19.2.14

Para todos

«Para todos a entrada na vida é a mesma, e a partida semelhante.» Palavras de Salomão

Escuto palavras arrogantes. Assisto a decisões unilaterais. Observo juízos viciosos. E penso se haverá alguma razoabilidade em tais comportamentos... 
Não tenho heróis, não sigo doutrinas, nem conheço a origem da inteligência. Desconfio, no entanto, que a luz nos cega de tal modo que preferimos a soberba à paciência, a vaidade à modéstia, a palavra ao silêncio...
Enlameados, esquecemos que a porta que atravessámos uma vez é a mesma a que regressaremos. Mas quando tal acontece, nada resta da soberba, da vaidade e da palavra...

Já não me oiço, a luz entra pela porta... e lembro que pensara escrever sob Job. Todavia, desisti de Job temendo que o Senhor lhe premiasse a paciência e, sobretudo, a autenticidade das suas palavras, pois não custa ser genuíno quando a Sabedoria nos põe de sobreaviso.  

18.2.14

As minhocas

Quando os campos estão alagados e o sol começa a aquecer, do torrão saltam, à má fé, as minhocas.
Sem crânio nem coluna vertebral, as minhocas avançam sorrateiramente. Relembro-as, longilíneas, onduladas e rosadas. Nunca percebi bem o que é que elas demandam. Sei, no entanto que, na sua teimosia, não se importam de ser esmagadas.
Diria, assim, que para as minhocas o problema da duração não se coloca. Satisfazem-se com a sua extensão, indiferentes aos vertebrados que ousam pensar e não se deixam conduzir por caprichos alucinatórios.

17.2.14

Salomão, vítima de um pregador anacrónico

«  Salomão prestou culto a Astarté, deusa dos sidónios, e a Melcom, idolo dos amonitas. Fez mal aos olhos do Senhor e não Lhe foi inteiramente fiel como seu pai David. Por esse tempo edificou Salomão sobre o monte, que está frente a Jerusalém, um lugar alto (templo) a Camos, deus de Moab, e a Moloc, abominação dos amonitas. E o mesmo fez para agradar a todas as suas mulheres estrangeiras, que queimavam incenso e sacrificavam aos deuses. Então o Senhor irritou-se contra Salomão...» Primeiro Livro dos Reis

Estranha citação, mas necessária! 
Há dias entrei num templo cristão, católico, acabando por ouvir o pregador a condenar o rei Salomão por ter prestado culto aos ídolos estrangeiros. Habituado a venerar o Rei Salomão como sábio, justiceiro e grande arquiteto, fiquei inquieto com a condenação.
Já me era difícil imaginar que o Padre Eterno acusasse de devassidão as 700 esposas de sangue real e as 300 concubinas do Rei  - «e as mulheres perverteram o seu coração», quanto mais vê-Lo, sem qualquer rebuço, condenar Salomão só porque este era cortês com os reinos que subjugava, com as princesas que lhe enchiam o harém...
Em pleno século XXI, não é fácil ouvir pregar uma história xenófoba, machista e sem qualquer noção do espírito comunitário salomónico.
Ainda se o Senhor tivesse acusado Salomão de esbanjador de recursos, de luxúria talvez aquela homilia fizesse sentido. Assim não, até porque o Senhor, a propósito da edificação do Templo, lhe disse:
«Santifiquei esta casa que me construíste a fim de permanecer nela o Meu nome para sempre; os Meus olhos e o Meu coração estarão aí fixados perpetuamente.» 

16.2.14

Sob a canópia

De passagem pela exposição fotográfica ( de Ana Gaiaz e Márcia Lessa) realizada no âmbito do Programa de Renovação do Grande Auditório ( 15 de fevereiro a 2 de março), houve uma série de pormenores que despertaram a minha atenção, a começar pelo nome das fotógrafas. Algo me diz que há quem não goste dos patronímicos...
Por outro lado, na memória descritiva, surge o neologismo "canópia" para designar a "cobertura" ou a "abóbada" do Grande Auditório. Provavelmente,  não estou atualizado!  Parece-me que, também, aqui, a língua materna se vê afastada sem grande motivo. A ideia de que sem a língua inglesa não somos ninguém perturba-me, pois habituado fui a pensar que a identidade se exprime melhor na língua materna...
Nada disto teria grande significado para mim se o Dicionário Terminológico do Português não sofresse dos mesmos males: a origem e a história da língua são substituídos pelo modelo anglo-saxónico por quem há cerca de 40 anos eliminou os estudos clássicos e acabou por reduzir a quase nada as línguas novilatinas ou românicas...
E acrescento que também não gostei da exposição fotográfica: falta-lhe a sequência, apesar da datação. Parece que as fotógrafas chegaram já o estaleiro estava instalado e o espaço esventrado... 

15.2.14

40 anos de liberdade


Sem grilhetas, construímos retalhos bem elucidativos do caos mental que nos desgoverna. Oferecemos cravos, mas é o tojo que se dissemina. Corrompidos pelo poder e pelo euro, semeamos a miséria nos campos e nas cidades…
Em nome de falsas autonomias, gerimos a nosso belo prazer e propagandeamos que as atuais gerações são mais cultas, mais instruídas do que as anteriores… Sem vergonha o repetimos na cara dos mais velhos, dos trabalhadores, dos que têm menores habilitações académicas…, discriminando em nome de uma verdade néscia e sem pudor.

14.2.14

Manda quem pode!

Manda quem pode, obedece quem quer!

Este provérbio é expressão do saber popular. Todavia, nos dias que correm, parece que já só aplicamos a primeira parte. Logo pela manhã, passou por mim, com ar desalentado, uma senhora que exclamava: Manda quem pode!

De facto, todos os dias obedecemos não porque queremos, mas porque nos resignamos….

Até na natureza, a figueira, de judas ou não, obedece, apesar da chuva e do dia de cinza. Esta figueira, porém, salta o muro e foge do terreiro do seminário, mesmo que a espere a mão gulosa e o riso mofino.

13.2.14

O polvo prega, comunga e condena à fogueira

I – O planeamento e a agricultura de mãos dadas! Não posso deixar de admirar a comunhão das malvas com as favas…
II – Entretanto, «o polvo vestiu-se de todas aquelas cores a que está apegado» e foi comungar. Será que se confessou?

III – «O polvo, com aquele seu capelo na cabeça parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. (…) O polvo é o maior traidor do mar.» Padre António Vieira, O Sermão de Santo António.
O polvo de Vieira é o dominicano que, morto D. João IV (1656), o persegue e o manda prender. O traidor dominicano, responsável pelo tribunal da Inquisição, que abraçou a Cristo e o prendeu…
Curiosamente,  tendo o Sermão de Santo António sido proferido no dia 13 de junho de 1654, os estudiosos de Vieira não identificam os pregadores que não salgavam a terra com a ordem dos dominicanos, cuja missão principal era pregar e, sobretudo, não veem no polvo o retrato do principal inimigo político de Vieira – o dominicano.
Provavelmente, no sermão pregado em 1654, no Maranhão,Vieira não terá feito qualquer referência à figura alegórica do polvo-traidor que só montou o auto-de-fé depois da morte de D. João IV. Apenas, quando estabeleceu o texto para publicação, Vieira terá introduzido «o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano…»