29.4.17

Esta insistência

Esta insistência nos detalhes pessoais está a tornar-se contraproducente. Em nada contribui para a descoberta do que me move, pois não vislumbro qualquer progresso e aumenta-me os níveis de ansiedade. É um pouco como se escrever fosse um meio de enclausuramento.
É uma ânsia em que o objeto se vai dissipando, pois não se sabe quando o tempo acaba - o meu tempo! Porque se o tempo absoluto não existe, eu nem um nó chego a ser numa qualquer cadeia ininteligível.
Talvez seja esse o motivo que explica os jogos de automutilação: incapazes de definir etapas, ocupamo-nos a testar a existência, pois do sentido há muito abdicámos.
Visto que o tempo sempre foi uma das minhas obsessões, hoje resolvi recorrer ao canal das gravações e procurar a série GENIUS (1º episódio)... e lá encontrei o Albert Einstein, o internacionalista, em colisão com os padrões políticos, morais, sociais e científicos do seu tempo - do nosso tempo. Vou esperar pelo episódio da próxima 5ª feira, ansioso... 
  

28.4.17

Voz dissonante

Não canto! Cedo fui dissuadido. A voz dissonante abafava a melodia angélica do coro juvenil que reunia todas as noites depois do jantar. Era apenas um corpo mudo à espera do termo do ensaio...
Ela, a senhora, talvez distraída com o tricot ou com as piadas foleiras do todo-poderoso, esqueceu-se de me dar tolerância de ponto, embora eu, em 1967, tenha comparecido, desidratado e ávido da sombra de uma azinheira, por mais pequena que fosse...
Não encanto! Cedo percebi que a minha presença podia ser temida - relembro o dia em que me ofereceram uma pequena coruja ou seria mocho? Anda perdido (a) numa gaveta, mas nunca esqueci o tempo em que ela, a senhora, me cedeu um hotel católico (?), para que eu pudesse formatar umas dezenas de catecúmenos com dinheiros europeus - gastava-se à tripa forra!
(Agora queixam-se da dívida! Querem pagá-la em 60 anos, mas qual, a de ontem ou a de amanhã?)
O desencanto avolumou-se quando fui desviado para um ramal, por lá ficando uma dúzia de anos a polir os cacos de uma ânfora perdida...até que, certo dia, bati com a porta.
Entretanto, substitui as azinheiras por plátanos ainda mais caducos, perdendo definitivamente a esperança de que a senhora baixasse os olhos, não para mim que o não mereço, mas para todos aqueles que morreram longe, na guerra santa ou na diáspora fiel, para todos aqueles que percorrem o calvário da falta de saúde, para todos aqueles que envelhecem sem conseguir um trabalho que lhes dignifique os dias...
Dizem-me agora que a senhora me quer dar tolerância de ponto. E se eu, voz dissonante, não quiser?

27.4.17

De que serve "ter opinião"?

«À quoi ça te sert-il d'avoir un avis? Ce n'est pas toi qui vas décider?» Jean-Paul Sartre, La mort dans l'âme.

Num tempo em que as ideologias se esboroam, de que serve "ter opinião"?
Na Rússia, na Turquia, nos Estados Unidos, no Brasil e, agora, em França, assistimos à morte das ideologias, cujo maior ou menor sucesso se baseou sempre na capacidade de formar opinião.
As sociedades secretas, as igrejas, as universidades,  a imprensa geraram as correntes e as contracorrentes que justificaram os ideais que pareciam nortear as sociedades...
Entretanto, multiplicaram-se os pregadores, os comentadores e os avençados, sem esquecer as certezas do cidadão comum... e tudo se liquefez.
Apesar do aluvião de iluminados, a verdade é que quem decide já só vive para afirmar a sua presença no mundo - à maneira existencialista. O que é muito pouco!

26.4.17

Náufrago em terra

Das naus espera-se que naveguem de forma segura. Sabe-se, no entanto, que muitas naufragaram, deixando cargas preciosas no fundo dos oceanos. Dos tripulantes e passageiros, o tempo lavou-lhes a memória de viagens afortunadas e promissoras... Apesar de tudo, o naufrágio deveria ser considerado um subtema do grande tema que é a viagem...
Aqueles de nós que não andamos embarcados, desconhecemos o ímpeto dos ventos e a força dos vagalhões, e quanto aos náufragos há muito que os abandonámos em areais invernosos...
Por mim, nada posso dizer sobre as viagens e as grandes catástrofes marítimas, o que não evita que me sinta um náufrago em terra, sobretudo, quando as aves se revelam impiedosas comigo...

25.4.17

Neste 25 de abril, ideias perigosas

Neste 25 de abril, várias ideias assomam, perigosas:
- "Este já não é o país dos cravos, mas dos cravas!" (popular, ou talvez não!)
- Roman Jakobson, ao enunciar uma das funções da linguagem: a função mágica: "a poesia está na rua" (nas paredes e nos quadros de Vieira da Silva); "paz saúde habitação", outro modo de dizer a "revolução" do "povo é quem mais ordena!";... "MFA, o povo amigo está contigo"... 
          O eco perdura nos cravos que melhor fora que fossem rosas (de Isabel, de Leonor...) e não punhos erguidos, fechados, deslaçados...
- E do fundo da memória: a ORDEM do Estado Novo, a celebrá-la até à sua extinção; a LIBERDADE de Abril de que pouco sobra...
           porque os seus paladinos se servem dela para asfixiar, para mentir, para roubar...
Tempos houve em que vivíamos num país ignorante, pobre, colonialista e amordaçado. Hoje, vivemos num país virtual, ignorante, falido e roubado...
                                               e os ladrões continuam à solta! 

24.4.17

Cul-de-sac

O liberal pró-europeu Emmanuel Macron venceu a primeira volta das presidenciais francesas com 24,01% dos votos, à frente da líder da extrema-direita francesa Marine Le Pen que conseguiu 21,30% dos votos, segundo os resultados definitivos do escrutínio de domingo.Eleições 1ª volta França

A ideia de que a França seja pró-europeia, nos tempos que correm, parece-me forçada.
Por outro lado, a ideia de que os franceses se deixam seduzir pela vertigem do isolamento, em nome de valores xenófobos e fratricidas, assusta-me.
No entanto, a França já deu imensas provas de ser capaz de mergulhar no abismo, ressurgindo como se nada tivesse acontecido.
Os resultados eleitorais de ontem parecem ser a expressão da ruína dos valores de que a França tanto se orgulhou nos últimos séculos.
No que respeita à situação portuguesa, qualquer resultado nos será desfavorável, pois não creio que desta vez se possa dizer "do mal o menos".
A não ser a curto prazo!  

23.4.17

Na idade da razão

«Déjà des morales éprouvées lui proposaient discrètement leurs services: il y avait l'épicurisme désabusé, l'indulgence souriante, la résignation, l'esprit de sérieux, le stoïcisme, tout ce qui permet de déguster minute par minute, en connaisseur, une vie ratée.»  Jean-Paul Sartre, L'âge de raison

A leitura deste romance não é fácil, pois as personagens, pequenos burgueses com pretensões inteletuais, vão pondo à prova a ideia de liberdade, confinando-a à satisfação de desafios pessoais, apesar da Guerra que se anuncia e da que vai martirizando a república espanhola...
A questão mais importante acaba por ser a da insensibilidade de Mathieu face à gravidez inesperada de Marcelle, o qual, para se libertar do fardo da responsabilidade, acaba por roubar cinco mil francos à decadente Lola, sem, no entanto, ser punido...A punição resume-se quase sempre à inveja e à censura dos "amigos", ao consumo excessivo de álcool e de droga, como se a sociedade não existisse. O crime é, afinal, uma questão existencial, pessoal.
Mathieu, professor de Filosofia, admirado pelos discípulos, atinge cedo a idade da razão, deixando-nos a sensação de que o mundo (da drôle de guerre) retratado por Sartre é postiço e imoral...

Por mim, fico-me com o epicurismo desencantado, a indulgência sorridente, a resignação, a seriedade e um certo estoicismo, pois também eu já cheguei à idade da razão.