Escola Secundária de Camões |
Agora que a morte campeia, talvez valha a pena reler… até porque são necessárias outras vias…
É
escusado. Ninguém aqui conte receber, em circunstância alguma, qualquer
estímulo tonificante. A todas as horas e de todos os lados, só nos chegam
motivos de desânimo e náusea. Mais roubalheiras, mais traficâncias, mais
covardias, mais degradações, na administração pública, nas profissões liberais,
no comércio, na indústria, nas ciências, nas artes e na religião. De tal
maneira, que, mesmo contra vontade, é-se levado a concluir tristemente, de que
em vez de uma comunidade de esforços nobilitantes, somos uma lamentável
associação de indignidades. E aí começa a tortura mental de quem, apesar de
tudo, gosta de ser português, e não se conforma com a ideia de um anátema a que
estejamos condenados. Que razões deste mundo nos teriam levado a semelhante
decadência?
Miguel Torga, Diário XI
25 de Abril
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977
Nesta hora - 20 de Maio de 1974
Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo
exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia
verdade
Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida
O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- sob o ausente olhar silente de atenção –
Para construir
Na nudez de alegria que nos veste
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977
Casa na Chuva
A chuva, outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei porque voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora
já não vem à varanda para a ver cair
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.
Eugénio de Andrade, Escrita da Terra, 1977
Cavalos
Eu oiço-os cavalgar nas nuvens negras
do crepúsculo da noite da solidão
os meus cavalos perdidos nas
batalhas.Galopam no horizonte sem fronteiras
suas crinas de estrelas e desastres
suas garupas com restos de bandeiras,
Trazem no vento sul as cítaras e a chuva
e trazem tambores do vento norte.
Eu oiço-os cavalgar nas nuvens negras
os meus cavalos sobre a noite e a morte.
Manuel Alegre, Senhora
das Tempestades, 1998
Em longo se transforma
Em longo se transforma o breve
engano,
e o discurso em vento,
e o discurso em vento,
e o desejo em medo.
E a esperança
em memória, e o pensamentoE a esperança
em bússola cega
para o mundo.
E em vidro o espelho apaga,
gasto de mágoas e mudanças,
o claro rosto do futuro.
Pedro Mexia, in “O
futuro em anos-luz” 100 anos. (2001)
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