2.6.14

A finalidade da arte é substituir factos

Estou cansado da inteligência.
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reação aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo
Na casa antiga da quinta velha.
Fernando Pessoa / Álvaro de Campos

A ideia das tias mortas desatarem a fazer chá / Na casa antiga da quinta velha é bluff. Álvaro de Campos não teve infância nem quinta nem tias. E se tivesse passado, seria sempre o inicial, do qual poderia extrair réplicas que iludissem os breves dias...
Citando Álvaro de Campos: (Fernando Pessoa) esquece que o que define uma atividade é o seu fim; e o fim da metafísica é idêntico ao da ciência - conhecer factos, e não ao da arte - substituir factos.

A arte exige inteligência, força e por isso esgota a energia do criador de réplicas. O artista não pode ceder à emoção, mesmo que as tias insistam em lhe oferecer chá de ceilão...
E porquê?
«Toda a emoção verdadeira é mentira na inteligência, pois se não dá nela. Toda a emoção verdadeira tem portanto uma expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente.
Os cavalos da cavalaria é que formam a cavalaria. Sem as montadas, os cavaleiros seriam peões. O lugar é que faz a localidade. Estar é ser.
Fingir é conhecer-se.
Álvaro de Campos, Ambiente, In «Presença», nº 5, Coimbra 4 de junho de 1927




1.6.14

Ofereço-te um banco onde te poderás sentar a ler...

Vou interromper a minha tristeza para te oferecer um banco onde te poderás sentar a ler aquelas obras que um dia me prometeste ler… 
Refiro-me apenas àquelas que melhor se adequam ao enquadramento: Os Lusíadas (em particular, as lamentações do Poeta); Os Maias ( o romance do fim da Pátria); O Sentimento dum Ocidental (o poema que melhor poetiza as Causas da Decadência, de Antero)  Mensagem ( sobretudo, o fervor patriótico e utópico); A Ode Marítima (do Cais Absoluto)...
Ainda me prometeste outras leituras, mas vou fingir que as gaivotas e os corvos me impediram de te ouvir...
Não quero que te preocupes com a minha tristeza! Ela é antiga! Herdei-a de Sá de Miranda e de Bernardim Ribeiro; de António Vieira e de Bocage; de Garrett, de Herculano, de Aquilino, de Miguéis, de Torga, de Saramago...
Talvez um dia ainda te reencontre sentado no banco que sempre te ofereci!

31.5.14

Não resisto a colorir o texto...

«Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silêncio caíra sobre a plataforma. O apito da máquina varou o ar; e o comprido trem, num ruído seco de freios retesados, começou a rolar, com gente às portinholas, que ainda se debruçava, estendendo a mão para um último aperto. Aqui e além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doçura de um beijo. O Dâmaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo, o comboio mergulhou na noite…»
Eça de Queirós, OS MAIAS

Não resisto, perante a incapacidade do leitor (?) de identificar a diversidade de sensações no momento da partida do comboio de Santa Apolónia, a colorir o texto de estímulos auditivos, predominantes, visuais, gustativos e táteis...
Esta incapacidade não é inata! Ela mais não é do que o fruto da dispersão, de uma atrofia que vai secando os sentidos.
(...) Agora que os exames se aproximam, pode ser que este triste apontamento ainda possa servir de acendalha...

29.5.14

Contos Municipais, de António Manuel Venda

Ao fim da tarde, irei estar presente no lançamento do livro "Contos Municipais" de António Manuel Venda. E eu que estava convencido que os municípios, se tratados literariamente, só poderiam inspirar romances do tipo "Guerra e Paz", "Crime e Castigo", "Os Meus Eleitores"...


E lá estive no Auditório da Escola Secundária de Camões...
António Manuel Venda, excelentemente apresentado por Mendes Bota, Carlos Moreno e pelo presidente da Junta de Freguesia de Monchique (?,procurou fazer aquilo que os contos, em geral, dispensam: explicar a génese de uma escrita cujo o ponto de partida é a baixa política que nos vai governando desde as autarquias ao poder central. 
Por vezes, António Manuel Venda foi impiedoso com a corrupção, a intriga, a venialidade; outras vezes, sentimental, particularmente no que respeita à sua ligação à terra e àqueles que participaram na sua educação...

Dos 10 contos, apenas li os últimos três. Fica-me a ideia de que a denúncia presente em cada "estória" se disfarça sob a capa do realismo mágico ou, até, de um certo animismo, embora não tão consistente como o de José Lins do Rego, de Luandino, de Mia Couto ou de José Eduardo Águalusa...
De qualquer modo, vale a pena ler estes contos, municipais ou não. E com tantos "casos do dia", o autor tem largo pasto para poder cumprir o desejo do juiz Carlos Moreno: da próxima vez, escreva 20 contos... Creio mesmo que já terá matéria para escrever um romance "Cenas da Vida Autárquica"... e se lhe faltar, Mendes Bota não se importará de lhe dar uma ajuda...

O livro é éditado pela Just Media que deverá dar mais atenção à revisão:
« - Mas, senhor presidente...
- Tem aí a puta da factura ou não?!
- Tenho, senhor presidente, passada pela senhora dona Maria de Jesus Cadela Silva e descriminando diversos serviços de uma forma assim um bocado genérica. É alguma consultoria?
- Não interessa o que ela descrimina na factura, homem!! - gritou o presidente. - Ponha-se a caminho do banco e resolva isto!!!» (pág. 80)

Traquinices

Se me engasgo com as palavras, posso morrer em poucos instantes. Claro que esta afirmação tem todo o ar de excessiva. Quem é que vai morrer por causa de uma mísera palavra!
Se engulo a língua, é sabido que morro em poucos segundos. Claro que esta afirmação já não parece excessiva!
Ora se a língua é constituída por palavras, por que motivo consideramos aceitável que se possa morrer ao engoli-la e achamos risível que se possa falecer engasgado com as palavras?

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Encontrei hoje um poeta que me disse que queria escrever um poema "confuso"... Perplexo, expliquei-lhe que, quando lidamos com as palavras, o objetivo é ser claro mesmo que a noite seja eterna...

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Ao fim da tarde, irei estar presente no lançamento do livro "Contos Municipais" de António Manuel Venda. E eu que estava convencido que os municípios, se tratados literariamente, só poderiam inspirar romances do tipo "Guerra e Paz", "Crime e Castigo", "Os Meus Eleitores"...

28.5.14

O sonho belga

«La Belgique se croit tout pleine d'appas;
Elle dort. Voyageur, ne la réveillez pas.»
        Baudelaire, Les Fleurs du Mal

Nos últimos dias, por mais de uma vez me foi perguntado se a avaliação externa da escola tinha corrido bem.
De facto, não tenho resposta para a questão pois não consigo determinar a intenção subjacente. Temo o amor-próprio do interlocutor. Pressinto que devo encarecer a iniciativa cultural, a abertura à comunidade, o valor formativo da atividade, mas, no íntimo, sei que o encarecimento pouco importa ao inspetor. Ele apenas quer validar ou, se os argumentos apresentados forem convincentes e palpáveis, reformular o relatório final, construído previamente.

Assim, o melhor é continuar a dormir.

Esta mesma atitude pode ser aplicada noutras situações. Sempre que alguém se mostra feliz, o melhor é não o incomodar.
No entanto, na política como nas instituições, surge sempre um desmancha-prazeres! Agora que o António, estava tão Seguro, lá surgiu o outro António, o Costa, a despertá-lo...Quero, desde já, assegurar que não me lembro de ter induzido no ilustre Costa tal traquinice!

27.5.14

Passaram três anos

«E eu sonho o Cólera, imagino a Febre...»Cesário Verde, O Sentimento dum Ocidental
- Identifique dois temas no excerto... Hipóteses: cidade, desigualdade, doença, mulher fatal ...
E a resposta avança pelo campo dentro. É só liberdade, felicidade, fertilidade, fraternidade, produtividade, candura, ar puro, sensações eufóricas, sinestesias ensoalheiradas... (Poema Nós, em versão jesuítica)
Tudo num parágrafo pletórico de rasuras marteladas...
Passaram três anos. Nada mudou! Os olhos continuam longe do texto... A inteligência choca contra o MURO...