31.1.22

O caminho


Quem olha muitas vezes para o caminho percorrido enquista-se e perde-se em autopiedade, quando não em vanglória. António Quadros, DN, 8 dez. 1991.

O que vale a pena é atravessar o mistério que, a cada passo, nos surpreende, dando conta dessa travessia, ainda que de forma desajeitada.
(Se nada acontece, o melhor é ficar em silêncio.)
O dia de ontem passa a sinalizar o termo de um ciclo, inaugurando, por seu turno, um novo caminho cheio de incertezas.
O resto não é literatura, e já caiu no olvido.

28.1.22

Com tantas flores...


Com tantas flores, não há desculpa, mesmo que umas se inclinem para a direita e outras para a esquerda.

O que as move? Talvez o capricho!? Pouco importa.
Sem elas janeiro seria mais taciturno.
 
Com tantas flores, não faz sentido deixar de votar neste 30 de janeiro...

26.1.22

O mandarim

 

A foto deveria ser de um mandarim, mas, por inépcia do fotógrafo, a ave regressou à China, não sem antes ter alimentado o nosso imaginário.
Sim, o ilusionismo não cativa apenas as crianças... faz-nos crer que somos grandes e que poderemos, ainda, ser ricos, mesmo que fechemos os olhos ao trabalho de cada dia...
Afinal, há mil e uma artimanhas ao nosso dispor....

Hoje, por momentos, cheguei a pensar em participar numa arruada, nem que fosse para fotografar uma andorinha... 
Só que ainda estamos em janeiro!
( Este é um daqueles textos sem conteúdo que a Google acabará por eliminar.)

25.1.22

Só pode estar cansado...

(Dois motoristas da Carris:Tanto se me dá como se me deu.)

Mesmo que diga o contrário, só pode estar cansado.
Tantos anos a esbracejar em águas turvas, não se pode esperar que se erga qual superhomem, mesmo que, por vezes, o obriguem a dizer o contrário.
Por estes dias, não é ele que está em causa, mas nós. É possível que nos apeteça variar, que nos apeteça vê-lo pelas costas e, como as trutas, subir o rio de água escassa. É possível que nos apeteça ficar em casa para, mais tarde, acusar os do costume.
Nós é que estamos em causa!

23.1.22

A REBELIÃO, Josep Roth

Andreas Pum, servidor de Deus e da Pátria, apesar da perda de uma perna em combate durante a Primeira Guerra Mundial, enfrenta os desaires da vida, convencido de que a Justiça e a Autoridade o protegem e lhe reconhecem o sacrifício...
O romance desenvolve-se, no entanto, não como comprovação das ilusões de Andreas Pum, mas como desconstrução da Fé do protagonista na ordem moral do mundo, o que tem como consequência uma atitude de rebeldia já que nem o Governo nem Deus se interessam pelos 'justos' deste mundo:

«Da minha inocente humildade, acordei para uma insubmissão vermelha, rebelde. Gostaria de Te negar, Deus, se fosse vivo e não estivesse diante de Ti. Mas, como Te vejo com os meus olhos e Te oiço com os meus ouvidos, tenho de fazer pior do que Te negar: tenho de Te injuriar! Na Tua fecunda falta de sentido, Tu geras milhões dos meus semelhantes, estes crescem, crentes e resignados, sofrem golpes em Teu nome, saude imperadores, reis e governos em Teu nome, deixam que as balas lhe abram corpo feridas que criam pus...» Joseph Roth (1894-1939), A Rebelião, 1924.

Infelizmente, aqueles que sacrificam a Deus e à Pátria, aqueles que apostam na educação das novas gerações, aqueles que cuidam da saúde dos concidadãos, morrem revoltados, tal como Andreas Pum... e já entrámos em 2022. 

21.1.22

É só encenação!

 
As campanhas eleitorais aborrecem-me!
O maioral de cada partido percorre o país sem nada ver e ouvir, preso das marcações que o encenador partidário lhe fixou.
Em cada palco, tudo é artifícioso: os figurantes movem-se em círculos fechados e os protagonistas não passam de fantoches mais ou menos emparelhados, com réplicas ensaiadas e, em regra, de mau gosto...
Antes da campanha começar, tinha a ideia de que nos partidos havia pessoas inteligentes, com ideias bem alicerçadas e capazes de as expor com clareza...
Entretanto, essas pessoas cairam no anonimato, e as ideias capazes desapareceram, como se tivessemos passado a viver no reino da estupidez.
Antes, estava convencido de que sabia em que partido deveria votar, agora aconselham-me a votar no menor dos males... como se o mal pudesse ser graduado.
E depois admiram-se que as urnas fiquem às moscas...

18.1.22

Jorge Castanho, Estátuas Tenras (edição de autor)

Há dias, prometi ao Jorge Castanho que iria escrever sobre as suas Estátuas Tenras, mas, afinal, não posso cumprir a promessa, porque ele escreve como nenhum outro escritor que eu tenha lido...
Em cada página de Estátuas Tenras, a Bic modela as sensações de quem vai mapeando o território diurno e noturno, de quem sobe da raiz ao pensamento, de quem vai registando as anomalias (in)visíveis, de quem se apropria do simbólico para abrir novos horizontes, de quem denuncia o capitalismo que captura a obra, transformando-a numa mercadoria.
Em cada página de Estátuas Tenras, revivemos a infância e subimos pela árvore nela desenhada, reencontrando-nos, a cada passo, em lugares já vividos, sendo convidados, através de uma evocação, de um quadro, de um poema, a iniciar uma nova viagem, mesmo se confinados.
Logo, vou continuar a ler, esperando que o Jorge continue a escrever.

17.1.22

Lua de Janeiro

 

Não consta que traga mais dinheiro nem que esteja interessada no que por aqui se passa... 

Resolvi capturá-la antes que ela se escape. Ilusão minha!

Eu é que não lhe escapo, mesmo em noite de lua nova... No entanto, isso não tem qualquer significado. 

Tudo foi traçado no vazio anterior, não se sabe é por quem nem com que intenção...

Isto sou eu a supor para reconhecer que nunca virei a responder a nenhuma das perguntas que marcaram a minha primeira lua...

16.1.22

Fazer o ninho atrás da orelha

 

Começou a campanha eleitoral... e começou com chalaça. 
Para quê? Para desviar a atenção.
Uns procuram emprego; outros procuram mantê-lo. O resto é conversa fiada.
Até o trabalhador procura a 'alma' fora de si, porque bem sabe que lá dentro o que se move não é confiável.
De facto, as almas tal como vieram assim se foram ou materializaram-se em intenções de todos conhecidas, por muito que se apregoe a bondade humana.

14.1.22

O abutre





 Dove vola l'avvoltoio?

 (Italo Calvino)





Un giorno nel mondo finita fu l'ultima guerra,

il cupo cannone si tacque e più non sparò,

e privo del tristo suo cibo dall'arida terra,

un branco di neri avvoltoi si levò


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


L'avvoltoio andò dal fiume

ed il fiume disse: "No,

avvoltoio vola via,

avvoltoio vola via.

Nella limpida corrente

ora scendon carpe e trote

non più i corpi dei soldati

che la fanno insanguinar".


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


L'avvoltoio andò dal bosco

ed il bosco disse: "No

avvoltoio vola via,

avvoltoio vola via.

Tra le foglie in mezzo ai rami

passan sol raggi di sole,

gli scoiattoli e le rane

non più i colpi del fucil".


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


L'avvoltoio andò dall'eco

e anche l'eco disse "No

avvoltoio vola via,

avvoltoio vola via.

Sono canti che io porto

sono i tonfi delle zappe,

girotondi e ninnenanne,

non più il rombo del cannon".


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


L'avvoltoio andò ai tedeschi

e i tedeschi disser: "No

avvoltoio vola via,

avvoltoio vola via.

Non vogliam mangiar più fango,

odio e piombo nelle guerre,

pane e case in terra altrui

non vogliamo più rubar".


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


L'avvoltoio andò alla madre

e la madre disse: "No

avvoltoio vola via,

avvoltoio vola via.

I miei figli li dò solo

a una bella fidanzata

che li porti nel suo letto

non li mando più a ammazzar"


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


L'avvoltoio andò all'uranio

e l'uranio disse: "No,

avvoltoio vola via,

avvoltoio vola via.

La mia forza nucleare

farà andare sulla Luna,

non deflagrerà infuocata

distruggendo le città".


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla terra mia,

che è la terra dell'amor.


Ma chi delle guerre quel giorno aveva il rimpianto

in un luogo deserto a complotto si radunò

e vide nel cielo arrivare girando quel branco

e scendere scendere finché qualcuno gridò:


Dove vola l'avvoltoio?

avvoltoio vola via,

vola via dalla testa mia...

ma il rapace li sbranò.

12.1.22

O evangelho de José Saramago

 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago. Só agora o li... e já passaram 30 anos...

Atraso indesculpável, não sei. Segui o escândalo, mas isso não tornou a leitura prioritária. Conhecia as personagens envolvidas, umas distantes e outras próximas, e também sabia que o tempo se encarregaria de separar as águas...

Neste último Natal,  decidi meter mãos à obra, e fui avançando, primeiro um pouco pesaroso e depois mais interessado no debate entre Deus, o Diabo e Jesus... Claro que ia avisado, se não estivesse atento à ironia, tudo acabaria num processo de aceitação ou de rejeição conforme a disposição mental...

No essencial, Saramago questiona o Deus inventado pelas religiões judaica e cristã - um deus imperialista que não olha a meios para submeter os Anjos, as Mulheres e os Homens, no último caso, representados por José e Jesus de Nazaré.

O surpreendente é o Diabo e  Jesus que, apesar de terem entendido muito bem as  consequências para a Humanidade da estratégia de Deus, se deixarem reduzir a ovelhas mansas... Como diria o Pastor, não aprenderam nada!

Terminada a leitura, e salvaguardados os méritos lierários do Autor, confesso que a interpelação de Saramago em nada se distingue da minha. E nesse aspeto, o Evangelho de Saramago não deveria ser atribuído a Jesus.

A não ser que José Saramago se identifique com Jesus e tenha aproveitado o mito para ajustar contas com o Pai... Será que Saramago aprendeu alguma coisa?

10.1.22

Os leitores

Não são residentes!
Alguns são empurrados pela curiosidade; outros são furtivos. 
E se se apropriam de alguma ideia, não sei, nem tenho paciência para lhes seguir o rastro...

Ultimamente, tenho descoberto que o conhecimento pode tornar-se uma maçada, fazendo-nos perder a calma tão necessária aos últimos dias...

Claro que os leitores têm razão. Aqui, apenas um charco escuro e pestilento! Quem procura o charco, se ao lado se espraia o mar bonançoso?

E depois tenho de voltar para trás - os lapsos imperdoáveis, as vírgulas deslocadas, os desacordos precipitados... o excesso de possessivos.

A solidão é uma consequência... de que os leitores não têm qualquer responsabilidade. Só Deus saberá a causa, Ele que nela mora.  

9.1.22

O felino

 

Se quiser sobreviver, este felino não pode desperdiçar o tempo: as presas são escassas e furtivas.
Do que decorre (ou não) que também o tempo é escasso e furtivo. 
O que antes sucedeu não mata a fome e, mesmo que nos consuma, não nos serve de nada.
Tal como o felino, sigamos em frente até que a vida se esgote.
Tudo isto pode parecer um pouco rebuscado, mas não, o felino também foge dos exorcistas...

6.1.22

O terceiro pastor

 

Não vejo a estrela de Belém!

E se a não vejo, como poderei ver a aproximação dos magos!

Agora compreendo o motivo de José Saramago. No lugar dos magos surgiram três pastores.

a) Com estas minhas mãos mungi as minhas ovejas e recolhi o leite delas;

b) Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo;

c) Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era. 

(O Evangelho Segundo Jesus Cristo)

1.1.22

Sem remissão

 

Este blogue está nas últimas... Apenas regista tristezas e leituras.

Ontem, por exemplo, terminei a leitura de uma pequena obra, mas sagaz - 35 kilos d'espoir, de Anna Gavalda. 

Nunca tinha ouvido falar desta autora até há poucos dias; no entanto, percebo que é muito conhecida, por exemplo, na Alemanha. 

Anna Gavalda, baseando-se na sua experiência docente, narra a história de um jovem sem qualquer gosto pela escola porque, afinal, a escola também não gostava dele. 

Ao contrário de muitos outros desencantados, Grégoire tinha objetivos bem práticos  que passavam pela imaginação de soluções mecânicas - construir era o seu desígnio.

Apesar do fracasso escolar e familiar, acaba por superar as dificuldades, ajudado pelo avô.

Sinto que, de algum modo, também poderia ter escrito este belo livro, tantos foram os alunos que se sentaram à minha frente durante 46 anos, alguns completamente desenquadrados. Fico a pensar nos que se perderam... nos que perdi.