26.4.20

Talvez possamos reencontrar a alma

Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4, 9).
«Todas as coisas deste mundo têm outra por que se possam trocar. O descanso pela fazenda, a fazenda pela vida, a vida pela honra, a honra pela alma; só a alma não tem por que se trocar. E, sendo que não há no mundo coisa tão grande por que se possa trocar a alma, não há coisa no mundo tão pequena e tão vil por que a não troquemos, e a não demos. Ouvi uma verdade de Séneca, que, por ser de um gentio, folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há coisa para connosco mais vil que nós mesmos. - Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é vossa própria alma. Provo. Se vos querem comprar a casa, o canavial, o escravo, ou o cavalo, não lhe pondes um preço muito levantado, e não o vendeis muito bem vendido? Pois, se a vossa casa, e tudo o que nela tendes, o não quereis dar, senão pelo que vale, a vossa alma, que vale mais que o mundo todo, a vossa alma, que custou tanto como o sangue de Jesus Cristo, por que a haveis de vender tão vil e tão baixamente? Que vos fez, que vos desmereceu a triste alma? Não a tratareis sequer como o vosso escravo e como o vosso cavalo? Se vos perguntam acaso por que não vendeis a vossa fazenda por menos do que vale, dizeis que a não quereis queimar. E quereis queimar a vossa alma? Ainda mal, porque haveis de queimar e porque há de arder eternamente.» Sermão da Primeira Dominga da Quaresma (excerto), Padre António Vieira

Desconheço o motivo que levou José Saramago a escolher como leitura de Ricardo Reis o Sermão da Primeira Dominga da Quaresma. Suspeito, no entanto, que, para além do calendário de 1936, terá sido a suposta educação jesuítica do heterónimo... 
De qualquer modo, nem Ricardo Reis conseguiu ler mais do que 10 páginas, nem Saramago se deu ao trabalho de indicar o autor do trecho por si escolhido «Revolvei a vossa casa, buscai a coisa mais vil de toda ela, e achareis que é a vossa própria alma» O Ano da Morte de Ricardo Reis, Porto editora, pág.260
Não consta que Ricardo Reis tenha tido tempo de visitar o Maranhão, nem que Saramago se tenha perdido no Sermão, a leitura abre-nos, porém, a porta para que, em tempo de quarentena, possamos procurar a alma lá bem no fundo do sertão... para que o gentio Séneca deixe de ter razão.

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