28.4.17

Voz dissonante

Não canto! Cedo fui dissuadido. A voz dissonante abafava a melodia angélica do coro juvenil que reunia todas as noites depois do jantar. Era apenas um corpo mudo à espera do termo do ensaio...
Ela, a senhora, talvez distraída com o tricot ou com as piadas foleiras do todo-poderoso, esqueceu-se de me dar tolerância de ponto, embora eu, em 1967, tenha comparecido, desidratado e ávido da sombra de uma azinheira, por mais pequena que fosse...
Não encanto! Cedo percebi que a minha presença podia ser temida - relembro o dia em que me ofereceram uma pequena coruja ou seria mocho? Anda perdido (a) numa gaveta, mas nunca esqueci o tempo em que ela, a senhora, me cedeu um hotel católico (?), para que eu pudesse formatar umas dezenas de catecúmenos com dinheiros europeus - gastava-se à tripa forra!
(Agora queixam-se da dívida! Querem pagá-la em 60 anos, mas qual, a de ontem ou a de amanhã?)
O desencanto avolumou-se quando fui desviado para um ramal, por lá ficando uma dúzia de anos a polir os cacos de uma ânfora perdida...até que, certo dia, bati com a porta.
Entretanto, substitui as azinheiras por plátanos ainda mais caducos, perdendo definitivamente a esperança de que a senhora baixasse os olhos, não para mim que o não mereço, mas para todos aqueles que morreram longe, na guerra santa ou na diáspora fiel, para todos aqueles que percorrem o calvário da falta de saúde, para todos aqueles que envelhecem sem conseguir um trabalho que lhes dignifique os dias...
Dizem-me agora que a senhora me quer dar tolerância de ponto. E se eu, voz dissonante, não quiser?

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