porque eu estaria a "roubar-lhe" os alunos... Isto no âmbito de uma insignificante cadeira de Literatura Portuguesa II, em que eu incentivava os alunos a lerem Sá de Miranda, António Ferreira, Luís Vaz de Camões, Fernão Mendes Pinto.

O meu crime sempre foi o de querer que te lessem, mas não só a ti... a todos os que contigo conviveram ao longo dos séculos... e foram uns alguns! Não tantos como se poderia imaginar... No entanto, não duvido que Vasco Graça Moura foi um desses leitores e, sobretudo, foi um grande promotor da leitura.

Prezado Camões, muito mais te poderia dizer mas não quero espantar a caça.

Um teu admirador!  

22.5.15

E eu não sorri na cave do IMT...

«Evite as filas de espera e utilize o prazo que a lei lhe concede, procedendo à revalidação da sua carta durante os 6 meses que antecedem o dia em que completa as idades obrigatórias. E tenha em atenção que o documento não pode ser renovado com mais de seis meses de antecedência.
Se deixar passar o prazo de renovação corre o risco de multa por circular com a carta de condução caducada. Após 2 anos sem que tenha revalidado a carta, terá de efectuar uma prova prática caso pretenda obter novo título de condução.» Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT, I.P.)

Em 21 de Maio de 2014, fui ao ACP e tratei do processo de renovação da carta de condução, 6 meses antes do prazo se esgotar. Cumpri todas as formalidades, paguei 85 euros, e fiquei à espera...
Entretanto, fui renovando a licença de condução até hoje, inclusive, data em que o ACP me recomendou que o melhor seria deslocar-me à Elias Garcia, nº 103, Lisboa, informando que ia da parte deles, ACP... Para tirar uma fotografia... Fiquei a pensar que já tinha uma fotografia no cartão de cidadão e se ela não seria válida para o IMT.

Na posse de tal informação, desloquei-me à Elias Garcia, dei a informação ao rececionista que, por sua vez, me entregou um papelinho com o seguinte dizer: F176. E apontou-me a cave a que devia dirigir-me. Desci, a cave estava repleta de FFFFs. Olhei à volta e percebi que o rebanho estava ali todo para o mesmo; a única saída seria ser proprietário de uma senha verde ou, então, B, D, T...

Verifiquei a hora: 13 horas; o mostrador de senhas estava desligado; uma ovelha informou-me que tinham acabado de chamar o F103... Decidi esperar. De tempos a tempos, uma ou outra velha exaltava-se, porque as fotografias estariam a sair muito lentamente; haveria até problemas com as assinaturas. Lembrava-me novamente do cartão de cidadão.

Finalmente, às 15 h 20, o F176 foi chamado. A suposta fotógrafa pediu-me desculpa por se estar a rir de um chinês que acabara de sair. Tinha-lhe pedido que sorrisse, e ele nada. Disparou a máquina, e ele desatou a rir... Entretanto, perguntou-me se era portador de B.I. ou cartão de cidadão. Puxei da carteira, e entreguei-lhe o documento. Pediu-me para assinar sobre uma superfície vítrea, o que fiz de me imediato e, desta vez, perguntou-me se eu gostava da fotografia do C.C. Acenei que, por mim, tudo bem.

A senhora voltou a sorrir e disse-me que, dentro de duas semanas, receberei a carta de condução em casa. Eram 15 h 24!

E eu não sorri! Também não pedi o Livro de Reclamações até porque ele não se encontrava naquela Cave.

21.5.15

Desfasado da vida

Gradiva
(...) «la démarche de Gradiva, telle que l'avait reproduite l'artiste, était-elle conforme à la vie?» Jensen, Gradiva

Norbert Hanold, fascinado por uma escultura, artisticamente mediana, batiza-a de Gradiva, em honra de Marte Gradivus, o deus da guerra avançando para o combate...
O que lhe interessa não é a vulgaridade da figura feminina, apesar de a imaginar de estirpe nobre, mas o movimento dos pés e, particularmente, comprovar se o movimento representado está conforme ao movimento dos pés de uma mulher real...

Há 40 anos li esta obra, no âmbito da cadeira de Literatura e Psicanálise. Como a maioria dos estudantes da época, fascinado pelas teses freudianas, que tudo explicavam, li de rajada a novela de Jensen, e, agora, percebo que dessa leitura nada ficou, a não ser, talvez, pulsões contraditórias que faziam bem ao ego e matavam definitivamente a alma.

Tal como Norbert Hanold, sinto que a arte  continua desfasada da vida, só que eu já desisti de procurar a conformidade entre ambas...
Doravante, vou seguir o esforço do arqueólogo, sabendo, de antemão, que o único prazer está em não trocar os pés...