17.4.20

Agora que Abril se encima


Escola Secundária de Camões
Dias houve em que Abril empolgava, depois a liturgia partidarizou-se ou, ainda pior, oficializou-se… num estado não muito diferente do novo.
Agora que a morte campeia, talvez valha a pena reler… até porque são necessárias outras vias…

Coimbra, 14 de julho de 1970

É escusado. Ninguém aqui conte receber, em circunstância alguma, qualquer estímulo tonificante. A todas as horas e de todos os lados, só nos chegam motivos de desânimo e náusea. Mais roubalheiras, mais traficâncias, mais covardias, mais degradações, na administração pública, nas profissões liberais, no comércio, na indústria, nas ciências, nas artes e na religião. De tal maneira, que, mesmo contra vontade, é-se levado a concluir tristemente, de que em vez de uma comunidade de esforços nobilitantes, somos uma lamentável associação de indignidades. E aí começa a tortura mental de quem, apesar de tudo, gosta de ser português, e não se conforma com a ideia de um anátema a que estejamos condenados. Que razões deste mundo nos teriam levado a semelhante decadência?
Miguel Torga, Diário XI

 25 de Abril

            Esta é a madrugada que eu esperava
            O dia inicial inteiro e limpo
            Onde emergimos da noite e do silêncio
            E livres habitamos a substância do tempo
            Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977

Nesta hora20 de Maio de 1974

            Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
            Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso expor 
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir
Na nudez de alegria que nos veste
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977


   Casa na Chuva

            A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
            Não sei porque voltou esta tarde
            se minha mãe já se foi embora
            já não vem à varanda para a ver cair
            já não levanta os olhos da costura
            para perguntar: ouves?
            Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
            a chuva sobre o teu rosto.
            Eugénio de Andrade, Escrita da Terra, 1977

  Cavalos

            Eu oiço-os cavalgar nas nuvens negras
do crepúsculo da noite da solidão
            os meus cavalos perdidos nas batalhas.
            Galopam no horizonte sem fronteiras
            suas crinas de estrelas e desastres
            suas garupas com restos de bandeiras,
            Trazem no vento sul as cítaras e a chuva
            e trazem tambores do vento norte.
            Eu oiço-os cavalgar nas nuvens negras
            os meus cavalos sobre a noite e a morte.
               Manuel Alegre, Senhora das Tempestades, 1998

   Em longo se transforma

             Em longo se transforma o breve engano,
             e o discurso em vento, 
       e o desejo em medo.
       E a esperança
             em memória, e o pensamento
             em bússola cega
             para o mundo.
             E em vidro o espelho apaga,
             gasto de mágoas e mudanças,
             o claro rosto do futuro.
        Pedro Mexia, in “O futuro em anos-luz” 100 anos. (2001)



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