15.1.14

Fim de ciclo

Simples fragmentos podem transformar-se em narrativa, em ciclos de vida. O que hoje se encerra teve início em 1974. Para trás ficavam esferas distintas, desconhecidas. Caminhos tão antagónicos que a probabilidade se cruzarem era mínima...
No entanto, só hoje, quando o presbítero lembrou que «Deus está à nossa espera», compreendi que se tivesse correspondido à vontade divina, o ciclo que hoje se conclui não teria tido início...
De nada serve avaliar se a escolha foi a mais acertada, porque, ao passarmos o limiar, uma nova casa se abre deixando a fúria respirar,  os olhos das molduras cintilar,  as flores da varanda desabrochar... enquanto o sol por instantes aquece o que sobra da ternura...
Durante este tempo, a viagem levou sempre à casa  que nunca habitara, à areia da praia que não frequentara, a vozes que não ouvira, a uma fome que não a minha...
Podemos passar o limiar, sem nunca habitar plenamente a casa porque já chegámos tarde... Assim, o melhor é regressar ao ciclo inicial... antes que a linha quebre. 

14.1.14

Ao contrário do universo...

No que ao SER diz respeito, quanto maior é a duração, menor é a extensão... e talvez seja essa a lei que explica a vontade insaciável de tudo possuir, de tudo devorar, de ser tudo de todas as maneiras...
Apesar da Hora ser única, a consciência pessoana atravessa-se no caminho para nos trazer mal-estar, porque a eternidade tem custos que a nossa extensão nos impede de suportar.

13.1.14

Despedida

Caiu o nevoeiro e depois a chuva. O sol espreitou! E o nevoeiro e a chuva confundiram-se. Foi assim ao longo de 91 anos.
Como bem se sabe, o nevoeiro e a chuva colam-se ao corpo e, hoje, pela última vez, esconderam o sol....

12.1.14

Largo do Cruzeiro



Quase escondido, o Largo do Cruzeiro corre paralelamente à Rua Principal. Símbolo de soberania, vive do tempo em que o carvalho ainda medrava e acoitava os pombos que por ali passavam. É hoje um Largo sem notícia, esquecido por quase todos.
Em tempos, para mim, o Largo do Cruzeiro mais não era do que um atalho…hoje, sinto-o mais próximo, mais solene, a espreitar a Serra d’Aire.

11.1.14

Em balanço

Há quem faça balanços com grande facilidade! Eu não!
Para começar, desconfio da memória - fraca e seletiva. Por outro lado, dificilmente podemos estar presentes em todos os eventos que marcam o dia a dia de uma instituição ecléctica; frequentemente, não nos sentimos motivados ou nem sequer nos apercebemos da importância de certas iniciativas. 
Assim, um balanço deveria ser construído a partir do testemunho sistematizado dos vários públicos.
Infelizmente, tal não acontece! Deste modo, pondo de parte a memória e os afetos, socorro-me de balanços de atividade dos responsáveis pelas iniciativas. Só que rapidamente descubro que nem todos os dinamizadores se dão ao trabalho de redigir o respetivo relatório, ou porque o não valorizam ou porque preferem guardá-lo para outro interlocutor ou outra circunstância.
Regresso ao início, não podendo fiar-me na memória nem nos afetos, não obtendo feedback dos públicos nem tendo acesso à totalidade dos balanços intermédios, ou porque escondidos ou porque inexistentes, fico em balanço, sabendo, de antemão, que a maioria dos balanços das organizações não passa de falcatrua.

E é sobre essa falcatrua que depois se produzem avaliações externas que irão ditar os planos de melhoria das instituições! Se as avaliações externas, por exemplo, das instituições de ensino, fossem rigorosas e isentas nada do que nos tem vindo a acontecer teria razão de ser...

10.1.14

Laranja

De três laranjas fiz um sumo
longilíneo solar
comprara-as minutos antes como reforço vitamínico
não para mim que desconfio de suplementos
para ti sempre frágil
não quiseste açúcar só palhinha!

O Poeta, da laranja lembra
«peso, potência. / Que se afinca, se apoia, delicadeza, fria abundância 
(...) Laranja. Assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa / inocência da terra.»

Eu recordo três laranjeiras
ora em flor
ora curvadas de frutos
verde laranja

( O Poeta é Herberto Helder, Última Ciência)

9.1.14

Tomar uma decisão...

No dia em que estive presente num workshop que visava ajudar alunos do 12º ano a "tomar uma decisão", fiquei tão traumatizado que resolvi ensaiar uma resposta a uma pergunta de um aluno do 11º ano: - E se, no âmbito do contrato de leitura, eu apresentasse uns poemas de Herberto Helder à minha turma!?
Sempre que me surge um especialista deste poeta, sinto um calafrio e indago da experiência de leitura do audacioso, adiando a minha resposta o mais possível, pois do lado de lá está um público pouco familiarizado com qualquer tipo de poesia. 

Ainda combalido da experiência matinal, em que uma informalíssima psicóloga me quis convencer da bondade de enunciados do tipo É normal tomar uma má decisão! ou Só faço aquilo de que gosto!, atirei-me ao volume OU O POEMA CONTÍNUO para ver se lavava a alma e o corpo...

Abro o TRÍPTICO de Herberto Helder  e surge-me o amador de Camões: Transforma-se o amador na coisa amada com seu / feroz sorriso, os dentes, / as mãos que relampejam no escuro.  Traz ruído / e silêncio. Traz o barulho das ondas frias / e das ardentes pedras que tem dentro si./ E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado / silêncio da sua última vida./ O amador transforma-se de instante para instante, / e sente-se o espírito imortal do amor / criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas.

E fico a pensar no olhar perdido e petrificado do amador camoniano que, à força de misturar imagens, reprime o desejo e apazigua o corpo, passando a viver do fulgor de um momento para sempre perdido, enquanto que o amador de Herberto Helder, no lugar da imaginação, coloca o peso e o vigor do corpo até que a amada  lhe corresponda o grito anterior de amor...

Quanto ao meu aluno do 11º ano, ele que tome a decisão que quiser, desde que seja capaz de mostrar que aprecia a poesia de Herberto Helder, e se nos enganar a todos também não há problema, pois tudo é normal neste país ocupado.